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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.8 no.20 Lisboa dez. 2017

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

O que somos? Leitura Heideggeriana do trabalho de Ricardo Guerreiro Campos

What are we? Heideggerian lecture of Ricardo Guerreiro Campos's Work

 

Pedro Miguel Santos Silva*

*Portugal, artista plástico. Licenciatura em Investigação Social Aplicada, Universidade Moderna Lisboa (UM), Licenciatura em Artes Plásticas, Faculdade de Belas Artes Porto (FBAUP).

AFILIAÇÃO: Universidade de Vigo (UV), Facultad de Belas Artes de Pontevedra; Departamento de Escultura. Grupo de Investigación H07 — La dimensión escultórica de las prácticas artísticas. Rúa da Maestranza, 2, 36002 Pontevedra, Espanha.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Diante da questão primordial — o que somos? — o propósito deste trabalho é expor algumas das estruturas que fundamentam o ser humano a partir da obra "Ser e Tempo" (1927) de Heidegger — nomeadamente a existência autêntica, inautêntica e a morte —, e cruzá-las com a temática da Identidade que norteia o trabalho artístico de Ricardo Guerreiro Campos a fim de potenciar novas perspectivas de leitura da sua produção artística.

Palavras chave: Heidegger / Ricardo Guerreiro Campos / vida autêntica e inautêntica / identidade / morte.

 

ABSTRACT:

Facing our primordial question — what are we? — the aim of this work is to expose some of the structures that support the human being starting from the lecture "Being and Time" (1927) written by Heidegger — namely the authentic and inauthentic existence and death — and comparing it with the theme of Identity that guides Ricardo Guerreiro Campos's artistic work in order to emphasize new reading perspectives of his artistic production.

Keywords: Heidegger / Ricardo Guerreiro Campos / authentic and inauthentic life / identity / death.

 

Contextualização

Qual é o maior perigo que ameaça o Homem contemporâneo? A resposta filosófica que Martin Heidegger (1889-1976) dá a esta questão, em "Ser e Tempo" (original de 1927), continua actual: esse perigo advém de um desinteresse por parte dos seres humanos em se interrogarem acerca do sentido da sua própria existência, pelo que a pergunta primordial — o que é ser? — perde relevância e cai no esquecimento.

Para Heidegger, o Homem apresenta-se como o único ente capaz de questionar o fundamento da sua existência e, desta forma, cabe-lhe a tarefa de se interrogar sobre o que é ser.

O homem apresenta-se, pois, como possibilidade de se ir construindo na sua correspondência com o mundo e com os outros. A liberdade, que distingue o ser humano dos restantes entes, é uma abertura constante ao mundo que o rodeia. O Homem é, pois um "ser-no-mundo" (Heidegger, 2008). E a sua liberdade, sendo decisiva, prevê uma responsabilidade, igualmente, decisiva e para as quais o Homem não se encontra, na sua generalidade, preparado.

O indivíduo contemporâneo tende a alhear-se do real, evitando o confronto consigo mesmo, com os outros e com o mundo, esquivando-se a aceder à autenticidade da sua existência, pois uma existência autêntica implica reconhecer que o Homem é um ser que tem no seu horizonte a morte. Por este facto, os entes humanos tendem a adoptar uma atitude evasiva, entregando-se a referências parciais que calam o apelo do ser em se manifestar. Salvo raras excepções, o Homem contemporâneo tem uma existência banal, por não procurar confrontar-se com a questão do sentido da sua vida. Vive, assim, aquilo a que Heidegger chama de existência inautêntica.

O que é que pode salvar o Homem de uma vida inautêntica? A resposta de Heidegger é que o Homem deve regressar ao seu fundamento, deve, pois, abrir-se à escuta do Ser, que o apela a ser si mesmo, i.e., a aceitar expressar e realizar todas as suas possibilidades de ser, que em última instância se completam na morte.

Ora, salientando um conjunto de estruturas existenciais que fundamentam o ser humano — a vida autêntica, vida inautêntica e morte — estamos em condições de fazer uma leitura de uma selecção de trabalhos artísticos de Ricardo Guerreiro Campos a partir destes referenciais.

 

1. Leitura Heideggeriana do trabalho de Ricardo Guerreiro Campos

O artista português Ricardo Guerreiro Campos é, segundo o colectivo de criatividade Matéria Negra (https://materianegra.net/2016/11/24/10-artistas-nacionais-a-ter-em-conta/ consult. a 24 Out. 2016), um dos 10 artistas portugueses a ter em consideração. A sua produção artística é diversificada, deambulando pela pintura, desenho, fotografia, performance, vídeo, cenografia e a representação teatral. O seu enfoque temático centra-se na reflexão sobre a Identidade, mais concretamente no arrastar do ser humano por uma existência anónima, sem referenciais, mas que, no seu desassossego se inquieta e procura, de algum modo, (re)encontrar-se através do silêncio e da solidão.

Este universo conceptual de Ricardo G. Campos aproxima-se daquilo a que Heidegger denomina de existência inautêntica, situação original do ser humano. O Homem parte de uma identidade difusa e indiferenciada, imbuída no impessoal e cabe-lhe a tarefa de se abrir à interpelação do seu ser a fim de ganhar consciência de si próprio e, assim, assumir a responsabilidade de existir autenticamente. Esta abertura à interpelação acontece quando o ser humano ouve o apelo da sua consciência. Daí que o recolhimento na solidão para habitar o silêncio (conceitos do universo do artista) seja fundamental para que o ser humano se possa realizar.

Porém, a necessidade de recolhimento não surge quando o Homem está imbuído na banalidade do quotidiano, mas somente quando toma consciência (é também um dos predicados existenciais com que Heidegger caracteriza o ser humano) de que viver é ir morrendo, o que merecerá uma análise mais detalhada à frente.

 

1.1 A anulação de identidades

Numa primeira fase (2012-2015) a obra foca-se na anulação de identidades. Em termos processuais, os trabalhos eram, normalmente, ancorados em acções performativas encenadas e fotografadas, passando, posteriormente, uma selecção para o registo gráfico do desenho e da pintura a óleo (Figura 1).

 

 

Estas encenações recebiam uma forte exposição à luminosidade, a fim de ser criado um efeito de supressão de referenciais, fundindo as figuras representadas com o espaço envolvente, como se esta fusão anulasse as suas identidades, fazendo-as residir num mundo amorfo e indeterminado.

O branco assumia, então, não só uma funcionalidade cénica de dissolução da imagem, mas também conceptual do trabalho de Ricardo G. Campos, conforme o próprio anotou: "[o branco] está assim no cerne de um projecto que pretende humanizar e universalizar a Existência através da anulação das identidades das figuras" (Campos, 2013).

Também a este propósito, Jorge Silva Melo aponta o trabalho do artista como que situado

nos limites da luz, raiando o branco, dissolvendo-se (…). São corpos que voltejam, transitórios, bailarinos. (…) Caindo, debatendo-se no espaço branco, liso, tombando, perdendo o chão tão lenta, demoradamente (Melo, 2014).

A pintura apresentada na Figura 2, enquadrada ainda na temática da anulação da identidade pela dissolução no branco, abre-nos, contudo, um novo campo interpretativo que se relaciona com a fotografia principal que o Ricardo apresentou na exposição individual no Arquivo Fotográfico Municipal, em Lisboa (2014).

 

 

Em ambos os casos (Figura 2 e Figura 3) há uma imagética, ainda que não tenha sido a intenção primeira do artista, que remete para o corpo inactivo, para o findar, enfim, para a estatuária da morte, conforme notou Jorge Silva Melo (2014). Situamo-nos, pois, no âmbito da análise das estruturas existenciais que caracterizam o Homem, segundo Heidegger, nomeadamente no ser-para-a-morte. A existência humana realiza-se efectivando-se nas suas possibilidades de ser, o que levado à sua potência máxima, só se completa na morte (Heidegger, 2008, § 48: 123). A morte é, pois, um dos caracteres constitutivos do Homem, porque define o seu modo de ser e, neste sentido, elucida a sua própria identidade.

 

 

Os trabalhos apresentados nas Figura 2 e Figura 3 trazem, pois, o tema da morte para um primeiro plano de reflexão, relacionando-o com a construção da identidade pessoal, como que expondo o espectador diante da sua própria condição de efemeridade, relembrando-o de que existir é desdobrar-se nas suas possibilidades próprias de ser, até ao perecimento. E neste desdobrar-se, o Homem, vai reformulando e redefinindo a sua identidade até que a morte lhe rouba essa possibilidade (Hoffman, 1998: 214).

Assim, é encarando a morte sem escapatória, adoptando-a como uma das características principais da identidade humana (Hoffman, 1998: 218), que o ser humano é remetido para si mesmo, e repensa a sua ipseidade.

No entanto, diante deste fim sempre em processo de concretização, o Homem comum tende a optar pela fuga de si mesmo e cai na inautenticidade, abdicando de reflectir acerca da sua identidade.

 

1.2 Anulação e reformulação de identidades

Numa fase mais recente, sobretudo a partir da exposição individual SILÊNCIO (2016), na Galeria Branca, AMAC, no Barreiro, o trabalho de Ricardo G. Campos alarga e complexifica a problemática das identidades. Assim, acresce ao tópico inicial da anulação (2012-2015), o da reformulação de identidades, através de um jogo de falsas genealogias. Estas genealogias foram construídas a partir de um arquivo de imagens antigas da família do artista de diferentes épocas. Este foi seleccionando um conjunto de fragmentos que lhe foram chamando à atenção, especialmente as bocas, de vários desses elementos familiares, independentemente da afinidade parental que tinha com eles. Ao associá-los num mesmo trabalho artístico concedeu uma nova configuração a essas relações, agrupando-as em função do seu interesse estético.

Centremo-nos na instalação Espaço Vazio (Figura 4), porque é ela que mais concorre para um cruzamento produtivo com a análise das estruturas fundamentais da existência humana que temos vindo a tratar. Se na anulação de identidades a performance providenciava um figurino de seres humanos vagueando na inautenticidade, sem referencial, fragmentados por uma sobreexposição do branco e transpostos, directamente, para a representação pictórica, agora a fragmentação ocorre no espaço expositivo onde as obras (estruturas de madeira com apontamentos de figuras a carvão) são exibidas e provém de uma conveniência lúdica e cénica que procura instigar o espectador.

 

 

Esta nova fragmentação das identidades resulta de uma necessidade menos demonstrativa da exposição do trabalho do artista (2012-2015), e assume-se mais intrincada e provocadora. Cabe ao espectador procurar os referenciais já não isoladamente no interior de cada imagem, mas no contexto expositivo onde estas se instalam.

Agora, o próprio espectador passa a ser figurino, junto com os outros retratados no interior da obra, em busca de referenciais que lhe confiram um lugar onde possa ser ele mesmo, autêntico, na sua identidade. No meio de uma genealogia de falsas identidades também lhe cabe questionar sobre o que é ser, se será uno ou existirão várias identidades dentro de si?. Enfim, anda pois, à procura daquilo que o constitui como ser único enquanto observa outros fragmentos identitários, mormente bocas (Figura 5), esse lugar de cortejo e de expressão íntima da identidade de cada um e que o artista quis pôr em evidência.

 

 

Também aqui se expõe outra estrutura fundamental constitutiva do ser do Homem apresentada por Heidegger. O Homem ao afigurar-se como ser-no-mundo assume-se igualmente como ser-com-os-outros, compartilhando o mesmo contexto. O ser humano existe, pois, projectando-se nas relações. Assim, o espectador é convocado para relacionar fragmentos e encontrar afinidades e nisto cria, também ele, novas genealogias identitárias. Todavia, fá-lo num desafio silencioso, porque as bocas retratadas suspendem qualquer discurso, não lhe comunicam de onde vêm, nem que afinidades parentais as une. Este silêncio ressalta o desencontro e fazem o espectador viver a sua solidão (César, 2016). O espectador está, pois, envolto de outros, mas vivendo desamparado. E o maior desamparo chegar-lhe-á com a morte, assim dirá Heidegger (2008). No âmago da existência, no corolário da completude humana está, pois, a morte e esta vive-se sem participação, sem quinhão, no desamparo. Como refere Hoffman (1998: 217), analisando a filosofia heideggeriana, a morte individualiza-me porque é inevitavelmente minha, vivida exclusivamente na primeira pessoa (Hoffman, 1998: 215).

Não obstante, este silêncio exterior potencia a escuta de um grito interior do ser do Homem que se quer manifestar com o intuito de fazê-lo viver na sua verdade, i.e., autenticamente (cf. Heidegger, 2008, § 55: 349s).

Quando questionámos o artista acerca desta instalação, ficou evidente que a apresentação das estruturas de madeira no espaço adquire um pendor tumular, aludindo às tabuletas artesanais dos cemitérios. "Há ali corpos imobilizados semelhantes à estatuária fúnebre" (entrevista a Ricardo G. Campos, 16 de Janeiro de 2017, não publicada).

Há pois, um fio condutor da estatuária fúnebre que vem desde os seus primeiros trabalhos (Figura 2) até à actualidade, que não sendo central, nem o artista o declara como propositado, é transversal à sua produção artística.

Por conseguinte, defendemos que o modo como o Ricardo G. Campos tem abordado a questão da identidade, enquanto fragmentação e dissolução no indiferenciado, tem fortes relações com o pensamento heideggeriano a respeito fuga do Homem para a banalidade do quotidiano, para a vida inautêntica, por oposição a uma existência consciente de si mesma, identitária, que só pode, verdadeiramente, sê-la, quando reconhece que a morte é a concretização última do seu viver. "A morte totaliza-me, pois através da morte a minha identidade completar-se-á" (Hoffman, 1998: 217).

 

Conclusão

É num contexto de anonimato, onde o Homem se arrasta na existência, mas procurando-se (re)encontrar-se, através da solidão e do silêncio, que procurámos situar o trabalho artístico de Ricardo Guerreiro Campos e fazer pontos de contacto com a análise da existência humana do filósofo Heidegger. Sabemos que enquanto o ser humano estiver vivo a sua identidade não é assunto encerrado (Hoffman, 1998: 214), pois só se completa através da morte (Hoffman, 1998: 217). No entanto, viver não é o mesmo que existir autenticamente, i.e., cumprindo a sua realização de ser si mesmo. Habitar o impessoal é esquecer a sua identidade, uma vez que ninguém pode ser si mesmo quando se desconhece. É, pois, na morte, que o Homem pode despertar e aceder à vida autêntica e aí viver a sua identidade. É este o fio condutor implícito que marca o trabalho de Ricardo G. Campos e que intercepta a análise do ser humano conforme pensado por Heidegger — um questionamento de si mesmo a partir da morte enquanto construtor da autêntica Identidade.

 

Referências

Campos, G. Ricardo (2013), A Apologia do Branco, [trabalho final de Composição II, orientação de Manuel Botelho, FBAUL, 2013] — [documento facultado pelo artista Ricardo G. Campos]         [ Links ]

César, Andreia (curadoria), (2016), Silêncio, [folha de sala da exposição], Galeria Branca, AMAC, Barreiro, 2016        [ Links ]

Heidegger, Martin (2008), Ser e Tempo. (3ª ed.), Petrópolis: Editora Vozes        [ Links ]

Hoffman, Piotr (1998), "A Morte, o Tempo e a História: II Parte de O Ser e o Tempo", pp. 213-231, in Guignon, Charles (dir.), (1998), Poliedro Heidegger, Lisboa: Instituto Piaget        [ Links ]

Matéria Negra (colectivo), (2016), 10 artistas nacionais a ter em conta, in https://materianegra.net/2016/11/24/10-artistas-nacionais-a-ter-em-conta/ [consult. 24 Out. 2016]         [ Links ]

Melo, Jorge Silva (2014), O tempo que em silêncio se desfez, [folha de Sala da exposição], Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa, 2014 — [documento facultado pelo artista Ricardo G. Campos]         [ Links ]

 

Enviado a 26 de janeiro de 2017 e aprovado a 15 de fevereiro de 2017

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: pmiguelsantossilva@gmail.com (Pedro Miguel Santos Silva)

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