SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.9 número22A pele bordada, o corpo presente e o tempo tangível na obra de Ana Teresa BarbozaLa presencia del paisaje heterotópico en la obra de Julio Sarramián índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.9 no.22 Lisboa jun. 2018

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

A 'Série Trágica' de Flávio de Carvalho: o desenho como urgência e elaboração

The 'Série Trágica' of Flávio de Carvalho: drawing as an emergency and a process

 

Marilice Corona*

*Brasil, artista visual.

AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes, Departamento de Artes Visuais, Programa de PósGraduação em Artes Visuais. Rua Senhor dos Passos 248, Bairro Centro, Porto Alegre, RS, Cep CEP 90020-180, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Este artigo tem como objetivo analisar alguns aspectos da série de desenhos que fazem parte de A Série Trágica — Minha Mãe Morrendo, (1947), do artista brasileiro Flávio de Carvalho, (1899-1973). Busca-se refletir sobre o processo, a expressão e força da linguagem gráfica, bem como a função das legendas que fazem parte dessas imagens.

Palavras chave: Desenho / morte / expressão / urgência.

 

ABSTRACT:

This article aims to analyze some aspects of the series of drawings that are part of The Tragic Series — My Mother Dying, (1947), by Brazilian artist Flávio de Carvalho, (18991973). It is intended to reflect on the process, the expression and strength of the graphic language, as well as the function of the subtitles that are part of these images.

Keywords: Drawing / death / expression / urgency

 

Este artigo tem como objetivo analisar alguns aspectos da chamada A Série Trágica — Minha Mãe Morrendo, (1947), do artista brasileiro Flávio de Carvalho (Barra Mansa, 1899 — Valinhos, 1973). Carvalho, filho de uma abastada família de cafeicultores, nasce em 1899, em Barra Mansa, no interior do Rio de Janeiro. Realizou seus estudos no exterior — de 1911-14 na França, e de 1914-22 na Inglaterra — retornando ao Brasil formado em engenharia e com uma sólida bagagem cultural. De personalidade curiosa e inquieta, em paralelo aos seus estudos relativos às ciências da construção na Inglaterra, frequentava também aulas de pintura na King Edward The Seventh School of Fine Arts.

Segundo a curadora Luzia Portinari Greggio, Flávio de Carvalho foi um verdadeiro revolucionário que "tumultuou" o cenário artístico paulista nas décadas de 30 a 50 do século passado. Era possuidor de uma especial formação erudita "que abrangia sua formação em ciências exatas de engenheiro/arquiteto e invadia áreas da cultura e ciências sociais, como antropologia, psicologia, filosofia e artes" (Greggio, 1912:19).

Suas obras e ações tinham caráter provocativo. Além de trazer a público suas ideias, suas "experiências" estavam a serviço de "conhecer os meandros psicológicos do homem." (Greggio, 1912:21). Apontado como um dos primeiros performers da arte brasileira, é bastante conhecido por sua Experiência nº2 — Procissão de Corpus Christi, de 1931 e Experiência nº3 New Look, de 1956. Toda sua produção, nos mais variados campos, evidencia sua postura atenta e crítica aos padrões de comportamento e aos tabus que envolvem o homem e a cultura. Os desenhos que compõe a Série Trágica não fogem à regra.

Meu primeiro encontro com seus desenhos ocorreu em 1985, por ocasião da 18ª Bienal Internacional de São Paulo. Estava na metade do curso de Artes Plásticas no Instituto de Artes da UFRGS, e era minha primeira visita a Bienal. Naquela época, presenciávamos a forte retomada da pintura figurativa não apenas no Brasil como no Mundo. Sheila Lerner, a então curadora Geral, reúniu importantes nomes do cenário nacional e internacional e a pintura se faz presente de modo expressivo. Importantes nomes ligados ao neo-expressionismo alemão e à transvanguarda italiana estavam presentes na mostra, sendo que boa parte dos artistas brasileiros da chamada Geração 80 firmaram ali seus nomes.

Tendo como tema "O homem e a vida", a 18ª Bienal se fez acompanhar, também, de 10 exposições especiais estreitamente vinculadas ao tema proposto. Dentre estas, uma chamara muito minha atenção: Expressionismo no Brasil: heranças e afinidades, com curadoria de Stella Teixeira de Barros e Ivo Mesquita. Tratava-se de uma exposição que pretendia dar a ver a influência e os desdobramentos sobre a arte brasileira de uma das mais importantes vertentes modernas europeias do início do século XX. Conforme os curadores, o objetivo dessa mostra, que reuniu 78 artistas brasileiros modernos e contemporâneos, era

(…) oferecer uma visão do Expressionismo — uma das vertentes da modernidade em nível internacional — e a marca decisiva dele na formação e desenvolvimento das artes plásticas contemporâneas no Brasil. (…) o objetivo não era inventariar ou descrever visualmente sua evolução histórica, mas sim apontar as alternativas que esse projeto suscita na constituição da visualidade brasileira, desde o modernismo de 22, que o descobre, até o seu "revival" nos dias de hoje [1985], como uma das expressões da modernidade. (Barros e Masquita, 1985:146)

Dentre esses 78 artistas, estava Flávio Rezende de Carvalho representado por sua Série Trágica de Desenhos — Minha Mãe Morrendo. A série, composta por nove desenhos de observação nos quais Carvalho registra os estertores da mãe, apresentou-se a mim como um soco no peito. Os desenhos em si já eram impactantes sendo que, ao ler a legenda, o aspecto trágico se intensificou ainda mais. Não apenas pelo assunto representado, pelo resultado, mas por ser levada a pensar no processo. Já se passaram 32 anos e aquelas imagens são vivas em minha memória. Desde então esses desenhos me suscitam inúmeras questões. Provavelmente precisei acumular alguns anos para enfrentar com mais entendimento e relativismo tal assunto. A primeira questão que se coloca é: como alguém consegue desenhar de observação a perda da própria mãe? Essa, inclusive, a indagação comum e com a qual o público reagiu indignado quando em 1948 o artista as exibiu em sua mostra individual no MASP, em São Paulo. Terá sido uma postura fria ou a demonstração de uma urgência? Haveria um distanciamento que a tudo estetiza ou se trata da consciência devastadora da fugacidade da vida? Aqui a imagem já não pode se desvincular da palavra. Será que sentiríamos o mesmo impacto se estes desenhos não trouxessem legendas? E qual a função das legendas além de referência à figura ou ao tema?

Conforme nos conta Veronica Stigger (2009:2), em 19 de abril de 1947, Flávio de Carvalho estava em sua fazenda, em Valinhos, quando foi chamado às pressas a São Paulo. Sua mãe, Ophélia Crissiúma de Carvalho, que já padecia há algum tempo de um câncer doloroso, encontrava-se já agonizando. E foi diante dos estertores da mãe que Carvalho se postou a desenhá-la em seus últimos momentos. Segundo Rui Moreira Leite, o artista teria realizado diversos croquis em caneta sobre papel, de caráter rápido e de registro, que viriam a se transformar nos nove desenhos em carvão sobre papel que compõe a conhecida Série Trágica (Leite, 1998). Conforme esta informação, parece haver aqui dois momentos distintos: o primeiro, relativo ao croqui, estaria relacionado com uma ideia de urgência, de testemunho, de apreensão do tempo. O segundo, seria aquele relativo aos desenhos em carvão sobre papel, realizados posteriormente, a partir dos croquis. Estes já estariam relacionados à instância da elaboração. Elaboração não apenas relativa aos aspectos formais, mas à própria condição de toda representação: a presença de uma ausência ou a configuração de uma perda. Talvez o assunto, aqui, também seja a própia origem da imagem ou da representação. Seria possível dizer que representar a mãe morrendo seria, paradoxalmente, falar do nascimento da imagem. "O nascimento da imagem [imago] está envolvido com a morte", já nos disse Debray (1992:21).

Carvalho não registra a morte, mas os últimos instantes de vida de quem lhe deu a vida e, por que não dizer, a forma. Registra os últimos instantes de sua "matriz". Da testemunha primeira de sua própria existência. Daqueles tempos primeiros que nossa memória não alcança. Quem irá narrar os fatos que dizem respeito a sua origem? A legenda inscrita sobre o desenho não nos deixa esquecer que o drama evocado pertence a todos nós. Sendo que a frase será sempre lida em primeira pessoa: Minha mãe morrendo. Mas será que estes desenhos se tratam apenas do registro desses últimos instantes?

Por certo, tema e linguagem não poderiam estar mais amalgamados. O desenho de Flávio de Carvalho apresenta-se como traço, como gesto, como presença. Apresenta-se rápido e urgente como exige a situação. John Berger, em seu artigo "Dibujado para ese momento", nos conta sobre os desenhos que realizou de seu pai morto, no caixão, e, a partir dessa experiência, comenta:

(…) desenhar o que está realmente morto requer um sentido de urgência inclusive maior. O que estás desenhando não voltará a ser visto nunca mais, nem por ti nem por nenhuma outra pessoa. Esse momento é único no transcurso do tempo, do tempo passado e do tempo futuro: é a última oportunidade de desenhar o que não voltará a ser visível, o que ocorreu uma vez e não voltará a ocorrer. (Berger, 2012:51)

Mas com relação ao processo de desenhar, o autor nos lembra que "a imagem desenhada contém a experiência de olhar" (Berger, 2012:54) Impregnados de subjetividade, os desenhos de observação são sempre "uma construção que tem uma história" e são compostos por outros olhares advindos da própria experiência adquirida. Os desenhos, segundo Berger, revelam mais claramente o seu próprio processo de criação. Sendo assim, seria possível dizer que a Série Trágica representa, além do processo de morte da mãe, o próprio processo de percepção, subjetivação e criação do filho/artista. Sendo que o papel da legenda reforça, na verdade, a representação desse olhar. Existem diferenças entre os desenhos rápidos em caneta sobre papel (pertencentes a coleções particulares) e a chamada Série Trágica pertencente ao acervo do MAC-USP. As diferenças não se apresentam apenas no material, mas nas dimensões e na inclusão da mancha. Os "esboços" são compostos de inúmeros grafismos, linhas rápidas. Existe nesses desenhos a expressão de uma necessidade de vencer o tempo. Não há chance para apagar ou retocar. O próprio instrumento, a caneta, já lhe confere essa característica. A multiplicidade de linhas, afastamentos e aproximações, constroem a forma, os volumes, as luzes e as sombras. São cabeças que se misturam ao travesseiro, ao lençol, à cama. (ver imagens em http://www.bb.com.br/docs/pub/inst/dwn/Flavio2.pdf e os croquis em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141998000200018) Olhos e bocas semi-abertos expressam a condição daquele corpo. A força das linhas gritam, irradiam a agonia da mãe.

A Série pertencente ao MAC-USP já apresenta outras características. É composta por nove desenhos em carvão sobre papel, medindo 70 x 50cm. No limite do retângulo, o artista configurou apenas a cabeça da mãe. Não há corpo ou objetos acessórios. Só a cabeça, assim como o fez nos esboços. Difere da máscara mortuária, pois, ainda expressa alguns movimentos. Por vezes está reclinada ou jogada para trás ou, então, envolta pelos braços e mãos. Mas é a cabeça que ocupa todo o espaço papel e por vezes se dissolve em linhas tênues. É importante perceber que é na cabeça que se concentram os órgãos dos sentidos. Os orifícios, as aberturas que permitem a vida, a experiência, a comunicação com as coisas do mundo. Por onde interior e exterior se comunicam. Em seus desenhos, observa-se que o carvão assume maior intensidade nas narinas, na boca, nos olhos e ouvidos. Esses orifícios que permitem o comércio com o mundo. Diferentemente dos croquis, a mancha agora faz parte desses desenhos. O carvão, menos gráfico que a caneta, possibilita outras formas de claro-escruro e diferentes qualidades de linha. O preto do carvão também imprime maior contraste. Mas, nesses desenhos, o que me chama a atenção além da força do traço que continua a irradiar os estertores da mãe, são as zonas negras. Esses buracos que parecem perfurar o papel, conduzindo-nos a uma zona infinita. Principalmente as manchas negras que conformam as bocas desses desenhos. Imediatamente me fazem lembrar da boca de Laocoonte, tão comentada por Lessing. Essa boca que grita entreaberta. Esse buraco negro, cavidade na escultura que se configura através da mancha no desenho ou na pintura. Uma abertura que não deve ser expressa em demasia pois, corre o risco de expressar o asco ou se tornar caricata. Uma abertura que exige medida. A medida da dor a ser expressa pela linguagem. Conforme Seligmann–Silva,

A concepção clássica do belo possui como um de seus preceitos centrais, uma rigorosa censura quanto a representação das aberturas do corpo humano. O suave perfil grego, que impede avisualização das narinas, é uma dasviasde concretização desses preceitos. (…) Asaberturas constituem justamente os locais detranspiração do corpo, detroca com o mundo: de extravasamento, de obliteração dos limites (do corpo e dos limites em geral)

Por certo Lessing estava ocupado em observar e analisar o comedimento da expressão que deveria obedecer aos preceitos do ideal de beleza grego. Mas, ainda assim, ele nos faz olhar para a potência daquele detalhe. Na Série Trágica é o negrume contundente desses orifícios "que nos olham". Anunciam o rompimento da comunicação. Nada mais irá por ali passar. Será que a alma sai pela boca? Alguns mitos dizem que sim. Em Carvalho, a força e expressividade da linguagem sobrepõe-se aos ditames acadêmicos do desenho e estão a serviço do enfrentamento de um dos temas mais violentos e amedrontadores de nossa cultura: a morte. Aos olhos do senso comum, o artista desrespeita os códigos de conduta e torna pública uma dor que deveria se manter restrita ao espaço privado. Mas o artista estava alinhado às rupturas promovidas pelas vanguardas artísticas do início do século XX, rompendo com a tradição e questionando as regras da arte, seus temas clássicos e os costumes da cultura. Rompendo tabus, exibe os retratos da mãe morrendo. E, ao fazê-lo, não nos deixa esquecer nossa própria contingência. Exibe a "feiura" da morte em uma linguagem gráfica sem comedimento algum. Completamente inserido na modernidade brasileira, ainda permanece atual e perturbador, questionando os limites da arte, do homem e da vida.

 

Referências

Berger, John (2012) Sobre el dibujo. Barcelona: Gustavo Gili. ISBN 978-84-252-2465-2        [ Links ]

Carvalho, Flávio IMAGENS SÉRIE Trágica. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, ISBN: 978-85-7979-060-7 Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra35676/serie-tragica . [Consult. Em 2018-2-4]         [ Links ]

Debray, Régis (1992) Vida e morte da imagem. Rio de Janeiro: Editora Vozes. ISBN 85.326.1092-7        [ Links ]

Greggio, Luzia Portinari (2012) Catálogo da Exposição Flávio de Carvalho: A revolução moderna no Brasil. São Paulo: Gráfica e Editora GSA. O catálogo também está disponível em http://www.bb.com.br/docs/pub/inst/dwn/Flavio2.pdf [Consult. 2018-2-4)        [ Links ]

Leite, Rui Moreira (1998) "Modernismo e Vanguarda: o caso Flávio de Carvalho." Revista Estudos Avançados vol.12 no.33 São Paulo: Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo — Print version ISSN 0103-4014On-line version ISSN 1806-9592        [ Links ]

Osório, Luiz Camillo (2000) Flavio de Carvalho. São Paulo: Cosac & Naify. ISBN 85-7503-018-3        [ Links ]

Stigger, Veronica (2009) "Retratos dentro da morte: a Série Trágica de Flávio de Carvalho". Revista Crítica Cultural. Vol. 4, (2), Universidade do Sul de Santa Catarina, Santa Catarina, ISSN 1980-6493. Disponível em http://www.portaldeperiodicos.unisul.br/index.php/Critica_Cultural/article/view/131. [Consult. em 2018-2-4]         [ Links ]

 

 

Enviado a 04 de janeiro de 2018 e aprovado a 17 de janeiro de 2018

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: mvcorona@terra.com.br (Marilice Corona)

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons