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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.9 no.21 Lisboa mar. 2018

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Escultura para o corpo: Maria José Oliveira

Sculpture for the body: Maria José Oliveira

 

Isabel Ribeiro de Albuquerque*

*Portugal, artista visual, pintora e joalheira.

AFILIAÇÃO: Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas Artes, Centro de investigação e Estudos em Belas-Artes. Largo da Academia Nacional de Belas Artes 14, 1200-005 Lisboa, Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Neste artigo pretende analisar-se um conjunto de trabalhos de Maria José Oliveira que estão na fronteira da Escultura e da Joalharia. Dado que algumas destas peças pressupõem um corpo para as usarem, podendo, embora, as mesmas ser autónomas, será mais apropriado chamar a este corpo de trabalho Escultura para o corpo. São peças mistas, que jogam com o interior/ exterior e a presença/ausência do corpo. É uma obra em transição constituída por objetos versáteis que se moldam ao corpo, vestindo-o e reconfigurando-o.

Palavras chave: Escultura / joalharia / corpo / interior / exterior / presença / ausência / transição.

 

ABSTRACT:

In this article we intend to analyze a set of works by Maria José Oliveira that are on the border of Sculpture and Jewelry. Since some of these pieces presuppose a body to use them, although they may be autonomous, it will be more appropriate to call this group of works Sculpture for the body. They are mixed pieces, which play with the interior / exterior and the presence / absence of the body. It's a work in transition constituted by versatile objects that mold to the body, dressing and reconfiguring it.

Keywords: Sculpture / jewelry / body / interior / exterior / presence / absence / transition.

 

Introdução

Maria José Oliveira tem uma vasta criação que abarca a cerâmica, pintura, escultura, objetos, formando um corpo de trabalho que será o objeto deste artigo — as peças próximas da joalharia mas que estão para além do conceito de joalharia. Este conjunto de objetos já foi denominado como "(não) joias" por Cristina Filipe. Receberam também a designação de "anti-joalharia" por Sílvia Chicó, e ainda o nome de Ourivesaria Têxtil título dado à exposição feita na Artefacto 3, em 1988.

Neste artigo não se pretende catalogar este trabalho, pois essa pretensão foi resolvida teoricamente pelo Pós-Modernismo com a hibridização de géneros. Pretende-se, portanto, dilucidar sobre as fronteiras que poderão fornecer uma identidade a partir das características tipológicas destes artefactos.

A obra de Maria José é difícil de espartilhar conceptualmente porque o desenho pode ser pintura sobre papel ou colagem e a pintura é muitas vezes tridimensional. Dado que algumas destas peças pressupõem um corpo para as usarem, podendo, embora, as mesmas ser autónomas, será mais apropriado chamar a este corpo de trabalho Escultura para o corpo, uma classificação que resulta da reflexão sobre as vanguardas do século XX e da anunciada morte das disciplinas artísticas (Sardo, 2017).

 

Escultura para o corpo

As peças que constituem a sua obra de criação partem da tela crua, de materiais naturais como os fios de linho e de algodão com pintura de argila e óxidos. São peças que se prendem com a poética do mole em contraponto ao duro do metal, o qual apenas se vislumbra nas aplicações de folha de ouro e nos parafusos.

A obra Escultura Habitada (Figura 1) remete para um corpo simultaneamente interior/exterior, como um corpo esvaziado ou como se o esqueleto tivesse sido despido e pendurado, ideia que René Magritte já tinha apresentado em A Filosofia no Quarto de Dormir (1966), pintando um vestido pendurado como se tivesse levado com ele a forma do corpo que o vestia. Esta ideia de uma pele ou de um esqueleto que se despe também se encontra em Skelaton Dress, (Figura 2) de Elsa Schiaparelli, artista influenciada pelo cubismo e o surrealismo que achava que a moda não podia estar desvinculada das artes plásticas contemporâneas, sobretudo da pintura. Fundindo a moda com a arte de alguns artistas, que contratou, ofereceu às mulheres uma nova opção de vestir.

 

 

 

 

Escultura Habitada ou Corpo Costelas (Figura 3) que Maria José apresenta penduradas do teto, pode remeter-nos para a obra de Eva Hesse, Right After (Figura 4) onde questiona o lugar da obra de arte porque o seu trabalho está focado na fronteira que existe entre a pintura e a escultura (Kraus, 2000: 100).

 

 

 

 

Desde os anos 60 que o campo da escultura se foi alargando, quer em relação às técnicas utilizadas quer aos suportes. Em 1966, Lucy Lippard organiza uma exposição com o nome de Abstração Excêntrica na qual incluiu a obra de Eva Hessa, admitindo que o caracter pictórico da sua obra deveria ser avaliado como escultura. O mesmo se passa em relação a grande parte da obra de Maria José Oliveira que abraça a joalharia contemporânea como forma de criar uma identidade porque, no dizer da época, queria fazer "coisas" que não sabia o que eram ou que não tinham ainda denominação. Enquanto Eva Hesse (1936-1970) se move entre o minimalismo ou a abstração geométrica e trabalha na transição entre a pintura e a escultura entrando no campo do absurdo como categoria estética ligada ao abstracionismo excêntrico, Maria José cria peças de transição com um caracter fora do comum que poderíamos catalogar como "formalismo" excêntrico, dado que se pode dizer que neste corpo de trabalho nunca abandonou a forma, mesmo que esvaziada do seu interior.

Nesta época produziram-se muitas mudanças sociais e culturais que se refletiram na arte e muito em particular na joalharia de cuja produção deixou de ser um símbolo de riqueza material para se tornar um campo aberto à expressão de novas ideias e de experimentação de novos materiais e técnicas. Na Holanda e não só, "o design de joalharia passou aos poucos de artesanato tradicional para uma linguagem visual, mais ao menos relacionada com o corpo humano" (Unger, 1990:9) como por exemplo Lam (Louise Antonia Maria) de Wolf (Figura 5) ou Caroline Broadhead (Figura 6) que nos anos 80 criaram peças de joalharia têxtil para vestir. A joalharia contemporânea vai adquirindo significado porque os seus criadores valorizam mais o ato criativo em detrimento da sua feitura e dos materiais convencionais, criando uma relação complexa entre a peça e o seu portador. Contemplando este tipo de obras podem colocar-se perguntas, tais como: Como foi criada? Como é que alguém a vai usar interpretando o seu significado?

 

 

 

 

Qual o seu valor? Quem a vai usar? Como é que as intenções do seu criador se cruzam com os valores de quem a irá usar? (Cheung, 2006: 12).

Estas questões são pertinentes em relação às peças de Maria José que exploram o limite entre a joalharia e a escultura e também, a fronteira entre a moda e a joalharia. Dado que os materiais usados são primevos, o seu valor prende-se com o ato criativo, como qualquer objeto de arte e não com o valor intrínseco dos seus materiais.

Contudo há peças que são pensadas para não serem usadas por alguém como é o caso da túnica que M.J. Oliveira criou para a exposição À procura de Maria, relativa aos 300 anos do Patriarcado de Lisboa e os 100 de Fátima (Figura 7). Concebida para a uma parede da sacristia da Igreja de Nossa Senhora da Conceição Velha, na rua da Alfândega de Lisboa, esta túnica pendurada num cabide, feita em tripa e envolta por outra túnica de tarlatana, evoca o mistério da Ascensão pela ausência do corpo no vestido despido e porque evoca a existência de um corpo no plano divino.

 

 

Esta peça identifica-se com outras dum mesmo universo como o vestido de tripa de vaca, o colete de Frida Kahlo ou Mais perto de ti (2004), uma blusa apenas com uma manga muito comprida para poder alcançar o outro. São objetos de funcionalidade absurda no plano da lógica formal, que jogam com o interior/ exterior ou com a presença/ausência do corpo.

Outras peças trazem para a superfície o interior do corpo e não falamos apenas das Costelas e da Coluna vertebral, mas do Antebraço (2014), feito de tela crua e com fecho e dobradiças de latão, simulando a mecânica muscular do braço, através de elementos tubulares tendo no seu interior um vazio que poderá conter um antebraço real. É como se a peça pudesse ser uma camada interior do corpo para ser usada sobre o corpo. Esta ideia de trazer o interior para o exterior pode ver-se também nas golas que foram feitas a partir do material interior de um casaco de homem, num jogo de texturas entre entretelas, pasta de enchumaço cinzento, tela crua e linhas (Figura 8). Ou ainda outra mais imponente que faz lembrar um toucado egípcio, em tela crua e desenhada a grafite que contem um elemento rotativo (Figura 9 e Figura 10). Somam-se outras joias de pano, outras golas e punhos como fragmentos de vestuário, ou a Dura-máter, a Pia-máter e a Aracnóide que, pela dimensão, criam uma envolvência com o corpo que vai para além do adorno, vestindo-o e reconfigurando-o (Henriques, 2017:73, 74).

 

 

 

 

 

 

Por fim, há ainda um outro aspeto a considerar que é o lado lúdico, de grande parte destas peças, pois podem usar-se de diversas maneiras e, em alguns casos, que se podem revirar passando o interior a ser o exterior. São adornos versáteis que se moldam ao corpo e nunca estão completamente usados porque proporcionam diversas imagens plásticas podendo ser interpretados de diversas maneiras conforme o seu portador e a ocasião em que é usada.

 

Conclusão

Maria José Oliveira é uma artista que atravessa todos os tempos conceptuais da arte. Sendo indiferente às catalogações disciplinares, sente os materiais e usa-os para dar corpo a objetos que lhe acontecem fruto da sua inquietação e do seu pensamento. São objetos que constrói e modela como uma escultura macia e se prendem com a estética do mole lançada por Claes Oldenbourg e continuada por muitos outros artistas como Ghada Amer com os seus desenhos e pinturas bordadas, ou como as esculturas mais recentes de Louise Bourgeois.

A sua obra denota uma enorme sobriedade devido a uma paleta reduzida de cores que passam pelos tons ocres dos óxidos e do barro e pelos tons neutros de cinzento, preto, branco e dourado da folha de ouro aplicada pontualmente como se duma sacralização do objeto se tratasse e, também devido aos materiais primevos que usa tornando estes objetos num corpo de trabalho paradoxal visto que quando entram no campo da joalharia são completamente destituídos de valor económico, conceito inerente à joia tradicional e ainda porque se dirigem a um público especial, um público com capacidade lúdica porque são peças versáteis e transformáveis, sujeitas a diversas interpretações.

São objetos originais onde o corpo é representado em camadas como uma segunda pele, de músculos ou de ossos, através da des-ocultação do interior do corpo ou usando a roupa como metáfora.

É uma obra que trabalha permanentemente no limite dos conceitos formais, de categoria mista. Uma obra em transição de um género para outro que entra no caminho da experimentação ilimitada através dum formalismo excêntrico com uma poética muito pessoal. As formas que Maria José foi criando têm um caracter escultórico e são joias quando ela o determina. Foi um trabalho inovador em relação à joalharia que na altura se praticava em Portugal e contemporâneo da Nova Joalharia que dava os primeiros passos na Europa e nos Estados Unidos.

Maria José constrói e desconstrói a partir do corpo até às entranhas, quer usando as entranhas dum casaco, quer usando tripas, músculos ou ossos. Da sua obra transparece uma imensa interrogação ontológica e a infinita angústia do artista.

 

Referências

AAVV (2017) Maria José Oliveira, 40 anos de trabalho, Documenta, Sistema Solar, Lisboa. ISBN:978-989-8834-72-0 https://issuu.com/sistemasolar/docs/maria_jose___oliveira_40_anos_de_tr        [ Links ]

Cheung, Lin | Clarke, Indigo | Clarke, Beccy, (2006) New Directions in Jewelery II, Black Dog Publishing, London. ISBN-10:1904772552 e ISBN-13: 978-1904772552.         [ Links ]

Kraus, Rosalind (2000) Bachlors, The MIT Press Cambridge, Massachusetts London, England. ISBN-13: 978-0-262-11239-0        [ Links ]

Sardo, Delfim (2017) O Exercício Experimental da Liberdade: Dispositivos da arte no século xx, Orfeu Negro, Lisboa. ISBN 978-989-8327-B2-6        [ Links ]

Unger, Marjan(1990) Novidades da Holanda. News from the Netherlands, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. Dutch Form, Foundation, Amesterdam        [ Links ]

 

 

Enviado a 04 de março de 2017 e aprovado a 16 de março de 2017

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: isadribeiro@yahoo.com.br (Isabel Ribeiro de Albuquerque)

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