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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.8 no.19 Lisboa set. 2017

 

Artigos originais

Original articles

Planos em diálogo: sobre um livro de artista de Fernando Augusto

Dialogue: on an artist book of Fernando Augusto

 

Cláudia Maria França da Silva*

*Brasil, artista visual e docente universitária. Doutora em Artes pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Mestre em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande Do Sul (UFRGS). Bacharel em Desenho e Bacharel em Escultura pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Artes, Departamento de Artes Visuais. Departamento de Artes Visuais – CEMUNI II. Centro de Artes. Universidade Federal do Espírito Santo. Av. Fernando Ferrari, 514, Campus Universitário Goiabeira. Goiabeiras, Vitória/ES CEP: 29075-910. Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

Resumo:

Análise de um livro de artista realizado em 2008 pelo artista brasileiro Fernando Augusto. O livro é um conjunto de interferências realizadas sobre outro livro de 2000, respectivo a trabalhos artísticos de Amilcar de Castro. A análise parte da complexidade dos livros em geral, em que diversos saberes se organizam por um editor, que assume para si uma autoria compósita. Em um livro sobre um artista visual, sistemas paralelos se tangenciam (o sistema artístico e o sistema editorial); a intervenção de Fernando Augusto é radical ao anular os elementos que possam identificar a figura autoral do editor.

Palavras-chave: livro de artista / desenho contemporâneo / autoria

 

Abstract:

Analysis of an artist' book made by Fernando Augusto, Brazilian artist, in 2008. His artwork is made of interferences in other book, about Amilcar de Castro' artworks. This analysis starts from the complexity of book in general, a group of several different knowledge and staff, under editor's response, that assumes himself a composite authorship. Regarding to a book about artist' artworks, parallels systems touch themselves (artistic and editorial); Fernando Augusto' intervention is radical by cancelling all signs of identification of editor as a specific author.

Keywords: artist' book / contemporary drawing / authorship

 

Considerações iniciais

Este texto analisa um livro de artista de Fernando Augusto, artista brasileiro. Trata-se de uma intervenção gráfico-pictórica realizada em 2008 sobre um livro de obras de Amilcar de Castro (1920-2002) (Figura 1, Figura 2, Figura 3, Figura 4). No caso de livros sobre artistas visuais (este publicado em 2000), o sistema artístico e o sistema editorial se tangenciam, oportunizando, na circulação do objeto livro, a divulgação de informações como o pensamento visual do artista e o pensamento crítico sobre sua obra. A intervenção no livro é radical pela retirada de elementos técnicos do objeto. Valendo-se de planos pretos geométricos que cobrem quase a totalidade de cada página, Fernando Augusto realiza um singular diálogo com o repertório formal de Amilcar de Castro.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Amilcar de Castro

Escultor, desenhista e diagramador, Castro tem presença forte na arte brasileira a partir do movimento neoconcretista; também foi o responsável pela reestruturação do projeto gráfico do Jornal do Brasil ao fim dos anos 1950.

Em suas esculturas, o aço corten foi a matéria por excelência na produção de suas formas, obtidas por cortes e dobras de planos, de início. Posteriormente, o destaque completo de fragmentos metálicos permitiu o deslocamento de partes do bloco matricial, gerando diversas combinatórias compositivas. Seu trabalho pauta-se pelo rigor construtivo e economia formal, cuja geometria é lírica, leve: se nas peças de corte e dobra, temos um movimento "virtual" da placa, nas peças de corte e deslocamento de blocos, o corte permite o movimento real, mesmo que difícil; as aberturas engendram uma nova espacialidade. Sugerimos que o leitor consulte os links: https://www.youtube.com/watch?v=ZazxIBAjXg4 e http://arte1.band.uol.com.br/corte-e-dobra-2/ para ver imagens de obras de Amilcar de Castro.

Como desenhista, Castro valia-se de traços e planos decididos, feitos à trincha ou vassoura, demarcadores de espaços. Em muitos deles, um único movimento definia toda a ocupação. Em sua maior parte, as composições se resolviam na relação preto e branco, sempre econõmicas e precisas. É esta a marca que Amilcar de Castro carregou também em sua atuação como projetista gráfico, desde o fim dos anos 1950. Notabilizou-se pela retirada das linhas que separavam anúncios e notícias; os textos eram organizados em colunas, funcionando como "manchas" que, acrescidas eventualmente de imagens, deram mais elegância e concisão à composição da página como um todo. Cabe ainda ressaltar a atuação do artista como docente universitário desde o seu retorno ao Brasil, ao fim dos anos 1970, quando passa a residir em Belo Horizonte, vinculado à Escola Guignard e depois à Escola de Belas Artes da UFMG.

Considerando o alcance das atividades acima mencionadas em um recorte temporal do fim dos anos 1950 até o fim dos anos 1980 – é que percebemos, de um lado, a precisão do gesto manual nos desenhos e essa mesma precisão traduzida pela máquina de oxicorte no bloco metálico, influenciando gerações de alunos no que diz respeito ao desenho como ato decisivo e sem retorno, além da densidade de formas compactas; por outro lado, esse mesmo gesto, ao se dar em escala ampliada, requisita a presença da totalidade corporal do artista – não somente as mãos; este aspecto é paralelo à liberdade expressiva e o retorno da pintura, que foram algumas das marcas da produção artística dos anos 1980 no Brasil.

 

O livro sobre a obra de Amilcar de Castro e as figuras de autoria postas no livro

Um livro, se o considerarmos como agregação de descrições e reflexões acerca de um fenômeno, depositadas em folhas de papel e obedecendo a uma determinada sequência – é um objeto complexo. Pensado como adensamento de camadas de sentido, ele possui a "capacidade de conjugar a simultaneidade da imagem e a temporalidade do discurso" e essa capacidade não o faz inerte na mente do leitor; ao contrário, "é pensado como um dispositivo, com um papel ativo na memória e na imaginação". (Cadôr, 2016: 293).

Temos na base um livro organizado sobre a obra escultórica e gráfica de um artista, o que acentua tal complexidade, pois é síntese de uma série de procedimentos organizados ao redor de obras de arte: transformaram-se em imagens fotográficas, alguém pensou sobre elas e produziu um texto crítico; outro organizou a biografia do artista e houve quem idealizou o projeto gráfico do livro. No caso de um livro sobre obras de Amilcar de Castro, ocorre ainda o legado de sua atuação como programador visual: seus textos livres em colunas justificadas afirmaram-se em nosso imaginário, constituindo muitos projetos gráficos de livros e catálogos de obras de arte, em geral. Esse aspecto metalinguístico do projeto gráfico do livro sobre suas obras é presença sutil, mas não menos importante.

Todas essas operações, informações e sujeitos foram regidos pelo editor, que, além de condensar diversas figuras de autoria (cada qual com seu mister), consolidou a realização de um objeto novo, referente às obras artísticas, as quais seguem sua existência paralela e irredutível ao objeto-livro. Uma edição ilustrada sobre obras de arte é um produto cultural em segundo grau, cuja característica principal talvez seja a sua portabilidade. Existe a circulação de um pensamento visual e sua inserção em sistemas afins (o sistema da arte e o sistema editorial). Nessa complexidade sistêmica que é o objeto-livro, residem, pois, duas figuras de autoria: o artista (e sua obra), de quem se fala; e o editor ou organizador, responsável pela regência de diversos saberes ao redor do artista e sua obra.

Michel Foucault (1992) pensa em figuras de autoria ao escrever sobre práticas discursivas em que é possível se detectar o autor, concebendo diferenças entre o discurso científico e o discurso literário. Se no primeiro a autoria se vincula a um sistema legitimador do que se propõe como alteração de um paradigma, o discurso literário vincula-se à subjetividade de quem o fez.

O livro sobre obras de arte estaria mais próximo ao universo literário do que ao científico. No universo literário, encontra-se o autor de uma obra na verificação da unidade estilística, coerência conceitual e em valores que possam explicitar as transformações de seu projeto poético no tempo. Foucault também propõe o autor como quem instaura uma discursividade. Pensamos em Castro como fundante de um campo de saberes nas Artes Plásticas e também nas Artes Gráficas, pois suas produções promoveram a investigação, o debate e a produção de outros autores (artistas, teóricos e técnicos), que o tomaram como referência.

Com relação ao editor/organizador considerado como figura de autoria, temos o que Foucault nomeia de "função autor" – vincula-se a um sistema institucional que agencia a diversidade e a heterogeneidade de discursos. A função autor também se responsabiliza por uma série de operações complexas, não ocorrendo por uma atribuição espontânea; ela "não reenvia pura e simplesmente para um indivíduo real, podendo dar lugar a vários "eus" em simultâneo, a várias posições-sujeitos que classes diferentes de indivíduos podem ocupar." (Foucault,1992: 56-7). Daí concluirmos que o editor é uma figura funcional, pela qual são atravessadas várias referências e/ou saberes e que responde, com o livro, ao contexto de sua época; o autor Amilcar de Castro comporta-se distintamente, pois ele alicerça um discurso multiplicador de outros. O livro sobre um artista é um exemplo interessante para compreendermos um duplo movimento na reflexão sobre autoria nos discursos literários que Foucault realiza: a detecção da importância de que exista um autor pelo risco do anonimato; em contrapartida, há situações do autor como função e essa flexibilidade retira o sujeito de sua condição de origem para localizá-lo como "função".

 

O livro de artista, de Fernando Augusto

Esse sistema ordenado em suas diversas camadas significativas: um livro sobre um artista, Fernando Augusto o desestabiliza, construindo, com ele, um único exemplar de livro de artista.

Chamamos a atenção para a operação de apropriação que consubstancia seu trabalho. Tal operação relaciona-se ao que Jacques Leenhardt (1994) considera como "imagem readymade": o desenho de um bigode que Duchamp (L.H.O.O.Q., 1919) faz sobre uma reprodução da Monalisa de Leonardo da Vinci aponta, sobretudo, que a disponibilização de bens culturais pela indústria (o cartaz em off-set da pintura, acessível a nós via imagem) promove o deslocamento de seu locus originário e possibilita sua migração para quaisquer lugares e sistemas. Nicolas Bourriaud concebe como "pós-produção" a complexa operação artística que se vale de matérias circulantes no mercado cultural para reinseri-las no fluxo da "cultura de uso": o que se pergunta agora é "o que se pode fazer com" (Bourriaud,1994:14). Desse modo, usar um objeto cultural pressupõe sua interpretação e mesmo sua inutilização.

As intervenções de Fernando Augusto ocorrem em camadas, tal como o próprio livro-base, e a primeira delas é consumi-lo pela leitura. Hoje compreendida como atividade rotineira, a leitura silenciosa tem sua história própria, relacionada à reprodutibilidade do livro e à conquista da privacidade, entre outros fatores. Ler solitariamente envolve a imaginação e a construção de uma situação espaço/tempo singular, já que o leitor pode interromper, saltar ou recuperar outro trecho já lido (Knuppel, s/d), além de poder transportar o objeto para qualquer lugar. Roger Chartier (1998) vê na leitura a efemeridade, a pluralidade e a invenção; diferentemente, a escrita espacializa o tempo por meio de registros visuais (entre eles, o signo verbal tornado imagem compartilhável).

Lendo livros usados, deparamo-nos com marcas da presença de nossos antecessores: bilhetes e marcadores esquecidos, páginas dobradas, textos sublinhados, sinais gráficos ou mesmo escritos, em paralelo ao texto, nas entrelinhas. Uma experiência anterior em leitura se espacializou sobre um texto escrito: leitura "escrita" sobre outra escrita, uma camada nova de significação interfere na informação original e, consequentemente, em nossa experiência atualizada de leitura. Podemos perceber alguns desses vestígios da leitura do artista quando manipulamos o livro: diversos trechos sublinhados à tinta indicam que o sujeito-leitor construiu traços e inscrições sobre o texto impresso. O sujeito-leitor antecedeu, ativamente, o sujeito-apropriador/pós-produtor e o sujeito-pintor.

Após as intervenções da leitura e da inscrição sobre o texto (desenho?), se dá a interferência pictórica propriamente dita. Augusto o percebe como suporte e retira todas as informações técnicas do livro; cada página dúplice convoca o diálogo entre o que está apresentado ali e a nova interferência preta. Planos pretos alteram a espessura de cada página; emprestam-lhe uma aspereza insuspeitada para o papel couché, utilizado na impressão.

A sobreposição é operação recorrente na poética do artista, em que há um interesse por suportes não virgens como envelopes, diários de classe, revistas, trabalhos aparentemente abandonados, os quais recebem diversas camadas de tintas e colagens. Aqui o preto traz em sua opacidade o radicalismo da sobreposição: irreversível à condição original, a densidade do pigmento se une ao conceito de absoluto, como se a intervenção fosse a criação de uma "escuridão" ou "noite", por onde pudessem emergir pequenos pontos de luz numa palavra ou outra não recoberta. O próprio artista aponta: "o negro vai cobrindo tudo o que havia antes, todas as tentativas, todas as formas, criando espaços densos e opacos, onde o encobrir e o revelar andam de mãos dadas". (Santos Neto, 2013:58)

Tudo ocorre como se um grande volume de águas levasse matérias inorgânicas, seres vivos e mortos, edificações, constituindo um leito de indiscerníveis e de desaparecimentos (o trabalho do autor-editor). O escurecimento só faz permanecer o peso irredutível da cor, das formas geométricas e da escultura. Por um lado, esse gesto pictórico "agressivo" de anulação poderia ser pensado como negação (interdição) do próprio conteúdo do livro; por outro lado, há uma identificação entre as formas construídas com o próprio repertório formal de Amilcar de Castro. Isto devolve ao objeto final, a evocação da origem do livro monográfico: a densidade dos planos em corte e dobra consubstanciando a tridimensionalidade. O próprio livro se oferece como plano duro para que se porte de pé, apresentando em suas dobras, novas composições alusivas ao pensamento visual do escultor.

 

Considerações finais

Trata-se, assim, da construção de camadas de sentido, postas desde a produção, a aquisição do objeto-livro, suas marcas de leitura e seus apagamentos. Somente o livro sobre o artista já é uma construção complexa: consolidado de diversos saberes e figuras de autoria, sob a organização de um editor, que assume para si uma autoria compósita.

Por meio da apropriação do livro como produto cultural derivado do projeto poético de Amilcar de Castro, Fernando Augusto promove um singular diálogo. Lembrando que ambos já se conheciam na relação professor/aluno ou mesmo em entrevistas, o diálogo agora é de outra ordem. Suas interferências pretas conversam com as formas pretas das pinturas de Amilcar de Castro; a capa dura do livro e a dobra central habilitam-no a um comportamento escultórico, como se fosse um estudo para uma peça de corte e dobra do artista mineiro.

Em sua intervenção ocorre a negação do discurso que demarca o editor como autor funcional do objeto; o livro de artista de Fernando Augusto transforma-se em uma ficção acerca de outro discurso, o diálogo existente entre dois artistas.

 

Referências

Bourriaud, Nicolas (2004) Post-producción: la cultura como escenario. Buenos Aires: Adriana Hidalgo.         [ Links ]

Cadôr, Amir Brito (2016) O livro de artista e a enciclopédia visual. Belo Horizonte: Editora UFMG.         [ Links ]

Chartier, R.; Cavallo, G (1998) História da leitura no Mundo Ocidental. Vol. 1. São Paulo: Ática.         [ Links ]

Knuppel, Maria Aparecida C. (s/d) "História da leitura: do prólogo à inspiração". [Consult. em 2016-12-28] Disponível em URL: http://www.histedbr.fe.unicamp.br/acer_histedbr/seminario/seminario7/TRABALHOS/M/Maria%20aparecida%20crissi%20knuppel.pdf        [ Links ]

Leenhardt, Jacques (1994) "Duchamp, crítica da razão visual": In: Novaes, Auto (org). Artepensamento. São Paulo, Companhia das Letras. p.339-350.         [ Links ]

Santos Neto, Fernando Augusto (2013) Pintura sobre pintura. Vitória: GSA Editora.         [ Links ]

 

Artigo completo submetido a 26 de janeiro de 2017 e aprovado a 5 de fevereiro 2017

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: claudiamfsg@yahoo.com.br (Cláudia Maria França da Silva)

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