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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.9 no.22 Lisboa jun. 2018

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

A limpeza do vácuo nos desenhos de António Olaio

The cleaning of the vacuum in the António Olaio's drawings

 

Halisson Júnior da Silva*

*Brasil, artista visual.

AFILIAÇÃO: Universidade de Coimbra, Colégio das Artes. Praça Dom Dinis, 3000-143 Coimbra, Portugal

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

O objetivo deste artigo é discorrer sobre a natureza do desenho no contexto da exposição Cleaning up the vacuum, de António Olaio. Para isso articulamos textos e ideias de artistas e pesquisadores com os elementos plásticos da exposição. Como resultado obtemos uma análise sobre o referido trabalho artístico que conecta aspetos históricos, plásticos e conceituais. Conclui-se que a singularidade do desenho se encontra na própria ação dedesenhar, na potência da criação.

Palavras chave: Desenho / ação / potência.

 

ABSTRACT:

The purpose of this article is to discuss the nature of drawing in the context of the exhibition Cleaning up the vacuum, by António Olaio. For this we articulate texts and ideas of artists and researchers with the exhibition's plastic elements. As a result, we obtain an analysis of the art work that connects historical, plastic and conceptual aspects. We conclude that the singularity of the drawing lies in the very action of drawing, in the potency of creation.

Keywords: Drawing / action / potency.

 

Introdução

António Olaio, nascido em 1963, Sá da Bandeira, Angola, é professor da Universidade de Coimbra no curso de Arquitetura, onde leciona desenho, e no Colégio das Artes, onde exerce também a função de diretor desde 2013. No âmbito artístico, trabalha com linguagens variadas que vão da vídeo-performance à pintura, passando pela música e pelo desenho. Todas estas áreas são contempladas em sua exposição Cleaning up the vacuum (2017), da qual aqui iremos tratar.

Composta por cerca de uma centena e meia de desenhos, seis pinturas e um vídeo, este trabalho multimédia ficou exposto na Galeria Fernando Santos, na cidade do Porto, durante o verão de 2017. Apesar da variedade de médias, todas falam sobre desenho. E o desenho, ao falar sobre desenho, fala sempre sobre outra coisa também. Ou melhor, o desenho é sempre outra coisa para além do desenho. Todavia, além da carga de significado possibilitada pelos desenhos individualmente ou pela relação dos mesmos entre si, o sentido pleno do trabalho encontra-se principalmente na relação destes com os demais médias que o compõem.

Antes de prosseguir, necessário é dizer que não foi possível visitar a exposição tema deste artigo em razão de seu encerramento antecipado. Assim sendo, o que se segue é baseado nas imagens e registos disponíveis no site do artista, referenciado nas legendas das figuras.

 

1. A pensar diferente por poder pintar

No contexto da História Ocidental, o desenho esteve submetido a outras artes como a pintura, por exemplo. Longe de ser um fim em si mesmo, o desenho era então compreendido como uma etapa necessária para a criação de outras obras, constituindo-se em um fazer mais mecânico que artístico. Segundo Paixão (2008:24), até o início do Renascimento a função do desenho se resumia aos "esquissos preparatórios" a partir dos quais se podia avaliar as obras encomendadas na intenção de aprová-los ou sugerir alterações de modo a garantir que o resultado final corresponderia ao pedido inicial.

Naquela altura, a pintura por si só também carecia de certa legitimidade enquanto arte liberal. A qualidade das obras era considerada principalmente pelo tema representado, os materiais usados e o esplendor da composição, sendo o artista um artesão anónimo e subalterno (Paixão, 2008:24). Lichtenstein (2007:17-8) rememora este status da pintura desde a Antiguidade, quando o pintor possuía relevância social inferior à de outros artistas, como músicos e poetas. Por executar uma atividade manual, o trabalho do pintor era considerado alheio ao mundo das ideias, a qualquer teoria. É no Renascimento que surgem textos fundadores — dos quais Lichtenstein destaca os de Alberti e Leonardo — a postularem que a pintura, mais que uma atividade prática, também se constituía como atividade teórica (Lichtenstein, 2007:20-1).

Neste processo, o desenho também adquire status de atividade intelectual e, mais que uma etapa na produção de uma pintura, passa a ser compreendido como uma qualidade desta, tal qual a cor, por exemplo. Desde então, o desenho é entendido mais frequentemente entre estas duas aceções no contexto da criação artística: esboço preparatório e atividade ideativa que guia o artista na execução da obra (Paixão, 2008:32-3). Entretanto, diferente da pintura que obteve seu reconhecimento artístico pleno a partir do Renascimento, o desenho só passou a ensaiar sua autonomia enquanto obra de arte no contexto da Arte Contemporânea, no qual se insere Cleaning up the vacuum.

Ao produzir pinturas em uma exposição "sobre desenho", Olaio inverte a posição tradicional deste como antepasso da pintura, e pinta para "dar a ver" o desenho. São seis pinturas divididas em duas séries de três que intervalam os desenhos nas paredes da galeria (Figura 1). Em cada pintura da primeira série, um par de mãos em preto e branco veste luvas de limpeza sobre um plano onde há um círculo colorido com linhas pretas a compor um desenho geométrico bidimensional em seu interior. A acompanhar este círculo há outra figura geométrica representada como forma tridimensional.

 

 

Na segunda série de pinturas, as mesmas mãos estão a retirar as luvas, conotando a ideia de "trabalho feito" — no caso, o trabalho de limpeza do vácuo. Entretanto, o vácuo que já não era vazio na primeira série, também não o é nesta segunda. Os desenhos pintados são agora a preto e branco, tal qual as mãos em primeiro plano que, após o processo de limpeza encontram-se impregnadas por linhas semelhantes as dos desenhos em segundo plano (Figura 2).

 

 

Na tentativa de limpeza do vácuo representado pela abstração do desenho, a pintura — mimese mais bem-sucedida da realidade visível se comparada ao desenho — se mistura e dá vida àquilo que pretendia apagar, assim como deixa no vácuo qualidades de sua passagem, como a monocromia. Como sugere Petherbridge (2010: 18) embora o desenho seja algo distinto da pintura, é legítimo falarmos sobre o desenho na pintura, fato explicitado por Olaio ao trazer esta constatação para primeiro plano.

 

2. Um indivíduo tal qual um desenho

Como mencionado anteriormente, é no contexto da Arte Contemporânea que o desenho encontra seu lugar como obra de arte autônoma, tendo suas potencialidades exploradas para além da ideia de esboço ou de arte finalizada — esta última encontrada em produtos de comunicação em massa, como bandas desenhadas e imagens publicitárias. É devido à versatilidade plástica do desenho como processo que regista sua própria marca, que Rose (1976:12) percebe sua emergência a partir de meados do século XX, período em que os artistas perscrutavam os limites do que poderia ser considerado arte, incorporando no trabalho final marcas da ação durante o processo criativo.

O próprio ato de desenhar é identificado como uma das características do desenho, manifestação do ser enquanto revelação autográfica (Rose, 1976:8). A linha, signo elementar do desenho, é abstração simbólica que só existe quando gerada por um indivíduo. Nesse sentido, um único desenho é capaz de revelar a personalidade artística de quem o fez (Rose, 1976:10). De fato, quando apreciamos a variedade de temas presente nos desenhos de Cleaning up the vacuum, a relação imediatamente identificável entre eles é a autoria. Em um primeiro olhar parece ser difícil estabelecer alguma relação entre as pessoas, plantas, paisagens, animais, objetos e formas abstratas além da perceção de que os traços que compõem estes desenhos foram feitos pela mesma pessoa.

Se a maioria dos desenhos apresenta figuras facilmente identificáveis, outros não são tão objetivos (Figura 3). Todavia, os sujeitos dos desenhos figurativos possuem oscilações significativas em sua carga imagética (Figura 4) e, neste contexto, os desenhos não-figurativos parecem sempre tencionar ser mais do que pura abstração. Tal consideração, entretanto, não altera a apreciação de que não importa o que esteja ali desenhado, desde que esteja desenhado. Nesse sentido, a potência de ser algo além daquilo que se é, percebida na relação entre os desenhos figurativos e não-figurativos, ecoa no conjunto de desenhos como um todo. Nessa perspetiva, o próprio desenho se constitui como vácuo, como algo potencialmente preenchível a partir da atribuição de significados. Logo, seguindo este raciocínio, para limpar o vácuo de seu vazio, basta indicá-lo. Não por coincidência, o termo português desenho deriva do latino designare que, segundo Paixão (2008:37) significa tanto a ação de indicar algo de algo — o que institui uma relação — quanto a ação de incidir, riscar — o que institui uma separação. Deste modo, o desenho se estabelece paradoxalmente como o lugar de separação que vive daquilo que coloca em relação (Paixão, 2008:40). A partir de Paixão, Rayck (2015:281) percebe a condição do desenho como limbo, de onde pode advir tanto a felicidade quanto a danação.

 

 

 

 

De todo modo, Olaio não se preocupa com o que pode surgir do desenho, mas sim com a constatação de sua existência enquanto ação e potência. É desses aspetos em simultâneo que se ocupa o vídeo a ser tratado a seguir.

3. Pictures are not movies

A completar a exposição há um vídeo que mostra as mãos de Olaio a desenhar com um bastão de grafite ao som do atrito deste no papel e de uma gravação de I'm through with love, cantada por Marilyn Monroe, com a voz sobreposta de Olaio a cantar junto. A ação, que reafirma o aspeto performativo do desenho, repete-se cinco vezes. Na sequência, o volume da voz de Olaio vai diminuindo e os gestos que desenham parecem mais indecisos, inconstantes, resultando em desenhos aparentemente cada vez mais descoordenados.

Na quinta vez, já não há desenho, apenas as mãos vacilantes a manusear o bastão de grafite enquanto se ouve a música referida (Figura 5). Tal ação que não resulta em grafismo isola a ideia dedesenho como potência, no sentido dequepotência não se refere somente a poder, mas também a poder não (Rayck, 2015:40). Olaio pode desenhar, mas não o faz, e esta aparente recusa de agir constitui-se por si só como ação no sentido de pontuar a possibilidade de não agir.

 

 

Com esta proposição, Olaio aproxima o desenho de um aspeto da conceção lacaniana de linguagem. Para Lacan, a linguagem humana — seja ela gesto, imagem, texto, etc. — possui uma ambiguidade, uma função dupla inerente: significa a mensagem que quer transmitir, assim como, autorreflexivamente, o próprio ato de transmissão da mensagem; afirmando também, para além daquilo que se comunica, o pacto simbólico entre as partes comunicantes (Žižek, 2010:21). Com agudeza progressiva, Olaio procura se livrar desta ambiguidade do ato comunicacional de modo a afirmá-lo, paradoxalmente, sem nada comunicar, através do acontecimento de um não-acontecimento.

 

Conclusão

A partir da abordagem plástica e conceitual da ideia paradoxal de limpeza do vácuo feita por Olaio na exposição Cleaning up the vacuum, procuramos compreender a natureza do desenho na articulação dos aspetos do referido trabalho com as considerações de artistas e pesquisadores sobre tal linguagem.

Neste sentido, mais idiossincrático que aquilo que o desenho representa (ou apresenta) parece-nos ser sua potência enquanto gesto criador. Gesto este que, em um movimento de significação e ressignificação (o gesto indica aquilo que indica o gesto) invariavelmente preenche o vazio da existência com o signo humano.

 

Agradecimentos

Bolseiro CAPES, Brasil, Proc. Nº 1171/15-1.

 

Referências

Lichtenstein, Jacqueline (2007) "O mito da pintura". In: Lichtenstein, Jacqueline (org.) A Pintura — Vol. 1: O mito da pintura. São Paulo: Ed. 34.         [ Links ]

Paixão, Pedro Abreu Henriques (2008) Desenho — A transparência dos signos: estudos de teoria do desenho e de práticas disciplinares sem nome. Lisboa: Assírio & Alvim. ISBN: 978-972-37-1297-1        [ Links ]

Petherbridge, Deanna (2010) The primacy of drawing — histories and theories of practice. London, New Haven: Yale University Press. ISBN: 978-0-300-12646-4        [ Links ]

Rayck, Diego (2015) Desenho — pretensão, erro e ruína. 316 f. Tese (Doutoramento em Arte Contemporânea) Colégio das Artes, Universidade de Coimbra, Coimbra.         [ Links ]

Rose, Bernice (1976) Drawing Now. Nova York: Museum of Contemporary Art. ISBN: 0870702882        [ Links ]

Žižek, Slavoj. (2010) Como ler Lacan. Rio de Janeiro: Zahar. ISBN: 978-85-378-0243-4        [ Links ]

 

 

Enviado a 04 de janeiro de 2018 e aprovado a 17 de janeiro de 2018

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: halissonjuniordasilva@gmail.com (Halisson Júnior da Silva)

 

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