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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.8 no.20 Lisboa dez. 2017

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Construção pela destruição: camadas de pele da cidade revelada pela obra de Vhils

Construction through destruction: skin layers of the city revealed by Vhils' work

 

Marcos Antony Costa Pinheiro*

*Brasil: artista plástico.

AFILIAÇÃO: Universidade de Brasília, Instituto de Artes, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais. Campus Universitário Darcy Ribeiro, Prédio SG 1. CEP: 70.910-900 — Caixa Postal 4432 — Asa Norte — Brasília/DF, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Esse artigo discute a obra do artista português Alexandre Farto (Vhils), que acontece no espaço público, por meio de escavações de camadas superpostas em paredes, de modo a revelar histórias contidas na cidade. Para tanto, a pesquisa examina como sua relação com o espaço urbano o levou a construção de sua poética, investigando assim sua relação com espaço público, como também sua prática artística que usa o próprio espaço como suporte. Analisa ainda a relação com o observador, tecendo relações com conceitos fenomenológicos, e, com o olhar etnográfico contido nos fazeres de arte pública na contemporaneidade.

Palavras-chave: arte urbana / arqueologia / memória / espaço / lugar.

 

ABSTRACT:

This paper discusses the work of the Portuguese artist Alexandre Farto (Vhils), which takes place on the public space through the excavations of superimposed layers on walls revealing the city's enclosed stories. Therefore, this study examines how his relation with the urban space led him to construct his poetic, inquiring about his association with the public space, just as his artistic practice that uses the space itself as a pilar. This paper also analyses the relation with the observer, building connections with phenomenological concepts, and with the ethnographic look enclosed on the making of public art on the contemporaneity.

Keywords: public art / archeology / memory / space / place.

 

Introdução

Alexandre Farto (Vhils, n. 1987) é um artista oriundo do graffiti, que veio a desenvolver através da experimentação do estêncil uma linguagem visual própria. Ao lidar com a criação de camadas superficiais de paredes no início, veio posteriormente emergir na ação de retirá-las por meio de martelos, ácidos e até mesmo explosivos. Essa ação de retirada dá vista ás camadas de história que constitui o espaço urbano. Esse artigo pretende abordar aspectos da sua obra e da sua relação com o espaço público, esta que se expressa pela destruição — construção, polos distintos, mas que se entremeiam, e que provocam um olhar sensível no meio, aproximando assim sua obra de conceitos da fenomenologia de Merleau-Ponty no que tange a esfera do sensível e o papel do artista contemporâneo como observador-participante analisado pelo crítico Hal Foster.

 

1. Construindo o artista

Alexandre Farto é um artista português, que no início de sua carreira se dedicava à parte mais ilegal da prática do graffiti. Mundialmente conhecido pelo seu nome artístico Vhils, suas memórias estão atreladas ao lugar aonde nascera e crescera, a zona do Seixal, margem Sul do Estuário do Tejo. Aonde ele presenciou o desenvolvimento urbano ocorrido em Portugal na década 80 e 90.

Suas experiências com estêncil foram determinantes para chegar nas experimentações contidas atualmente em seus trabalhos. Nas palavras de Vhils, "parece que as paredes engordavam três ou quatro centímetros" (Vhils, 2012). Essa reflexão permitiu ao artista se questionar sobre a questão das camadas presentes nas paredes, camadas estas que remontam uma 'memória' da cidade. Ao escavar essas camadas estaria em contato com a história daquele lugar. Resquícios que revelam traços históricos da cidade camuflados ao longo do tempo. Sobreposições que remontam percursos da cidade a longo da história, o seu desenvolvimento urbano. Ao escavar uma parede revelam-se camadas do que já foi um modo de sentir a cidade e que ficou gravado no tempo, mas que pela urgência hoje da comunicação ligada ao consumo, ficou obliterada pela sobreposição de mensagens. Ao romper as camadas da parede, Vhils cria um traço de empatia ao trabalhar com rostos de pessoas muitas vezes anônimas.

Estas imagens seguem a lógica proveniente do estêncil, em que a imagem surge de um negativo, enfatizando o contraste na construção da mesma. Aqui o artista se utiliza de martelo pneumático, como também ácidos corrosivos ou até mesmo explosivos para assim remover a pele da cidade. As paredes usadas como mero suporte na cultura do grafite, aqui se tornam elementos constituintes da poética estabelecida com o lugar, que remete como uma prática 'arqueológica', na qual, ao escavar parede, revela a cidade como um organismo vivo impregnada de memorias construídas por seus habitantes.

 

1.1 Desconstruindo a pele da parede

Os fragmentos de paredes ao serem removidos, revelam memórias passadas, gravitando entre o visível e o invisível, ao serem extraídas, criam-se formas, vem à tona resquícios. Essas sutilezas são a carnalidade do mundo, desencadeando modos de ver, como afirma Merleau-Ponty:

A visão não é certo modo do pensamento ou presença a si: é o meio que me é dado de estar ausente de mim mesmo, de assistir por dentro à fissão do ser, ao término da qual somente me fecho sobre mim (Merleau-Ponty, 2014:51)

Vhils estabelece aqui princípios formativos que geram marcas, invocando uma ciência que não se expressa por palavras, mas "por obras que existem no visível à maneira das coisas naturais, e que, no entanto, comunica por elas." (Merleau-Ponty, 2014: 51). Aqui o olho passa a tomar posse de lugares aonde a conformidade do habitual tinha atingindo seu esplendor. Ao estabelecer um diálogo pela forma, o artista escolhe rostos de pessoas anônimas que representam um espectro do mundo contemporâneo nas grandes cidades. Esse olhar fenomenológico não é um olhar retiniano que traça escalas, dimensões; e sim, um olhar muscular, que adentra na voluminosidade de o mundo despertando no corpo sensível a experiência de um espaço sensível.

Experimentamos a cidade com o nosso corpo, ele nos leva em direção ao mundo. O corpo aqui assume uma importância que possui sua própria intencionalidade. A origem do espaço não é outra que o movimento do corpo, ao se movimentar cria-se o espaço. Merleau Ponty afirma que a maneira como percebemos o meio através do corpo estabelece uma forma de percepção do mesmo. Estabelecendo uma relação de reciprocidade de estímulos. Aqui o ato de ver abrange todo o corpo, ele se adequa a uma configuração para possibilitar um modo para que visão abarque todo espaço. Colocando o corpo de forma a receber o ambiente.

O corpo próprio está no mundo como coração está no organismo: ele mantém continuamente em vida o espetáculo visível, ele o anima e o nutre interiormente, forma com ele um sistema (Merleau-Ponty, 2013: 273)

Ao estabelecer seu trabalho, o artista Vhils deixa latente a sua relação intrínseca com a cidade. Cidade essa das memórias, das visualidades. A relação identitária abrange uma gama de afetos por memórias que solidifica em um entendimento de mundo que se expressa perante o espaço que o corpo habita, convergindo todos os sentidos do mesmo.

A relação do grafite com a cidade é fundamental, o modo de vida urbano que se intensificou a partir do século XX permitiu maior troca nas relações sociais. No seio da Cidade nasceu grandes movimentos culturais, como, por exemplo, o graffiti, que na sua caracterização fundamental se configura como um gesto, uma marca que cria uma comunicação dentro do espaço urbano. Como afirma Di Felice, em seu livro sobre paisagens pós-urbanas: "No interior dos novos conglomerados urbanos, a maneira de apropriar do espaço e de interagir com espaço torna-se predominante visual" (Di Felice, 2014:128).

A partir do adensamento urbano da cidade o artista percebe que as formas de comunicação se ampliam de diversas formas, proliferando de forma desordenada no âmbito da cidade. Criando ambientes comunicativos que moldam gostos e ditam modas. Instaurando um fluxo da imagem, seus primeiros experimentos culminaram posteriormente no projeto que o artista denomina como "Scracthing the surface", resultante de demarcações em cima de cartazes dispersos pela cidade, Vhils cobria uma quantidade de cartazes com uma camada de tinta branca e depois traçava desenhos por meio retiradas do material, nesse caso camadas de papel. Ao tratar com esse material estabelecia um esvaziamento de um lugar de tensão na qual continha reclames de consumo. As lacunas criadas agora dão voz á um outro modo de ver, essas fendas geravam formas criando narrativas que fazem perceber melhor a cidade. Afastando assim um olhar cansado sobre o espaço de convívio.

A saturação cansativa dos cartazes dá vida agora a outras histórias, estas, por agirem como um fator surpresa, acabam humanizando o lugar. E assim, pela desconstrução o artista tenta melhorar o espaço público, que é saturado de imagens publicitárias, a intervir nesses suportes o artista dá visibilidade á cidade revelando constituição de partes do seu passado.

 

2. Construção e desconstrução e o lugar do outro na cidade

Como artista que usa o espaço urbano como suporte, o modo como trabalha o leva á questão da alteridade com o público que o cerca, isso o faz construir um inventário do contexto. Umas das suas memórias intrínsecas da cidade, Vhils lembra das transformações inerentes no processo de adensamento urbano, que configura os grandes processos de transformação presentes em muitas cidades do mundo. Esse adensamento acaba criando formas de circulação em pontos específicos da cidade e por outro lado deixa ao abandono lugares que são parte da constituição da cidade. Esse pertencer ao espaço urbano traz à tona a questão da troca. Ao pertencer ao espaço urbano temos uma ampla gama de relações e coexistências que fogem a critérios convencionados pelas esferas de poder governamental.

A arte, a partir da década de 60, trouxe para o debate a questão do site, instaurando um debate ante o consumismo da arte. A arte ao se estabelecer fora da galeria fortaleceu vários movimentos de debate sobre onde é o lugar da arte. O Grafite sempre tem no seu ímpeto a vontade de retomar a cidade, o artista ao criar uma marca sua na parede, faz por rebeldia uma tomada de posse do espaço, ao fazer isso ele estabelece um diálogo com o outro.

Mesmo que essa linguagem não seja literalmente compreendida, a marca faz mudar a forma como o outro vê o espaço. Essas trocas fazem tencionar o lugar do artista o colocando dentro de uma condição de etnográfico, como artista observador participante, condição advinda da antropologia, que o faz adentrar em muitas realidades estrangeiras á ele, possibilitando uma mudança de paradigma. Ao adentrar esses 'mundos', o artista permite que suas práticas sejam contaminadas. Suas práticas passam a investigar o pertencer no espaço urbano tencionando fronteiras, tendo processos colaborativos que visam a ressignificação do lugar materialmente e imaterialmente, insuflando mudanças no tecido social. A arte pública abrange essas necessidades, amparada na concepção da arte como experiência, estabelecendo diálogo nos lugares que possibilitam criações coletivas, diluindo o conceito de artista como gênio isolado. Hal Foster em seu ensaio O artista como etnógrafo relata que:

O mapeamento na arte atual tende na direção da sociologia e da antropologia a ponto de o mapeamento etnográfico de uma instituição e comunidade se uma forma primária de site-specific na arte de hoje. (Foster, 2005: 144)

Uma leitura em cima dessa premissa seria que os caminhos tomados pela arte nos últimos trinta anos tencionaram a definição de fixa e física do entendimento de lugar, instaurando uma fluidez do mesmo, levando o artista observador-participante, infiltra em realidades não familiares á ele. Mediante á diversos modo de ação a arte pública gerou uma ação participativa que por diversas vezes incidiu numa implicação social, gerando espaços de visibilidade. Ao registrar rostos de habitantes nas paredes, Vhils chama atenção para a ligação do indivíduo com a cidade, uma ligação que não fica em segundo plano como costuma parecer na esfera cotidiana.

O seu 'destruir' ativa espaços, os registros dos rostos representam de modo intrínseco, a identidade e a subjetividade daquele espaço e que ele representa no seio da cidade, tecendo assim reflexões sobre identidade em relação a cidade, e como ela é diluída ou afetada pela cidade. Transcendendo também para identidade da cidade, "ligam os espectadores às suas cidades e as comunidades das cidades. " (Vhils, 2014)

Ao ativar esses espaços o artista chama atenção, para as identidades e experiências individuais que foram suprimidas ou que serão suprimidas pelo processo urgente da cidade. A registrar isso, torna-se uma maneira de tornar duradouro algo que se tornou efêmero.

 

Conclusão

Tendo que o objetivo da pesquisa era analisar sob a ótica da fenomenologia, a interação e a percepção do lugar através das relações espaciais sugeridas pelas intervenções de Vhils, como abordagem, foi utilizada a análise do fazer da obra considerando a dinâmica entre a obra e o 'lugar' e sua relação com o indivíduo. Objetivando analisar como determinados fatores ligados á percepção do espaço interferem e contribuem na construção da poética. E como a ligação direta com o público permite estabelecer relações entre espaços físicos e discursivos com a intenção de provocar reflexões inerentes à sociedade pelo campo da arte.

No que tange a descortinar um olhar saturado, incitando uma percepção pela esfera do sensível no espaço circundante.

Ao se inserir no meio urbano o artista 'distorce' por meio da desconstrução o tecido urbano alterando sua percepção através da ação que constrói um afeto com lugar. Essas desconstruções-construções se fazem perceber e serem percebidas ao adentrar nas camadas da cidade, o artista evidencia memórias que estão agregadas não somente na esfera física, mas compartilhadas em cada indivíduo inserido ali naquele meio. Ao trazer isso o artista instaura uma interação com o público pelo modo sensível.

Essa experiência do sensível no mundo, Merleau-Ponty vem afirmar que "o visível é o que se aprende pelos sentidos" (2014: 28) essa apreensão não é retiniana, pois ao atingir todos sentidos traz uma consciência maior de nós mesmos e do espaço pertencente, pois como o mesmo autor refere que perceber é recordar. Aqui as fronteiras são alargadas e suprimidas tirando o espectador do lugar comum.

Ao entrar nessas novas direções apontadas pela arte contemporânea onde o artista se coloca como observador-participante criando uma alteridade que possibilita criar espaços simbólicos que reforçam sistemas de relações entre indivíduos, perceber o lugar deste modo permite entender o caráter entrópico e transitóriodamatéria, dotempoedoespaço. Aartenoespaçopúblicoéumaprovocação, condensando e expandindo novas formas de estabelecer a percepção.

 

Referências

Di Felice, M. (2009). Paisagens pós-urbanas (1st ed.). São Paulo: Annablume.         [ Links ]

Foster, H. (2014). O retorno do real. São Paulo: Cosac naify.         [ Links ]

Merleau-Ponty, M. (2014). O olho e o espírito (1st ed.). São Paulo: Cosac naify.         [ Links ]

Merleau-Ponty, M. (2013). Fenomenologia da Percepção (4th ed.). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Vhils (2012). Criatividade no meio urbano: Alexandre Farto aka Vhils at Tedx Aveiro. Ted. [Consult. 2017-01-11] URL: https://www.youtube.com/watch?v=OnDfZluckjI        [ Links ]

Vhils: 'Não consigo dar um nome ao que faço'. (2014). Sol. [Consult. 2017-01-12] URL: http://www.sol.pt/noticia/102272.         [ Links ]

 

Enviado a 26 de janeiro de 2017 e aprovado a 15 de fevereiro de 2017

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: mantony.df@gmail.com (Marcos Antony Costa Pinheiro)

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