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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.8 no.18 Lisboa jun. 2017

 

Artigos originais

Original articles

Princípio é o fim é o princípio é o fim: Arte e Ciência no trabalho de Cecília Costa

Beginning is the end is the beginning is the end: Art and Science in the work of Cecilia Costa

 

Carlos Correia*

*Portugal, artista visual. Licenciatura em Artes Plásticas (ESAD, Caldas da Rainha). Projecto Individual em Pintura (Ar.Co). Mestrado em Artes Visuais/Intermédia (Universidade de Évora).

AFILIAÇÃO: Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes, Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes, CIEBA. Largo da Academia Nacional de Belas-Artes. 1249-058 Lisboa, Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

Resumo:

O presente artigo explora a obra da artista portuguesa Cecília Costa (Caldas da Rainha, 1971). Através de diversos suportes, tais como o desenho, a escultura, o video e a instalação, o seu trabalho tem incidido nas ligações entre arte e ciência, facto ao qual a sua dupla formação académica em matemática e artes plásticas não será alheia. Este texto tentará também olhar para a muito estimulante e nem sempre pacífica relação entre arte e ciência, demonstrando como a proposta de Cecilia Costa se apresenta como um exemplo a levar em linha de conta.

Palavras-chave: arte / ciência / desenho / escultura / vídeo

 

Abstract:

This article explores the work of Portuguese artist Cecília Costa (Caldas da Rainha, 1971). Through various mediums such as drawing, sculpture, video and installation, her work has focused on the links between art and science, a fact to which his dual academic training in mathematics and fine arts will not be alien. This text will also try to look at the very stimulating and not always peaceful relationship between art and science, demonstrating how Cecilia Costa's proposal is an example to be taken into account.

Keywords: art / science / drawing / sculpture / video.

 

Introdução

O presente texto pretende levantar um pouco mais o véu sobre a obra da artista portuguesa Cecília Costa. Nascida em 1971, Caldas da Rainha, começou por estudar matemática na Universidade de Aveiro, tendo depois seguido para a licenciatura em Artes Plásticas na Escola Superior de Arte e Design das Caldas da Rainha.

Recorrendo a diversos suportes, tais como o desenho (Figura 1), a escultura (Figura 2), a fotografia (Figura 3) ou o vídeo (Figura 4, Figura 5), o trabalho desta artista já representou o nosso país na Bienal de Sydney em 2004, entre inúmeras outras exposições de vulto em Portugal e no estrangeiro. A sua obra encontra-se representada em diversas colecções institucionais, tais como o Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação PLMJ, Novo Banco, Fundação Carmona e Costa, Fundação Leal Rios. Sobre o seu trabalho escreveram já alguns dos mais prestigiados críticos de arte, como por exemplo Delfim Sardo, João Pinharanda ou Leonor Nazaré, entre outros.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Partindo do principio de que muita da arte contemporânea que pretende estabelecer ligações com a ciência acaba por ser redundante e aborrecida, pretendemos com este artigo mostrar o exemplo de um corpo de trabalho que, embora actuando nesse terreno movediço, o faz de um modo singularmente estimulante e inteligente. Devido à brevidade do espaço disponível, não entraremos na demonstração de exemplos de obras de arte que trabalham neste limbo de uma forma que nos parece menos válida.

 

1. Arte e ciência: uma relação tempestuosa ou talvez não

As profícuas relações entre arte e ciência marcam, cada vez mais, presença as-sídua no universo da arte contemporânea. Contudo, o que com demasiada frequência sucede é que esta relação se dá a níveis muito primários e pouco interessantes, ficando este facto a dever-se, principalmente, à pura e simples razão de que o objecto apresentado como "arte", desta, apenas leva a pretensão de o ser e uma capa que, insuficientemente, o disfarça de tal. Dito de outra forma, são objectos cuja razão de ser se sustenta, quase que exclusivamente, na sua génese cientifica e sem a qual carecem da estrutura plástica que lhes permita a sobrevivência enquanto obra de arte.

Assim, alguma arte contemporânea que se reclama como operadora do muito apetecível cruzamento passível de ser estabelecido com a ciência, acaba por ser redundante, aborrecida e estéril. Redundante porque se limita a repetir o que outros já fizeram, apenas aumentando o volume, o peso ou o cheiro da obra (o que, na maioria dos casos, acaba por resultar numa penosa penalização para o incauto espectador); aborrecida, porque parece tentar à força dotar a arte de uma função prática (aproximando-a, assim, da ciência pela via mais imediata), quando é mais do que sabido que a arte não serve (no sentido mais coloquial do termo) para nada; estéril porque, querendo unir os dois campos estritamente através de processos mecânicos (levando as cores para o laboratório ou trazendo os números para o atelier), acaba por produzir objectos que não se encaixam nem num nem noutro lugar.

Parece-nos que um dos problemas que leva a que obras pretensamente hibridas, isto é, que à partida contariam com um pouco de arte e outro tanto de ciência no seu ADN, acabem por se revelar despidas quer de um quer de outro destes constituintes, se prende com uma questão de dosagem. Quer isto dizer que uma obra de arte pode ser condimentada com um toque de ciência, mas se essa medida for excedida, duas reacções têm lugar: por um lado, a obra deixa de ser arte e por outro, nunca chegará a ser ciência.

Não queremos, de modo algum, advogar que estas duas áreas de criação humana não possam ou não devam misturar-se, mas antes que é desejável que o façam sem se esquecerem da sua identidade. Obviamente, falamos aqui de obras de arte que trazem a si algo do conhecimento científico e nunca do contrário, pois não nos julgamos habilitados para tal.

Em sentido contrário a este modo inepto de aproximar arte e ciência, o trabalho que a artista Cecília Costa tem vindo a produzir, tráz para o campo da arte uma pitada de ciência, que a artista doseia magistralmente, sem chegar a cair na tentação de tentar fazer a arte passar por ciência ou vice-versa. Vejamos, então, porquê e de que modos esse processo toma lugar.

 

2. Cecília Costa – a arte da dosagem

O trabalho que Cecília Costa vem desenvolvendo de forma reconhecida há mais de uma década apresenta-se, claramente, como a antítese do que acima descrevemos pois, não obstante a sua radicância no universo científico, ele não carece de tal filiação para sobreviver no universo artístico. Ou seja, não se esquece de que é, antes de qualquer outra coisa, obra de arte.

A tensão entre arte e ciência tem, desde o início, marcado o percurso artístico da artista. Ainda que a primeira acabe, invariavelmente, por tomar a dianteira, a outra não deixa, contudo, de enformar a elaborada estrutura conceptual que permeia o seu trabalho. Mas a operação por ela levada a cabo não se limita à exploração de meras curiosidades científicas que, de um modo ou de outro, se apresentam com capital artístico. Assim sendo, será precisamente nesses peculiares modos de pensar e de fazer que a nossa reflexão irá incidir, pretendendo tornar claro como a arte que a si chama o conhecimento cientifico não tem, necessariamente, de ser redundante.

Mas o que queremos, exactamente, dizer com a expressão "arte da dosagem"? Devido à sua formação académica em matemáticas puras – à qual a artista associa uma natural curiosidade pelo conhecimento científico que a leva a pesquisar continuamente, de modo informal, também por tais campos do conhecimento – ela encontra-se numa posição privilegiada para saber, com exactidão, a porção eficaz de saberes passível de transitar de um campo apara outro (leia-se, da ciência para a arte), sem destituir da sua natureza aquele que recebe e sem esvaziar de sentido aquele que oferece. Acerca desta tensão entre arte e ciência, entre subjectividade e objectividade presente na obra de Cecília Costa, diz-nos João Pinharanda:

 

(...) Cecília Costa, partindo de pressupostos muito diversos, usa o retrato como meio pretensamente objectivo. (...) Obtém, assim, novos rostos, falsas unidades identitárias, colocando-se numa ambiguidade entre a realidade de uma investigação visual e a ficção de uma investigação cientifico-analítica. (...) (Pinharanda, 2005, 12)

 

E é isto a arte da dosagem: saber dotar um objecto de um determinado campo do saber com predicados provindos de outro, sem que a identidade de nenhum dos dois seja posta em causa.

 

3. Uma das máscaras da arte

E se é certo que a questão da dosagem, atrás tratada, se revela absolutamente preponderante para a construção de obras de arte que se reclamam devedoras de conhecimento científico, uma outra existe que com esta rivaliza em termos de relevância: referimo-nos à questão de a artista saber que o que faz é arte e é para ser visto enquanto tal. Ou seja, no trabalho realizado por Cecília Costa até à data, não é possível detectar qualquer vontade de que o mesmo seja lido como ciência (área de conhecimento objectiva) amolecida pelo efeito do contacto com a arte (área de conhecimento contagiada de modo inato pela subjectividade).

Assim, tem sido nestes dois pólos que o seu trabalho artístico tem tocado, sendo porém certo que a objectividade científica nunca chega a levar a melhor sobre a subjectividade artística. Como diz Leonor Nazaré no texto publicado no catálogo da Bienal de Sydney de 2004:

 

Cecília Costas's work is an investigation of a biological fact that challenges her: our constitutive bilateral symmetry. (...) This duality is a complementary coexistence of opposites as fundamental as the interdependence of intuitive sensibility and reaseon, day and night, male and female, and rationality and delirium, wich would become sterile without each other. (Nazaré, 2004:66).

 

A questão da simetria tem sido uma das mais profíquas fontes conceptuais para a artista e a presença desta, desde sempre, se fez sentir no seu trabalho, quer de um modo mais expontâneo, quer por vias mais recatadas. Como exemplo de um modo directo de tratar a questão da simetria, podemos lembrar uma das peças que a artista levou à bienal de Sydney, uma instalação video intitulada Pli. Nesta obra a artista criou um póster no qual escreveu o nome de diversas cores, apresentando cada palavra escrita numa cor diferente daquela que designava. Por exemplo, tínhamos red escrito a azul, yellow escrito a verde ou green escrito a vermelho. Depois, a artista pediu a várias pessoas que lessem o póster. Ora, o que sucede é que este exercício obriga os dois hemisférios cerebrais a trabalharem em simultâneo, não em cooperação, mas sim atropelando-se um ao outro. No campo científico, esta acção tem a designação de efeito Stroop, levando o nome de quem a descobriu, John Ridley Stroop, em 1935. Por um lado, a intuição mostra-nos (ver, subjectividade) que é verde, mas a razão diz-nos (ler, objectividade) que é vermelho. O que isto provoca é um verdadeiro nó em quem tenta ler o póster, traduzindo-se esse entrave em expressões de dificuldade e atrapalhação que acabam por se tornar tão divertidas quanto embaraçosas. A instalação era constituída por duas projecções, sendo que numa podíamos ver/ler o póster e noutra assistíamos àqueles que tentaram fazê-lo antes de nós.

O que nos diz esta peça em relação à questão que atrás abordámos, acerca da identidade da arte que se transveste de ciência? A resposta a esta questão reside, precisamente, na questão da dosagem: Cecilia Costa nunca quis que o conhecimento científico que está na base desta peça prevalecesse ao efeito plástico da mesma. Ou seja, o enquadramento dos vários intervenientes, as suas roupas, o fundo no qual pousaram, bem como o próprio póster e o seu design, já para não falar na dimensão da dupla projecção e no modo como esta foi instalada nas diversas salas onde tem vindo a ser exibida, todos estes componentes estéticos, acabam por ganhar a dianteira do que a peça, verdadeiramente, é. Dito de outra forma, é como se a ciência que, indiscutivelmente, se encontra na base conceptual desta obra, dotando-a de sentido e interesse, passasse para segundo (ou terceiro, talvez quarto) plano, uma vez totalmente edificada a instalação. Para completar esta lista de predicados estéticos dos quais esta peça se encontra investida, temos o facto fulcral de toda ela se desenrolar em torno de um ponto vital para o universo artístico e que é, precisamente, a cor. Assim, à pergunta "a que se fica a dever esta alteração hierárquica no seio da obra?", respondemos o seguinte: "precisamente, à sua indiscutível natureza artística".

Quer isto dizer que, nas mãos de um(a) artista como Cecilia Costa, a ciência ou o conhecimento que desta provém, não passa por ser mais do que uma das milhentas máscaras passíveis de transvestir a arte, nunca chegando a fazer perigar a sua intrínseca condição artística, mas com esta convivendo de um modo sinérgico.

 

4. Esticar a corda

Habitualmente, a expressão "esticar a corda", refere-se a um qualquer tipo de abuso ou uso excessivo. Ora, se assim a entendermos, no contexto do presente artigo, pode parecer que estamos a entrar em contradição com o que atrás dissemos, acerca do que apelidámos de "arte da dosagem". Mas talvez não seja exactamente assim. Senão, vejamos: uma das constantes que têm povoado o trabalho de Cecília Costa em tempos mais recentes, prende-se precisamente com a deformação da matéria: mesas de madeira maciça que vergam sob o peso de livros ou de uma pequena esfera, sólidos cubos cujas arestas se vêem repentinamente arredondadas, cadeiras com quase um século de existência que, à força de tanto quererem tocar numa sua semelhante, vêem a sua outrora imóvel perna alongar-se em direcção ao objecto do seu desejo. Mas vemos também pesadas peças de mobiliário assentes em frágeis copos de cristal.

Mais uma vez, o conhecimento que está na base de todos estes gestos artísticos, radica no saber de ordem científica. Mas a intervenção desta por aí se fica, não carecendo o espectador de ser, também ele, possuidor de tais conhecimentos. E isto porquê? Porque o produto final é, antes de qualquer outra coisa, uma obra de arte, logo, passível de ser desfrutada sem qualquer espécie de pré-requisito pseudo-científico ou pseudo-filosófico. No entanto, não nos iludamos: quer a ciência, quer a teoria ou mesmo a filosofia, encontram-se fortemente enraizadas na concepção da obra de Cecília Costa mas, por via da tal "arte da dosagem", a artista não tem necessidade de maçar o espectador com explicações que arrefecem o contacto com um objecto (seja ele um desenho, uma escultura ou um video) que se quer quente e intenso.

É desta forma que o trabalho de Cecilia Costa "estica a corda", não no sentido de usar excessivamente ou de abusar, mas sim no de nos brindar com peças que, fazendo uso da gentileza possível, nos obrigam a esticar o nosso pensamento, a alargar as concepções estabelecidas e a ver com outros olhos o mundo que nos rodeia. Tudo isto, tendo sempre como pano de fundo o confronto entre razão e emoção, tal como nos diz Delfim Sardo:

 

(...) Cecília Costa (...) tem vindo a usar a questão da lateralidade para falar, de uma forma mais ampla, sobre a cisão interior de todos nós. Quer na série de retratos nos quais juntava dois lados direitos (ou dois lados esquerdos) da mesma pessoa para nos fazer realizar as profundas diferenças que a nossa falsa simetria transporta, quer nos trabalhos mais recentes em que usa o seu próprio corpo para voltar a apresentar a duplicidade, o tema da divisão e da cisão interiores têm estado sempre presentes no seu trabalho.(...) (Sardo, 2006:20)

 

A presença do corpo, sobretudo do seu próprio, tem sido, porventura, o mais recorrente dos suportes de trabalho da artista. Esta assiduidade faz-se invariavelmente notar, seja de modo directo (nos inúmeros auto-retratos que até à data realizou) ou indirecto (as cuecas tecidas com cabelo humano que produziu em 2002). E que suporte poderia ser mais adequado para se discutir arte e ciência do que o corpo humano?

 

Conclusão

À laia de conclusão, podemos dizer que o presente artigo referiu alguns dos aspectos responsáveis pela esterilidade de alguma arte contemporânea que pretende cruzar-se com a ciência e, em contrapartida, apresentou, com a brevidade exigida, um corpo de trabalho (bem como um corpo trabalhado) que se move nesse terreno escorregadio de forma, quanto a nós, absolutamente eficaz. De um modo geral, pretendemos deixar abertas portas pelas quais a passagem para estes caminhos híbridos se faça de modos estimulantes e compensadores.

 

Referências

Nazaré, Leonor (2004) "Cecília Costa: de cada lado de nós", In On Reason and Emotion, Sydney, ed. Biennale of Sydney        [ Links ]

Pinharanda, João (2005) "Figuras portuguesas para uma comunidade universal", Portugal, algumas figuras, Lisboa: Gabinete das Relações Interculturais do Ministério da Cultura        [ Links ]

Sardo, Delfim (2006) "Memória e futuro", Lisboa: Ministério da Economia e da Inovação.         [ Links ]

 

Artigo completo submetido a 22 de janeiro de 2017 e aprovado a 5 de fevereiro 2017

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: corrcarlos@gmail.com (Carlos Correia)

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