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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.8 no.18 Lisboa jun. 2017

 

Artigos originais

Original articles

Cicatrizes na paisagem: o trabalho de Cláudia Zimmer entre o olhar e o lugar

Scars in the landscape: the work of Cláudia Zimmer between the look and the site

 

Daniela Mendes Cidade*

*Brasil, artista visual. Bacharel em Artes Plásticas pelo Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, (IA/UFRGS). Mestre em Teoria, História e Crítica da Arquitetura, UFRGS. Doutora em Arquitetura, UFRGS.

AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Faculdade de Arquitetura (FA), Departamento de Arquitetura. Av. Sarmento Leite, 320. CEP 90050-170. Porto Alegre. Rio Grande do Sul, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

Resumo:

O trabalho da artista brasileira Claudia Zimmer, nascida em Florianópolis, Brasil, consiste em utilizar-se de simulações de sua "meia" possibilidade/impossibilidade visual, para implantar elementos físicos diante da objetiva da câmara. A partir do trabalho de Zimmer, o artigo propõe uma reflexão sobre a questão da fotografia e sua inscrição na paisagem como um processo de sublimação, onde a percepção de presenças luminosas e sombrias antes não reveladas apontam para uma possível cicatrização de fissuras.

Palavras-chave: fotografia / paisagem / sublime.

 

Abstract:

The work of the Brazilian artist Claudia Zimmer, born in Florianópolis, Brazil, consists of using simulations of her "half" visual impossibility, to implant physical elements face the camera lens. Departing at the work of Zimmer, the article proposes a reflection on the question of photography and its inscription on the landscape as a process of sublimation, where the perception of light and dark presences previously undiscovered point to a possible healing of fissures.

Keywords: photography / landscape / sublime.

 

Introdução

O artigo propõe uma reflexão sobre a questão da interposição de elementos na paisagem como uma maneira de revelar presenças antes não percebidas, a partir da produção plástica da brasileira Claudia Zimmer. A artista, nascida em Florianópolis, Brasil, em 1968, interessou-se pela fotografia de paisagem em função de uma dificuldade de percepção visual: um problema congênito em um dos olhos, uma espécie de cicatriz, que a impedia de ver com clareza. O trabalho de Zimmer consiste em utilizar-se de simulações de sua "meia" possibilidade/impossibilidade visual, para implantar elementos físicos diante da objetiva da câmara para revelar uma presença até então desapercebida.

A ideia de paisagem, conforme Maderuelo (2007) não é sinônimo de natureza, nem tão pouco é o meio físico que nos rodeia ou sobre o qual nos situamos, mas se trata de um constructo, de uma elaboração mental que realizamos através dos fenômenos da cultura" (Maderuelo, 2007: 12). Desta forma, a paisagem não é abordada por um olhar frontal, mas pela observação de seus reflexos na arte, buscando uma maneira de revelar como a linguagem artística, mais especificamente a fotografia, se inscreve na paisagem. Para refletir sobre a paisagem, modificando-a, ou, ao contrário, revelando uma presença inédita, parte-se das seguintes questões: Qual o papel da fotografia diante da paisagem? Como a interposição de um obstáculo entre o olhar (fotográfico) e a paisagem pode levar a um processo de sublimação e à percepção de presenças luminosas e sombrias antes não reveladas, apontando para uma possível regeneração curativa, cicatrizando fissuras?

 

1. A sublimação do olhar

Claudia Zimmer, interessou-se pela fotografia de paisagem a partir de uma dificuldade de percepção visual. É importante observar que a artista nasceu em uma região do Brasil onde a singularidade da paisagem desempenha um papel importante no imaginário, com praias e amplos espaços panorâmicos e praias pitorescas, e que transformaram o litoral em um lugar de peregrinação e de atração turística. A paisagem tornou-se objeto de identidade da ilha de Florianópolis, no Brasil, se transformando em um produto da atitude cultural frente ao entorno físico e geográfico e seus recursos.

O trabalho de Claudia Zimmer consiste em utilizar-se de simulações de sua "meia" possibilidade/impossibilidade perceptiva, ou seja; implantação de elementos físicos diante da objetiva da câmara. Essa interposição torna-se uma estratégia para revelar uma presença até então não percebida ou representada (Figura 1).

 

 

Para refletir sobre as maneiras de abordar a paisagem, modificando–a, ou, ao contrário, revelando uma presença inédita, o trabalho da artista circula entre ambiente e meio ambiente, baseando-se na linha de transversalidade entre sujeito/paisagem, onde essa barra de transversalidade separa e ao mesmo tempo liga sem adicionar e nega sem romper. A partir desse princípio, a paisagem é abordada a partir do conceito de visita de Serres (1994) que relaciona a experiência no espaço ao ato de deslocamento, pois, "ver pressupõe um observador imóvel, visitar exige que percebamos ao movermo-nos" Serres, 1994: 65). Meia percepção, meio-ambiente, meia-paisagem: esse jogo de palavras levou a artista a um processo de sublimação e a uma posterior conceitualização de sua prática artística, a partir da criação de um sistema e a submissão do trabalho plástico à execução de determinadas regras baseadas nessa preposição onde a palavra MEIO estivesse presente: meia paisagem, meia praia, meio ambiente (Figura 2).

 

 

A dimensão e os desdobramentos políticos do trabalho, longe de serem puramente panfletários aparecem na medida em que Zimmer aborda um assunto que poderia nos levar diretamente a uma suposição política. A interposições de obstáculos na paisagem, obstáculos esses também físicos, como construções em regiões de encosta, morros e praias, como verdadeiras feridas na paisagem, também não despertariam para um questionamento sobre a controvertida ocupação do meio ambiente?

Certos trabalhos de Zimmer tem como suporte o papel-jornal, que lembra esse caráter panfletário do meio, mas que para a autora tem apenas uma função de apagamento, de diluição de formas da fotografia, de interposição de um véu sobre a paisagem. O projeto artístico em realização desde 2008 denominado A Cartografia do Meio (Figura 3 e Figura 4), consiste em:

 

 

 

 

mapear e percorrer lugares cujo nome contém a palavra 'meio' ou 'meia'. Na realização deste trabalho, algumas regras e operações são estipuladas a priori, tais como: levantar pontos de relevância em um trajeto, visitar estes pontos, fotografar suas paisagens, realizar imagens semi-visíveis e imprimi-las em papel jornal, realizar outros tipos de imagens, fazer intervenções e deslocar-se novamente até um outro ponto. Advindo destas operações e deslocamentos está-se construindo o Mapa do Meio (Zimmer, 2009: 17).

 

O meio, o substrato, o suporte que não se descola de sua função: o jornal, a notícia, como recurso estratégico. Mesmo sem o cunho contestador do panfleto, Zimmer continua:

A princípio, propunha-se apenas fotografar determinados lugares para realizar imagens que apresentassem certo apagamento das formas e diluição de contornos.

Entretanto, a ida aos lugares para a realização de tais fotografias e o processo de retorno, o fato de fazer o levantamento por meio da internet de como chegar a alguns destes locais usando para isso a visualização de um mapa rodoviário unido à experiência de percorrer este trajeto, as regras previamente determinadas para realizar alguns trabalhos, foi configurando e consolidando o que vem a ser a cartografia neste meu projeto artístico (Zimmer, 2009: 18).

 

Seria esse um processo de cura da e pela paisagem?

O suporte escolhido para as imagens fotográficas de Zimmer carrega consigo a capacidade política do trabalho: a procura do artista por suportes não convencionais, originário de outro tipo de mídia, para falar de temas como a utopia e as transformações, e a capacidade de nos fazer pensar sobre o entorno de maneira diferente. Abre-se aqui os parênteses sobre os sutis limites entre o político e o panfletário, sobre os ferimentos na paisagem e suas suturas: Se o referido processo de ocupação de espaços da paisagem com edificações torna-se um problema grave nos últimos tempos na região de Florianópolis, a obra da artista poderia ser lida como uma manifestação do caráter irregular e complexo do processo de "patrimonialização" da paisagem.

A iconografia geomorfológica da Ilha de Florianópolis só obteve uma legislação que a protegesse nos últimos anos. Essa desordenada utilização do solo provocou uma série de problemas na Ilha. Enchentes terminaram fazendo com que o avanço do mar destruísse uma série de construções à beira mar, principalmente as localizadas ao sul da ilha, como Armação.

 

2. Ruínas da paisagem

Ruína lembra sublime, e o conceito de sublime se refere tanto às ruínas clássicas como às contemporâneas. O sublime tem a origem no trágico, no patético. Vem do latim sublimis, que quer dizer elevado. O adjetivo qualifica as formas de sacrifício, da abnegação e do heroísmo humano quando enfrenta os perigos incontroláveis da natureza. Por isso a erupção de um vulcão, um terremoto, ou uma tempestade possuem uma estética do sublime: Diante da força, há uma possibilidade de retomada da vida. O conteúdo político das manifestações do sublime poderia estar situado nas transmutações do homem por amor (a uma causa), que poderiam levar também a uma transformação pelo sofrimento, ou por uma paixão, finalizando com o processo de regeneração, de cura.

Nossos sentimentos apresentam-se geralmente em conflito quando em frente aos restos da destruição: de um lado o horror da destruição, da perdas. De outro, a curiosidade pelas pequenas histórias de heroísmo, de sublimação, de cicatrização. Atrás de tudo, a política de ocupação territorial e suas fissuras. Isso é revelado pela fotografia. Teria algo de sublime na própria estética da linguagem fotográfica que a transformasse em um meio privilegiado na escolha dos artistas para se debruçar sobre essas ruínas contemporâneas? Como é possível que a ruína, aquela que enaltece o poder de destruição da natureza, como o mar, tentando tomar de volta um espaço que foi interposto entre ele e a paisagem pelo homem nos produza uma estética na contemplação?

A ruína está cada vez mais presente em forma de fotografia seja nas paredes dos museus e galerias atuais. A estética da ruína representa transformação, presença do passado e possibilidade de reconstrução. A ruína, conforme autores como Olivares (2006), é uma categoria simbólica que vem do Renascimento. O homem do Renascimento tinha a plena consciência que estava vivendo em um período de esplendor. Por isso, volta-se ao passado, à Roma e Atenas, que ficaram como ruínas. A ruína representa uma associação entre presente e passado gloriosos. Entretanto a ruína é bipolar: ela simboliza na filosofia e na literatura tanto aspectos nobres de transformação e de melhora, de renovação, como de destruição e de tragédia irremediáveis. A tecnologia ajuda a construir prédios cada vez mais altos, verticais, interpondo-os na paisagem, nas praias. Mas as forças descontroladas da natureza, do mar tentando reconquistar seus espaços ocupados pelo homem nos lembram que tudo pode voltar ao que era antes.

Essa característica de bipolaridade talvez seja o elemento que permita, tanto no terreno da imagem, não só na fotografia, como também na escultura e pintura, transformar a ruína como uma chave para processar nossas contradições internas. O artista tem muito pouco controle sobre o processo em que se engaja na construção de coisas, de imagens, assim como tem pouco controle sobre o seu próprio destino. Ao enfrentar inúmeros obstáculos, a figura da criação aparece ao artista como um caminho descendente onde a realidade pode ser alcançada através de atos de destruição: martelar, serrar, cortar. São instrumentos que o artista utiliza em uma guerra particular, cujo objetivo é a liberdade, e o preço a pagar é a ruína. O artista é o vanguardista de seu próprio campo de batalha, um operário demolidor de seu próprio canteiro de obras. Destruir para criar.

O trabalho plástico de Claudia Zimmer e à relação paisagem/imagem por ela estabelecido: uma falha, um anteparo, um obstáculo, rachadura, uma ruína, uma falta ou um excesso no meio do processo de percepção poderia enaltecer a distância que existe entre essa percepção e a realidade? E de que maneira essa falha, ou esse excesso, pode ser um conceito operatório para um trabalho em fotografia e em Arte, apontando para a fenomenologia do sublime, ou seja: uma regeneração da paisagem?

 

Conclusão

O trabalho de Zimmer surge de uma meia cegueira, de uma impossibilidade de completude, para tornar-se conceito. A partir desse meio, a artista passa a fazer uma catalogação de lugares que por algum motivo levam em seu nome o adjetivo meio: Meia-Praia, Praia do Meio, etc. Da ligação física entre esses lugares surge uma cartografia com as suas fissuras.

O trabalho da artista apresenta o potencial político que desdobra-se para interpretações mais amplas sobre o conceito do sublime na paisagem e suas relações com a fotografia, e na maneira como um desastre se interpõe no meio, revelando determinadas fissuras e chamando a atenção para possíveis perguntas e respostas, políticas.

Mas não é o panfleto ou o sensacionalismo de luta pelo meio ambiente a razão do trabalho da artista. Antes de tudo, situo aqui o sublime como possibilidade de regeneração. A noção de que o sublime extrapola a percepção, promovendo um processo de teatralização do extremo, do ilimitado, no espaço fenomenológico, apontando para uma purificação da experiência espacial da paisagem, me parece ser a abordagem mais pertinente nesse trabalho da artista.

A sucessão de pontos de vista diversos das paisagens por onde a artista visita acabam por revelar uma presença até então desapercebida. Um processo possível de participação na invenção da paisagem a partir de uma falha, de uma violação, apontando para a invenção de uma fenomenologia do sublime como possibilidade regeneradora da paisagem.

 

Referências

Maderuelo, Javier (2007) Paisaje y arte. Madrid: Abada Editores. ISBN 978-84-96775-15-2.         [ Links ]

Serres, Michel (1994) Atlas. Lisboa: Instituto Piaget. ISBN 972-8407-16-5        [ Links ]

Zimmer, Claudia (2009) Meia Paisagem Meia. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: PPGAVI – Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Olivares, Rosa (2006) "La incomprensible beleza de la tragédi". Exit. ISSN 1697-5405. Nº 24: 14-22.81         [ Links ]

 

Artigo completo submetido a 23 de janeiro de 2017 e aprovado a 5 de fevereiro 2017

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: arq01@ufrgs.br (Daniela Mendes Cidade)

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