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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.8 no.19 Lisboa set. 2017

 

Artigos originais

Original articles

A Fotografia e a Duração no Trabalho de José Luís Neto

Photography and duration in the work of José Luís Neto

 

Miguel Novais Jasmins Rodrigues*

*Portugal, artista visual.

AFILIAÇÃO: Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas Artes, Mestrado Arte Multimédia. Largo da Academia Nacional de Belas Artes, 1249-058 Lisboa, Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

Resumo:

Este trabalho olha a obra de José Luís Neto à luz do conceito de duração definido por Henri Bergson. Procura contrapor, à ideia de que a fotografia procura uma representação da identidade do fotografado, a ideia de uma identidade do próprio meio, através, ao mesmo tempo, de uma procura da sua natureza intrínseca e dos seus limites na tentativa de registar coisas que são do domínio daquilo que vive e que, portanto, dura.

Palavras-chave: fotografia / duração / tempo / identidade

 

Abstract:

This work looks at the work of José Luís Neto in the light of the concept of duration as defined by Henri Bergson. It seeks to counteract, to the idea that the photograph seeks a representation of the identity of the person photographed, the idea of an identity of the medium itself, through, at the same time, a search of its intrinsic nature and its limits in the attempt to record things that are Of the domain of that which lives and which, therefore, lasts.

Keywords: photography / duration / time / identity

 

Introdução

Neste trabalho, recorro ao conceito de duração, definido pelo filósofo francês Henri Bergson, (1859-1941) para mostrar a forma como o fotógrafo José Luís Neto (Sátão, 1966) se distancia da relação de verosimilhança entre a fotografia e uma noção objetiva da realidade para assumir o próprio meio como seu objeto. Como, desta forma, recusa a ideia clássica de relação com essa ideia de realidade e abre a caixa negra (Flusser, 1983), expondo a planura da folha branca e a nossa forma de ver e de perceber através dela e abrindo, na sua prática fotográfica um espaço a essa duração que Bergson conceptualizou.

22474 e 22475

Em 1913, Joshua Benoliel, repórter fotográfico do início do século XX, está na Penitenciária de Lisboa, ao serviço do jornal O Século, para registar a cerimónia de abolição do capuz naquela instituição (Figura 1). Na descrição do site do Centro Português de Fotografia, pode ler-se que esta cerimónia

 

 

 

marca o fim da obrigatoriedade do uso deste dispositivo que havia sido introduzida pelo regulamento dos serviços prisionais em 1884. Realizada no anfiteatro deste estabelecimento prisional, apresenta-nos um fragmento dos momentos que antecederam essa cerimónia.

 

Estamos a 5 de Fevereiro de 1913 e os prisioneiros estão dispostos numa estrutura destinada a manter impossível a comunicação entre si. Cada um deles usa um capuz, de modo a que não possa ver outros prisioneiros ou ser visto por estes. Este sistema, denominado regime de reclusão pensilvaniano, estivera em vigor desde 1888. Partindo de princípios racionalistas e iluministas, focava a ideia de que o criminoso poderia ser requalificado socialmente através do isolamento, da reflexão interior, da educação e da religião. A estrutura aqui apresentada servia esse propósito de isolamento e incomunicabilidade.

Este regime de reclusão foi substituído pelo regime auburneano, que alternava o isolamento e o contacto entre os presidiários. A prática religiosa e educativa, que antes se dava, também, sem comunicação entre presidiários foi aberta e era permitido o convívio entre os presidiários em todas as atividades sociais: o trabalho, o ensino, a religião ou o exercício.

Para 22474, simultaneamente o nome da série e o número de arquivo do negativo original de Benoliel, José Luís Neto vai olhar para esse negativo, isolar cada um dos presidiários ali representados e fotografar esse fragmento no negativo original, voltando, depois, a fotografar o negativo do negativo, e o negativo do negativo do negativo, aumentando o tamanho da face de cada presidiário.

Em entrevista a Ricardo Nicolau (Catálogo BES Photo 2006), José Luís Neto conta que passou sete anos, entre 1993 e 2000 a pensar neste trabalho. Andava com a fotografia, que olhava e estudava com frequência e considerava as suas implicações sociais, políticas e identitárias.

Francisco Feio (2003) sugere uma dupla noção do que está a ser retratado com este trabalho. Ao levar a cabo o processo de ampliação do fragmento repetindo o processo fotográfico original e trabalhando sempre sobre o negativo, 22474 deixa no ar a questão sobre o que está, na realidade, a ser retratado.

As imagens finais que este trabalho apresenta não nos dizem nada sobre os presidiários representados no negativo original de Benoliel. O ar fantasmagórico das imagens que resultam deste processo acaba por abri-las ainda mais, ao furar a aparência objetiva para nos mostrar uma espécie de espelho, já não do tema representado, mas do próprio meio que permite a sua representação.

A cada novo negativo criado, 22474 torna mais evidentes os constituintes básicos da imagem fotográfica (Figura 2, Figura 3): o grão, o nitrato de sódio e, ao mesmo tempo, pela sua repetição quasi performativa, a forma como o ato de fotografar implica um distanciamento em relação à coisa fotografada.

 

 

 

 

22475 reforça esta questão. Trata-se do mesmo processo sobre o negativo seguinte: Benoliel fez duas imagens, uma imediatamente antes da remoção dos capuzes e outra imediatamente a seguir, dando-nos, assim, uma ideia do efeito daquela lei.

Podemos entender este trabalho como uma segunda tentativa no sentido de descobrir – literalmente – os rostos por trás de um véu a impedir a nossa aproximação à identidade dos retratados.

A ampliação das imagens de 22475, no entanto, mantém a mesma opacidade em relação ao que deveria mostrar; dá-nos o mesmo resultado paradoxal: quanto mais próximos ficamos do negativo, quanto mais a sua imagem é ampliada, menos nítida fica a imagem que esse negativo regista.

José Luís Neto diz-nos que não tem interesse na imagem de uma suposta realidade, que apenas lhe interessam as suas ideias e inquietações; o questionamento dele é sempre em relação ao médium. Estes dois trabalhos, aparentemente sobre a identidade e despersonalização dos reclusos perante o sistema prisional, (NB: Foucault (1988) releva, na alteração das normas que levam, primeiro ao sistema pensilvaniano e, mais tarde, ao auburneano, não o cuidado e respeito pela natureza humana, mas a preocupação por uma maior eficiência no controle, não só do criminoso, como da sociedade e da forma como esta percebe e se relaciona com uma ideia de justiça) mostram-nos antes um estudo sobre os limites da fotografia e questionam a crença de Talbot de que a fotografia permitiria que a natureza se representasse a si mesma sem intervenção humana.

Ao despir a imagem do seu contexto de verosimilhança e expor o processo mecânico pelo se chega à prova fotográfica final, levanta a questão sobre se não seremos nós que vivemos aprisionados numa forma estática e mecânica de representar processos de existência.

Desde logo, pelo título. O negativo tem um número de arquivo assim como o presidiário tem um número na prisão. Foucault (1988) aborda a pena de prisão pela necessidade de ocultar processos de violência pública. O criminoso deixa de servir de exemplo para o poder da justiça e passa a ser imagem de uma força de reconversão, de uma capacidade de organização que requalifica a pessoa através de um controle apertado do seu tempo, da sua sociabilidade e do seu trabalho.

O número alude, assim, também, a este novo modelo de organização e ordenamento de hábitos e pessoas das quais a prisão é um exemplo visível e o arquivo – José Luís Neto trabalha num arquivo (Fotográfico Municipal de Lisboa) – oferece um fator de organização e administração que permite esse controle.

O rigor do processo alude, também, à forma de tratamento e de gestão do corpo social, à divisão e à especialização relativamente desinformada em relação ao todo do qual faz parte. Continuamos perante a ambivalência de um rigor tremendo com vista a um fim organizacional específico e, olhando para esse fim, da radiografia de um processo, ao mesmo tempo, perfeitamente objetivo e indefinido.

 

Não, Chromatic Fantasy e Continuum

Antes de 22474 e 22475, José Luís Neto desenvolve outro trabalho, Não, de 1996 (Figura 4), uma série de seis imagens, de 24cm de altura e uma largura que varia entre os 106 e os 196 cms.

 

 

No texto em que descreve a génese do trabalho, diz-nos:

 

Sonhei com uma estátua, a Estátua da Luz. Havia uma tempestade e a estátua enterrava-se lentamente. Comecei a ficar angustiado e aflito. Tentei salvá-la, puxando-a pela cabeça. A cabeça separou-se do corpo e ficou nas minhas mãos. Nesse mesmo instante a estátua enterrou-se completamente e eu gritei "Não". Nessa mesma noite pensei em fazer um projecto fotográfico a olhar para a lente da minha máquina fotográfica dizendo: "Não.

 

As imagens da série mostram o movimento da sua cabeça enquanto a meneia e diz Não. Este trabalho tem uma particularidade. Neto construiu um motor que, acoplado à câmara fotográfica, lhe permitia avançar o rolo a uma velocidade mais ou menos constante. O resultado viria a ser repetido em Chromatic Fantasy (2003) e em Continuum (2005).

Não prolonga o questionamento da relação da luz com a fotografia. O sonho que dá origem ao trabalho coloca-nos perante essa possibilidade de a fotografia por em causa a nossa relação com a luz, de matar a forma como percebemos a luz, as suas nuances e a sua relação com o tempo. Põe em evidência aquilo que a fotografia, historicamente, decidiu deixar de fora: a duração.

Flússer (1998, 33) diz-nos que a imagem técnica é a "imagem produzida por aparelhos" e que é um produto de textos científicos. As imagens técnicas são "produtos indiretos de textos" diferenciam-se, historicamente, das imagens tradicionais pois sucedem aos textos enquanto as outras os precedem; Segundo Flússer, a escrita linear surge a partir de um rasgar produzido pela leitura temporal de elementos na mesma imagem.

Esta questão, aliada à verosimilhança da imagem técnica com a realidade que representa – já aqui falámos do pencil of nature de Talbot – confere-lhe esse estatuto de inquestionabilidade. Aquilo que a sua superfície aparenta, é.

 

O mundo a ser representado parece ser a causa das imagens técnicas, e elas próprias parecem ser o último efeito de uma complexa cadeia causal que parte do mundo. (Flússer 1998, 24)

 

É como se a cabeça da estátua da luz nas mãos de Neto durasse sempre com a mesma luz, como numa fotografia. Como se fosse esse o pesadelo: que a fotografia, a imagem técnica, viesse a determinar o fim da variação da luz sobre os objetos; o fim da passagem do tempo sobre a nossa consciência das coisas.

Henri Bergson (1988), fala-nos da duração como a experiência psicológica do tempo. Diz-nos que aquilo que comummente designamos por tempo cronológico implica uma espécie de mapa espacial, sequencial, onde possamos ver os momentos encadeados. Em A Evolução Criadora, diz-nos que a inteligência é capaz desse encadeamento por um esforço de abstração. A forma como a nossa inteligência reconstitui o movimento, diz-nos, colocando imagens em sequência e dando-lhes movimento, como num filme, leva-nos a pensar que o movimento é decomponível.

O trabalho de Ettiene Jules Marey é disso um exemplo claro, criando a aparência do movimento ao animar a sequência de imagens. Bergson diz-nos que o verdadeiro movimento é a experiência qualitativa da duração, una e indecomponível em cada instante. A possibilidade de decompor o movimento está aberta à inteligência, à análise, mas não à experiência da sua duração.

Em Chromatic Fantasy (Figura 5, Figura 6), produzido entre as séries 22474 (2000) e 22475 (2003), José Luís Neto retrata o músico João Paulo Esteves da Silva. Recorrendo novamente aos motores que lhe permitem a rotação do negativo, captou a expressão do músico durante uma extensão de tempo.

 

 

 

 

Mais tarde, pediu-lhe que tocasse um auto-retrato musical a partir daquele retrato fotográfico, transformando a sua face numa espécie de partitura.

Apesar de a notação musical nos apresentar a obra escrita e sequenciada no espaço, a execução da música, assim como a sua audição, implica uma presença de espírito constante no instante e na nota a ser executada ou escutada. As transformações que atravessamos no processo, mais do que contrariar essa noção de tempo indiviso, vêm confirmá-lo: para qualquer instante que atravessemos, senti-lo-emos sempre como uma unidade e traremos para aí, sempre, a totalidade da nossa experiência.

Chegamos, por fim, a Continuum (2005), mais um trabalho em que José Luís Neto recorre aos motores que lhe permitem rodar o negativo durante a sua exposição. Colocando-nos novamente perante painéis fotográficos de grandes dimensões, Neto convida o espetador a deslocar-se ao longo destes. O lado performativo presente na repetição do ato fotográfico em 22474 e 22475 passa agora para o lado do espetador.

Ricardo Nicolau refere que

 

O estúdio de José Luís Neto sempre teve, tanto quanto pude constatar em várias visitas, as paredes brancas e completamente nuas – à excepção, nos últimos meses, de uma folha de papel fotográfico sensibilizado afixada num dos muros, mais ou menos à altura dos nossos olhos... ...Deste processo resultaram bandas que, com intermitências mais ou menos regulares, vão, num sistema de barras verticais, do preto ao branco, passando por várias gradações de cinzentos. (Nicolau, 2007)

 

Conclusão

Ao convidar o espetador a acompanhar o percurso do negativo que devolve à luz a sua contínua duração sobre a matéria, José Luís Neto devolve-nos a experiência da nossa identidade enquanto seres no tempo.

Flússer compara a câmara fotográfica com a caixa preta. Arlindo Machado, na apresentação da edição portuguesa, fala do termo, que vem da eletrónica,

 

onde é utilizado para designar uma parte complexa de um circuito electrónico que é omitida intencionalmente no desenho de um circuito maior (geralmente para fins de simplificação) e substituída por uma caixa vazia, sobre a qual apenas se escreve o nome do circuito omitido. (Flússer, 1988, 11)

 

Ao fazer-nos trabalhar para esse circuito, a fotografia condiciona o nosso modo de nos relacionarmos com o tempo muito mais no sentido dessa espacialidade, usando os termos de Bergson, do que na duração.

José Luís Neto abre essa caixa preta e denuncia o seu circuito de representação trazendo-nos de volta à experiência da duração através do uso da tecnologia que melhor serviu a fragmentação da nossa visão e perceção do tempo. Voltando à análise de Foucault à forma como as prisões modernas permitem gerir e fragmentar o tempo dos presidiários, podemos perceber um lado intimamente subversivo, abrindo perante nós uma experiência do tempo como uma experiência que fazemos ao durar, fora do alcance do controlo a que a constante divisão do nosso espaço de tempo e da nossa atenção nos força.

 

Referências

Bergson, Henri, (1988) Ensaios sobre os dados imediatos da consciência Lisboa: Edições 70.         [ Links ]

Flússer, Vilém, (1998) Ensaio sobre a fotografia: para uma filosofia da técnica. Lisboa:Relógio D'Água Editores.         [ Links ]

Foucault, Michel (1988) Vigiar e Punir. Petrópolis: Editora Vozes.         [ Links ]

Nicolau, Ricardo (2007) "Longa Duração." In José Luís Neto URL: www.joseluisneto.pt        [ Links ]

Feio, Francisco (2003) "Uma imagem, um negativo, todos os rostos" In José Luís Neto URL: www.joseluisneto.pt        [ Links ]

 

Artigo completo submetido a 25 de janeiro de 2017 e aprovado a 5 de fevereiro 2017

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: miguel.n.rodrigues@campus.ul.pt (Miguel Novais Jasmins Rodrigues)

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