SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.9 número22La extensión del espacio en la pintura de Alexis Marguerite Teplin¿Un trapo roto, una remera sucia o una genialidad?: Desafíos políticos en la obra de Agustina Quiles índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.9 no.22 Lisboa jun. 2018

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Montagem e efeito filme na narrativa fotográfica 'A Ira de Deus' de Alfredo Nicolaiewsky

Montage and film effect in the photographic narrative 'The God's Ire', by Alfredo Nicolaiewsky

 

Elaine Tedesco*

*Brasil, artista plástica com produção em fotografia, instalação e videoperformance.

AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Instituto de Artes, Departamento de Artes Visuais e Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais. Rua Senhor dos Passos, 246, CEP 90000-000, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

O presente texto apresenta uma leitura da obra A Ira de Deus, de Alfredo Nicolaiewsky. A partir de depoimentos do artista em entrevistas e dos conceitos "efeito filme", de Philippe Dubois; "mestiçagem", de Icleia Cattani; e "montagem dialética e montagem simbólica", de Jacques Rancière, procurou-se analisar como a montagem com justaposição de fotografias, realizada a partir da apropriação de cenas de filmes disponíveis na internet, resulta em uma narrativa que mistura tempos e diferentes histórias, e oferece ao observador a possibilidade de mentalmente remontar as cenas.

Palavras chave: Alfredo Nicolaiewsky / filme / fotografia / montagem / narrativa.

 

ABSTRACT:

This paper presents one appreciation of The God's Ire, by Alfredo Nicolaiewsky. Running from the artist's interviews and dealing with the concepts "film effect", by Philippe Dubois; "miscegenation", by Icleia Cattani; and "dialectical montage and symbolic montage" by Jacques Rancière, we analyze how the montage using photographic juxtaposition, made with the appropriation of movie still's available on the Internet, results in a narrative that compound times and stories, and that offers to the viewer the possibility of mentally reassembly the scenes.

Keywords: Alfredo Nicolaiewsky / movie / montage / narrative / photography.

 

Alfredo Nicolaiewsky nasceu em 1952, graduou-se em arquitetura e cursou mestrado e doutorado em Artes Visuais, na área de Poéticas Visuais, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde, também, foi diretor do Instituto de Artes por oito anos.

No início de sua carreira, sua obra constituiu-se tendo como base o desenho. Em seu processo de trabalho com essa linguagem, a fotografia foi empregada, desde os anos de 1980, como um meio para chegar à forma desejada.

Na série desenvolvida entre 1982 e 1983, os desenhos eram feitos sobre papel retangular e continham uma subdivisão (Figura 1). Na menor área do retângulo, numa faixa lateral, havia a presença de detalhes de corpos masculinos sensuais e nus. Já no centro da área maior, composta por um fundo estampado com flores, o que se aproximava do aspecto de um tecido ou de um papel de parede, havia um objeto da cultura popular remetendo ao universo doméstico.

 

 

A aparência dos desenhos remete aos princípios de colagem e fotomontagem, nos quais convivem elementos díspares, heterogêneos, sem nexo direto entre si, que associados estabelecem uma familiaridade, uma analogia ocasional, como sugere a definição de montagem simbólica proposta por Jacques Rancière. Segundo o autor, "a maneira simbolista junta os elementos na forma do mistério […] mistério é uma categoria estética elaborada por Mallarmé […] é uma pequena máquina de teatro que fabrica analogia". (Rancière, 2011:79).

Tal familiaridade em analogia ocasional é evidenciada no trabalho de Nicolaiewsky pela copresença entre a imagem da pele nua e os objetos de gosto popular, associando o corpo masculino sensual aos objetos kitsch, parecendo que o quadro estampado é um plano que encobre o resto, deixando uma fresta pela qual podemos espiar os homens, dessa forma, colocando-nos na posição de voyeur. Trata-se de um ar doméstico, sugerindo espaços privados de um cotidiano nacional homoerótico.

Nesses desenhos, em que o tema, também, é a memória do artista, a parte que expõe o corpo masculino é minuciosamente tratada e aproxima-se da estética hiperrealista, ao passo que a parte que contém os motivos de flores em repetição apresenta inscrições de palavras soltas, frases e desenhos como borboletas, cobras, nuvens, cavalos, Sol, além de seu nome, juntamente com o objeto centralizado (um quadrinho com fotografias do artista quando bebê, o vaso de flores, o laçador, ou o São Jorge), segue uma estética de elaboração mais livre do traço, assim como o uso da mancha.

Ao escrever sobre a obra de Nicolaiewsky, apontando a junção de heterogêneos sob o princípio da mestiçagem, Icleia Cattani nomeia essa operação de agregações —

 

[…] uma obra que se instala sobre o signo das agregações sucessivas de elementos, aglutinados por associações mentais do artista (que mobilizam lugares do afeto, da memória subjetiva individual, mas também, associações irônicas que comentam as circunstâncias do país e das condições da criação que nele ocorre). (Cattani, apud Farias, 2004:70).

Tais agregações com elementos, que têm como referência origens culturais distintas — popular, erudito e de cultura de massa –; a repetição como padrão; a junção de partes aparentemente não compatíveis; a memória e a repetição, vêm sendo desdobradas pelo artista desde o final dos anos de 1990 com, também, o uso da fotografia.

Entre 1995 e 1997, ele desenvolveu a série Mistura fina (Figura 2), parte de seu trabalho de mestrado, ampliando a complexidade das misturas entre coisas de origens diversas, implicando elementos da memória pessoal e objetos da cultura. São trabalhos que justapõem pinturas, desenhos, objetos e fotografias, uma obra mestiça, como define Icleia Cattani (Cattani, 2007). Mais tarde, esses mesmos elementos foram trabalhados por meio da apropriação, justaposição, manipulação e passagem de um meio a outro em obras nas quais a captura de cenas de filmes é o ponto de partida e a impressão fotográfica, o ponto final. Nestas obras, Alfredo Nicolaiewsky se apropria de imagens de filmes de diferentes diretores, as converte em imagens fixas — retirando-as da continuidade do filme e tornando-as stills fotográficos — seleciona grupos de imagens e justapõe-nas. A procedimentos como esse, nos quais por um gesto, movido por uma tecnologia, extrai-se do corpo do filme um fotograma, um frame, tornando estático um fragmento do movimento, Dubois nomeia congelamento da imagem, "uma operação estranha, no sentido quase cirúrgico"(Dubois, 2004:232). O autor está referindo-se ao filme com película, e assim dirige sua reflexão sobre o congelamento associado ao fotograma, então definindo como punctun o ponto exato de passagem entre a foto e o cinema, o objeto sonhado de abolição dos limites entre cinema e fotografia.

 

 

O conjunto de obras que Alfredo Nicolaiewsky vem desenvolvendo com o uso da fotografia, desde então, embora não tenha como matéria-prima a película cinematográfica propriamente dita, inscreve-se por meio da imagem eletrônica no espectro de obras artísticas que fazem referência ao fotograma e tem a narrativa cinematográfica como raiz.

No artigo "Efeito filme: figuras, matérias e formas do cinema na fotografia", ao escrever sobre uma curadoria que realizou, Philippe Dubois comenta que visitar essa exposição equivaleria a ver um filme imaginário nas diversas salas. "Efeito filme" é, para o autor, uma questão de imagem, de dispositivo, tanto quanto de intelecção, de sensação e de emoção. Em tal exposição, o autor propunha a articulação entre cinema e fotografia num único corpo figural "como o desdobramento híbrido de um mesmo conjunto figural de formas e de matérias"(Dubois, 2004: 230). Este é o caso da obra Três Histórias — Via sacra, de Alfredo Nicolaiewsky, apresentada pela primeira vez no Centro Cultural Mariantônia/USP, em 2007, na exposição individual intitulada "O Artista como Editor", que teve curadoria de Tadeu Chiarelli. É um conjunto de fotografias composto por 12 tiras verticais, cada uma delas com três imagens fotográficas. São três sequências horizontais distintas, justapostas e intervaladas, medindo no total 150 cm de altura por 900 cm de largura (Figura 3).

 

 

O trabalho traz três narrativas simultâneas que se implicam e contaminam-se. A parte superior é uma sequência da vida de Jesus Cristo, da anunciação à ressurreição, as imagens são de um filme de 1905, de diretor desconhecido. Cada fotografia apresenta uma cena icônica da vida de Cristo, o filme em preto e branco foi colorizado em algumas partes; e os fotogramas mais parecem fotografias tomadas em estúdio. A sequência de fotografias da base compõe-se por enquadramento em plano fechado, centralizado, no qual vemos o rosto de uma mulher branca, de cabelos ruivos, vestindo blusa azul, diante de um fundo azul com algumas flores artificiais. O sorriso da personagem, seu olhar perdido no horizonte e os suaves movimentos de sua boca sugerem que ela está a cantarolar. São imagens do mesmo take. As 12 fotografias sinalizam a distensão da tomada, realizada pela decomposição do movimento, separando cada gesto da personagem numa imagem fixa, como um stopmotion desmontado. No conjunto da parte central, a sequência é composta por uma edição complexa, que articula filmes realizados em períodos diferentes, contendo múltiplos pontos de vista. Segundo Nicolaiewsky, "a linha horizontal média sugere uma narrativa independente, que pode, porém, ser relacionada com as imagens anteriormente citadas, e que são apresentadas acima e abaixo delas"(Nicolaiewsky, 2017). São imagens com planos em close ao lado de planos abertos, cenas em interiores ao lado de externas, como se estivessem seguindo lições de montagem eisensteinianas, usando como base a ideia de colisão entre duas partes. Trata-se de uma indicação de movimentos, associando fatos à descrição de possíveis lugares nos quais a emoção das personagens, seus olhares em close-up ou espiando algo acenam para a existência de um enigma, criando uma narrativa de suspense.

 

A Ira de Deus

Em 2015, Alfredo Nicolaiewsky foi para Portugal realizar o estágio Pós-Doutoral na Universidade de Lisboa, com supervisão do Pro. Dr. João Paulo Queiroz. Para seu projeto, planejou dar continuidade ao mesmo princípio estrutural empregado em Três histórias: Via sacra, uma justaposição de três sequências temporais oriundas de filmes distintos, com o objetivo de criar narrativas visuais a partir de imagens apropriadas do cinema, porém em uma forma espacial mais ampla, projetada para a Sacristia da Igreja de São Roque — Lisboa, e tendo como temática o terremoto de Lisboa de 1755 (Nicolaiewsky, 2017).

O tema escolhido apresentou algumas dificuldades quanto à escolha de imagens. As reconstituições fílmicas do Terremoto de 1755, não transmitiam, quando transformadas em imagens fixas, a grandeza da catástrofe. Porém, como estava trabalhando a partir de imagens captadas no Youtube, começaram a aparecer vídeos jornalísticos e ficcionais de tragédias contemporâneas semelhantes: terremotos e o tsunami em 2011 no Japão ou o incêndio no Chiado em 1988 (Nicolaiewski, 2016).

O tríptico, propriamente dito, é constituído por imagens do terremoto (Figura 4), do maremoto (Figura 5) e do incêndio (Figura 6). São nove sequências fotográficas formadas por 63 cenas, ordenadas em três blocos de sete trípticos verticais, cada um. Há relativa matemática aqui, um jogo de múltiplos de três, resultando num tríptico horizontal composto por 21 trípticos verticais, impresso com pigmento mineral em papel somerset velvet 225 gr. em 100 cm de altura e com a largura final em 1400 cm.

 

 

 

 

 

 

A linha de cima refere-se diretamente ao conteúdo (terremoto, maremoto, incêndio), a linha do meio, que perpassa os três episódios, é formada principalmente por imagens de filmes portugueses (dos diretores: José Leitão de Barros, Manoel de Oliveira, Carlos Carrera, João Botellho e Miguel Gomes). Cada uma das peças do tríptico traz uma narrativa específica nesta linha, constituída por cenas de três filmes, em média. A linha inferior apresenta em cada parte do tríptico, uma única cena, seguindo a mesma operação de distensão do movimento já usada em Três histórias, Via sacra, de 2007.

O que é narrado? Quando aconteceu? Não há um sentido único, há um multidirecionamento do tempo, pois, na internet (de onde foram capturados os stills), o acesso permitido pelas plataformas faz convergir imagens de outras épocas que, por sua vez, contam histórias de outras tantas. O tríptico produzido trata de uma ficção distópica, uma tragédia na qual as forças da natureza movimentam destruição, rupturas e afastamentos sob o signo da montagem transmidiática ou montagem por reconversões fílmicas, que é como poderiam ser nomeados estes transportes de um meio a outro, do filme passando pela imagem eletrônica, sua flutuação e reconversão em imagem estática, resultando numa sequencia de colagens de cenas, uma montagem fotográfica.

Em a Ira de Deus, Nicolaiewsky mostra o resultado de um processo híbrido encadeando imagens moventes e imagens estáticas, perpassado pelo sistema eletrônico em diferentes etapas, desestabilizando circunscrições classificatórias em meios específicos. Nessas sequências, empregando a lógica associativa da justaposição, heterogêneos são aproximados, acionando, simultaneamente, montagem simbólica e montagem dialética.

Alfredo Nicolaiewsky está construindo narrativas fotográficas que se superpõem, nessas obras, uma simultaneidade é exposta, transmitindo um cruzamento de histórias em que se observa uma condensação de sentidos e muitas contrações e intervalos temporais. Esses intervalos, articulados sob a égide das elipses existentes entre as imagens nas sequências horizontais, os saltos temáticos presentes nas sequências verticais e suas justaposições, constituem uma narrativa ramificada e multitemporal. É uma gramática visual única, ancorada na transmigração eletrônica das imagens, que convida o observador a animar a obra e a experienciar certo efeito filme remontando a Ira de Deus.

 

Referências

Cattani, Icleia Borsa (2004) Icleia Cattani (Coleção pensamento crítico). Rio de Janeiro: FUNARTE.         [ Links ]

Cattani, Icleia Borsa (Org.). (2007) Mestiçagens na arte contemporânea. Porto Alegre: Editora da UFRGS.         [ Links ]

Dubois, Philippe (2004) "Efeito filme: figuras, matérias e formas do cinema na fotografia", In: Santos, Alexandre & Dos Santos, Maria Ivone (Org.). A Fotografia nos processos artísticos contemporâneos. Porto Alegre: UFRGS Editora.         [ Links ]

Nicolaiewsky, Alfredo (2016) Relatório final Pós Doutoramento. Disponível na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa.         [ Links ]

Nicolaiewsky, Alfredo (2017) Alfredo Nicolaiewsky e a Ira de Deus: suas prequelas e sequelas. Porto Alegre: UFRGS Editora.         [ Links ]

Rancière, Jaques (2011) O destino das imagens. Lisboa: Orfeu Negro.         [ Links ]

 

 

Enviado a 28 de dezembro de 2018 e aprovado a 17 de janeiro de 2018

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: elaine.tedesco@yahoo.com.br (Elaine Tedesco)

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons