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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.9 no.22 Lisboa jun. 2018

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

A série Topofilia de James Kudo

The James Kudo's Topofilia series

 

Almerinda da Silva Lopes*

*Brasil, professora de história da arte, pesquisadora e curadora de exposições.

AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Centro de Artes (CAR), Departamento de Teoria da Arte e Música (DTAM). Av. Fernando Ferrari, 514 - Goiabeiras, Vitória - ES, 29075-910, Brasil

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Este artigo analisa um conjunto de obras denominado pela crítica Topofilia, de autoria do artista brasileiro James Kudo. Nessa série iniciada em 2009, o autor formaliza o embate entre duas culturas (a brasileira e a oriental), prestando tributo ao lugar do idílio, onde nasceu e viveu com a família de imigrantes e lavradores japoneses, que ajudaram a fundar a cidade, até serem expulsos, quando da construção da Usina Hidrelétrica "Três Irmãos", sobre o Rio Tietê, no qual submergiram as terras e a residência familiar na área rural, quando da inauguração da barragem em 1990.

Palavras-chave: Pintura contemporânea / topofilia / James Kudo / mestiçagem.

 

ABSTRACT:

This article analyzes a set of works denominated by the critic Topofilia, authored by the Brazilian artist James Kudo. In this series started in 2009, the author formalizes the clash between two cultures (the Brazilian and the Eastern), paying tribute to the place of the idyll, where he was born and lived with his family of Japanese immigrants and peasants, who helped to found the city, until when the "Três Irmãos» Hydroelectric Power Plant was built on the Tietê River, where the lands and the family residence in the countryside were submerged when the dam was opened in 1990.

Keywords: Contemporay painting / topofilia / James Kudo / mestizaje.

 

Introdução

O fascínio do brasileiro James Kudo pela pintura de paisagem nascia em paralelo à mudança do paradigma artístico com que o jovem se deparou no início de sua trajetória, na década de 1980, quando, após duas décadas de amplo domínio das práticas conceituais e de forte retração da pintura, esta retornava ao cenário artístico em grande estilo. Contradizendo os prognósticos dos apocalípticos que proclamaram a sua morte, a geração de jovens que então emergia redescobriu a praxe pictórica, contrapondo-a ao reducionismo fastidioso dos conceitualismos, e entendendo-a como meio privilegiado de reflexão. Com total liberdade, os novos pintores enveredariam, de maneira anacrônica e nômade, pelo legado imagético da história da arte, recente ou remoto. Formulavam novas abordagens e problemáticas, dialogando indistintamente com as gramáticas figurativas e abstratas, hibridizando diferentes tendências, estilos e processos pictóricos, sem estabelecer entre eles qualquer hierarquia.

Essa geração contrapunha também o fazer artesanal ao domínio tecnológico, que então se expandia, recorrendo à subjetividade e à teatralidade, à citação e à apropriação de imagens alegóricas ou extraídas de diversas fontes, subvertendo a unidade e a pureza formal da pintura moderna, "estilhaçando a cosmologia racional (…) e as bem comportadas relações espaço-tempo", considerados valores "muito estreitos, autoindulgentes e castradores" (Berman, 1986:29-30). No Brasil, a hibridização de processos e a heterogeneidade de códigos visuais de que se valeu essa geração de pintores, coincidia com o período de redemocratização do país, depois de vinte anos de ditadura militar. Para alguns teóricos, a pluralidade de referências estéticas realocadas pela pintura da década de 1980, não escondia a crise da própria arte. Mas para outros, a recorrência a histórias pessoais e à paisagem, de "vastos horizontes e intensa luminosidade", engendrada com generosas camadas de matéria, num convite a "um diálogo tátil", não deixava de ser uma tentativa de se rebelar "contra a ordem do terror, que se identificava com práticas como as do neoclassicismo (…)" e por ser, "não por acaso (…), frequentemente suja e caótica, seria definida como antiautoritária" (Morais apud Canongia, 2010:8-10).

Quando da emergência dessa pintura, cuja temática muitas vezes fazia referência ou identificava-se com as paisagens tropicais, e teve grande alcance no país, o jovem James Kudo (1967), objeto deste estudo, era ainda estudante da Escola de Belas Artes da capital paulista. Entretanto, ao longo de sua vida acadêmica teve contato com a volta à pintura, nas aulas, nos livros e em inúmeras exposições realizadas em museus, galerias e nas bienais de São Paulo, experiência fundamental para a definição de sua futura praxe produtiva.

 

1. A trajetória do artista e a opção pela pintura

Nascido em Pereira Barreto, cidade no interior do estado de São Paulo, que apesar de desprovida de museus, e carente de mostras nacionais e internacionais, o que não impediu que James Kudo cedo manifestasse interesse pela arte. Em 1980, deu-se o início da construção do grande lago da barragem da Usina Hidrelétrica "Três Irmãos", sobre o Rio Tietê, com 785 Km2, e dez anos depois, com a inauguração parcial da barragem, a localidade iria se transformar em uma ilha fluvial, fazendo submergir, inclusive, a casa construída pelo avô e as terras agrícolas que garantiam o sustento da família, obrigando-a a procurar outra fonte de subsistência na capital paulista.

A lembrança da destruição da natureza idílica jamais se apagaria da memória do jovem, a ponto de transformar-se na temática recorrente de suas obras, desde o início de sua trajetória criativa. Todavia, a retrospectiva do uruguaio Joaquim Torres-Garcia na Bienal de São Paulo (1992), causaria grande impacto sobre o artista, pela ousadia com que misturava signos figurais e elementos construtivos, homenageando-o em algumas de suas telas. Em Nova York (onde viveu e estudou entre 1992-1994), o jovem artista teve contato com o Expressionismo Abstrato, produzindo nos anos subsequentes pinturas de grandes dimensões, de formas orgânicas ou biomórficas, construídas com gestos pulsantes, em meio aos quais transpareciam elementos vegetais.

A partir do início da década seguinte o artista passaria a lançar um olhar anacrônico e renovado sobre a pintura de paisagem, recodificando elementos de seu lugar de origem retidos na memória. Mais que um retorno ao passado, tal temática injetava novo ânimo em sua pintura, pois, como observa Berman (1986: 34): o ato de lembrar pode ajudar-nos a encontrar as nossas raízes, para que possamos nos nutrir e nos renovar, tornando-nos "aptos a enfrentar as aventuras e perigos que estão por vir".

 

2. A Série Topofilia

Vale destacar inicialmente, que a série de pinturas assim denominada integra um conjunto extenso de paisagens sintéticas e fragmentárias, objetos e instalações, que remete às florestas tropicais e postula um painel de memórias da infância e da juventude do artista.

Genericamente denominada pela crítica de Topofilia, a série é o foco da reflexão deste estudo, por configurar-se como um significativo laboratório de pesquisa e referências materiais e imateriais, envolvendo a natureza cultural, romântica e imaginária do autor.

Iniciada por volta de 2009 e ainda não concluída, a palavra compósita que dá nome à série (topo + filia), remete a uma experiência positiva ou afetiva do indivíduo por um dado lugar ou paisagem ou ambiente natural (água, ar, terra), como observa o geógrafo sino-americano Yi-Fu Tuan. Para o teórico, o conceito de topofilia vincula-se a uma valoração cultural, decorrente da experiência, sentimentos, percepção e pensamento de quem construiu ou viveu nesse lugar, mas também por parte de quem os vê: "A cidade natal é um lugar íntimo. Pode ser simples, carecer de elegância arquitetônica e de encontro histórico, no entanto, nos ofendemos se um estranho a critica" (Tuan,1980: 160).

Em grande parte das composições da série, Kudo intercambia pintura e colagem, o que atribui a essas paisagens fragmentárias, ficcionais e imaginárias, um caráter peculiar. Põe em destaque ora folhagens rasteiras, ora árvores de grande porte, frondosas ou ressequidas, com os troncos cobertos de líquens. Em outras composições insere arcabouços de casas, elaboradas com estruturas sintéticas e geometrizadas, em estranhas projeções e rebatimentos, que remetem a dobraduras. Tanto parecem submergir na profundeza das águas límpidas e azuis, como sugerem estar se desintegrando, flanando no espaço ou presas às árvores.

Se a referência à casa ancestral não parece ser mera coincidência, as dimensões e a representação desses esquemas em planta baixa fazem lembrar cercados/arapucas, construídos para capturar pássaros ou pequenos roedores. Talvez se possa pensar também em armadilhas para prender os destruidores da natureza, confirmando, assim, um posicionamento político e irônico peculiar a esse e outros artistas contemporâneos.

A casa vai pouco a pouco deixando de ser uma estrutura fixa, libertando-se, em alguns trabalhos, do confinamento das telas, para assumir uma dimensão espacial site specific, integrando instalações/montagens com colagens de papel adesivo, que ocupam o espaço de paredes e pisos, ou que mesclam pintura e colagem. A casa também por assumir uma dimensão onírica, representada jorrando água, numa espécie desimulacro defonte, cujo líquido flui do interior desses arcabouços e se esparrama pelo chão, em gradações de azul. Se tais postulações não deixam de remeter à casa ancestral, que foi tragada pelo lago da Usina Três Irmãos, também assumem outros significados. Ao nomear de Puxadinhos, parte dos trabalhos protagonizados pela casa, Kudo faz referência às residências populares no país, que para acomodarem melhor a família, têm um novo cômodo agregado à área original da vivenda. Edificado sem planejamento prévio, a ideia de puxado explica o seu caráter precário ou improvisado. O artista formula, assim, através das diferentes alusões poéticas à paisagem e à casa, a relação entre tempo e espaço, vida e morte, passagem e persistência, destruição e reconstrução, natureza e cultura.

Vale destacar, porém, que o arquétipo ou esboço de casa e outros objetos que a habitam (mesas, cadeiras, armários) já estavam presentes em um conjunto de trabalhos (em técnica mista), produzido em 2003, em parceria com o americano e amigo do brasileiro, Bob Nugent (1947).

Kudo enfatiza a artificialidade das paisagens dessa série, através de cores ácidas, vivas e fluorescentes em chapas, cujas escalas tonais nem sempre são geradas por pigmentos naturais, mas através da colagem de adesivos plásticos, de diferentes texturas (Figura 1), (Figura 2, (Figura 3)). Recorre também à oposição entre elementos geométricos e figurativos (herança de Torres Garcia?) (Figura 4, Figura 5, Figura 6), construídos às vezes a com tal precisão de contornos, para ressaltar tratar-se de formas recortadas. Em outras telas, lança mão de um detalhamento próximo do realismo e escalas monocromáticas, criando paisagens que instigam e inquietam pelo preciosismo técnico e pelo silêncio que delas emana.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Contrapõe também às árvores e a outros elementos da natureza, objetos e códigos simbólicos, abstratos e figurativos: caveiras, pássaros, motosserras, revólveres apontados para o observador, paredes de tijolos. As caveiras são formas recorrentes, que tanto se sobrepõem às paisagens como se transformam no suporte das mesmas. As árvores, folhagens e esquemas/casas tanto são pintados simulando madeira industrial ou fórmica, como resultam do recorte e colagem, de papeis que imitam os mesmos materiais. Em meio a esses elementos construídos com certo rigor, esboçam-se formas sinuosas ou sensuais, em gradações de azul celeste, cinza, verde ou de colorido mais estridente.

Nesse último caso, as cores derivam de estamparias banais, entre os quais o xadrez de toalhas usadas sobre as mesas das casas populares ou dos tecidos das roupas usadas pelo homem do campo, sinalizando, assim, para a memória afetiva. Mas, se é com esses elementos insólitos e ficcionais que o autor parece sugerir ora o pôr do sol ora o movimento da água, também se propõe romper a linha tênue que separa real e irreal, objetividade e subjetividade aparência e essência, realidade e ficção, transição e fixidez, memória e imaginação.

 

Considerações finais:

O jovem James Kudo manteve durante uma fase importante de sua vida, forte relação de pertencimento com o Rio Tietê e a paisagem natural. A construção da Usina Hidrelétrica de Três Irmãos destruiu a paisagem, a identidade e as relações afetivas que o artista (sansei) e os imigrantes japoneses, que ali se instalaram mantinham com o lugar. A ideia de lugar se constitui, quando atribuímos significado a um dado espaço, transformando-o no lugar dos sonhos, dos afetos, esperanças, ações e possibilidade de realização, pois quando dizemos "esse é o lugar, extrapolamos a condição de espaço e atribuímos um sentido cultural, subjetivo e muito próprio ao exercício de tal localização" (Cunha, 2008:184).

O impacto causado pela interferência na geografia e na natureza identitária do artista, mantém-se em sua memória por força de uma mediação simbólica com o lugar de origem, o que transforma suas paisagens pictóricas em palimpsestos de referências e de vivências. O artista reinventa, assim, paisagens cosmológicas em que não há a presença do homem, expulso ou destruído pelo progresso, o que explica a marcante presença de caveiras e ossos em suas pinturas, montagens e objetos. Kudo evoca um passado que não mais existe, realocando códigos extraídos da linguagem pop, da abstração e de outros extratos da história da arte ocidental, formulando composições modulares e sequenciais, de exímia execução, que, em alguns casos, lembram jogos de montar ou quebra-cabeças, que não deixam de remeter ao rigor da cultura japonesa.

Se a situação de exílio não possibilita aos orientais se considerarem pertencentes nem ao país de origem nem ao de adoção, a família de James Kudo, obrigada a deixar o lugar onde viveu e trabalhou por longos anos, em um reduto de imigrantes orientais, onde todos preservavam os hábitos, costumes e a língua materna, deixou marcas profundas inclusive no jovem, que transparecem em sua obra artística como essência reveladora de uma estética mestiça ou híbrida,

(…) assim como muitos artistas contemporâneos migram, sofrendo com isso mutações em si e em suas produções, também as formas, as técnicas e os materiais migram de uma obra à outra, criando uma poética da transitoriedade e da diferença. Insere-se de modo transversal nessa problemática, atravessando-a, a criação de cartografias, imaginárias ou ressignificadas, que marcam a poética das migrações (…) (Cattani, 2007:31).

Isso permite entender a série Topofilia, para além de um conjunto de paisagens de cores e formas inusitadas, pois além de remeterem a aspectos do mundo analógico, situam-se como ideia simbólica de um mundo particular, que atesta ou "testemunha o enfrentamento de duas culturas" (Corajoud, 1995:148)

 

Referências

Berman, Marshall (2007). Tudo o que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. Trad. Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras. ISBN 97885880862898        [ Links ]

Canongia, Ligia (2010). Anos 80. Embates de uma geração. São Paulo: Francisco Alves. ISBN. 9788589365253        [ Links ]

Cattani, Icleia B. (2007) "Mestiçagens na arte contemporânea: conceitos e questões", in Cattani, I. B. (Org.). Mestiçagens na Arte Contemporânea. Porto Alegre: Editora da UFRGS, p. 21-34. ISBN 9788570259684        [ Links ]

Cunha, Maria Isabel (2008). "Os conceitos de espaço, lugar e território nos processos analíticos da formação de docentes universitários". Educação Unisinos, v. 12, n. 3, p.182-6.         [ Links ]

Corajoud, Michel. (1995). "Le Paysage, c'est l'endroit où le ciel et la terre se touchent", In: Roger, Alain (1995). La Théorie du paysage em France. Seyssel (France): Champ Vallon, p. 142-52.         [ Links ]

Tuan, Ji-Fu (2013). Topofilia. Londrina (PR): EDUEL. ISBN 9788572166270        [ Links ]

 

 

Enviado a 04 de janeiro de 2018 e aprovado a 17 de janeiro de 2018

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: almerinda.lopes@ufes.br (Almerinda da Silva Lopes)

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