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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.8 no.18 Lisboa jun. 2017

 

Dossier editorial

Editorial section

O duplo de Laura Cattani: reflexões sobre as armadilhas de Narciso em um trabalho plástico

The double in Laura Cattani: reflection on the traps of Narcisssus in a plastic work

 

Eduardo Figueiredo Vieira da Cunha*

*Brasil, Artista Visual. Bacharelado em Desenho pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Master of Fine Artes, City University de Nova York. Doutorado em Artes Plásticas e Ciências da Arte em Paris-1 Panthéon-Sorbonne (Paris-1).

AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Instituto de Artes (IA); Departamento de Artes (DAV); Programa de pós-graduação em Artes Visuais (PPGAV) R. Sr. dos Passos, 248 – Centro, Porto Alegre – RS, 90020-180, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

Resumo:

Este artigo analisa o trabalho da artista brasileira Laura Cattani (Brasil, 1990), mais especificamente o denominado "Demônio Pessoal" (2015) e os desdobramentos do conceito do duplo, da psicanálise à arte. Pretende-se comparar dois mitos da cultura greco-romana, Narciso e Pigmalião, apresentados por Stoichita (Stoichita, 2011) sobre os limites da pulsão do desejo erótico na produção teórico-prática. A conclusão versa sobre as armadilhas do narcisismo na arte, e sobre a sublimação e criação.

Palavras-chave: Narcisismo / erotismo duplo / limite / sublimação.

 

Abstract:

This article analyzes the work of the Brazilian artist Laura Cattani (1982), more specifically the "Personal Demon" (2015) and the unfolding of the double concept, from psychoanalysis to art. It is intended to compare two myths of Greco-Roman culture, Narcissus and Pygmalion, presented by Stoichita (Stoichita, 2011) on the limits of the drive of erotic desire in theoretical-practical production. The conclusion is about the pitfalls of narcissism in art, and about sublimation and creation.

Keywords: Narcissism / double / eroticism / limit / sublimation.

 

Introdução

Quando se trata da questão da metodologia da pesquisa em Artes Plásticas, um conselho é sempre dado ao jovem artista: o de tomar cuidado com as armadilhas impostas por Narciso. Embora a arte contemporânea trabalhe muito com os temas ligados à autobiografia e à identidade, ultapassar certos limites de controle do ego para alguém que se dedica ao oficio da criação, pode ser algo remoto e indefinido,como o amplo conceito de autoria. O trabalho prático, apresentando aqui como exemplo a obra intitulada Demônio Pessoal (Figura 1) e a consequente reflexão teórica da artista Laura Cattani, realizada junto ao Programa de Pós-Graduação do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil) podem ser lidos como um comentário sobre estas fronteiras tênues e permeáveis entre o desejo do artista e sua criação. O fenômeno do reflexo, o erotismo e o conceito do duplo, serão abordados no ponto de vista da instauração da obra, onde o espelho aparece como um elemento revelador. Pretende-se situar no fenômeno da especulação da imagem, o duplo narcisista da artista, refletindo-se em um retrato impalpável, que corre o risco de ficar preso em uma armadilha ao se inebriar em sua própria imagem. A possibilidade de escape viria pelo mito de Pigmalião, consolidando-se como um processo de sublimação que resulta na construção efetiva da obra física, um retrato não-especular do artista.

 

 

O objetivo é realizar uma reflexão, através de metodologia dialética, sobre os mitos de Narciso e Pigmalião, percorrendo as relações entre arte e psicanálise como caminhos de mão dupla. E tratar sobre a emergência da obra quando esta aponta para a autobiografia. Usando exemplos tanto de autores clássicos da literatura universal como Ovídio, Dante e Plínio, da filosofia e da psicanálise, passamos por autores e artistas latino-americanos contemporâneos como María Negroni (2013), Tania Rivera (2012) e Munir Klamt. O artigo trata da sublimação como pulsão, indicando a possibilidade de substituição do desejo narcisista, que em princípio é estéril, por outro, em um investimento que se constrói em um corpo plástico, o da realização da obra de arte.

 

1. O desejo em Narciso

O duplo pode ser visto como o desdobramento do real, o lugar da fantasia e da imaginação do artista. Por isso, antes é preciso um esclarecimento sobre a especificidade da produção plástica de Laura Cattani: Ela já começa através de um trabalho em dupla, compartilhando a criação com o artista Munir Klamt, que também é seu companheiro. Através de uma colaboração que acontece há mais de 10 anos, os dois artistas formaram uma entidade, um duplo que denominam de Ío. Esta entidade, segundo a artista, absorve o desejo da imaginação, que adquire a forma de obras como a escultura Demônio Pessoal. Se a realidade incomoda o artista, o desejo o liberta. Como possuir algo que eu desejo? Colocando-o no interior de mim mesmo.

O espelho, elemento central da obra Demônio Pessoal, nos oferece um prato de vidro, frio e imediato: o ver e o ter. Ali o observador pode se perder, como Narciso, e acabar preso pela armadilha. Laura Cattani conta que sempre foi obcecada por armadilhas. E complementa, relatando que o processo de concepção da escultura incluiu uma pesquisa sobre armadilhas medievais, chegado às mais cruéis, utilizadas no passado para capturar animais de grande porte como ursos. Demônio Pessoal segue este modelo, formado por duas arcadas com fileiras de dentes de vidro. O processo de construção do mecanismo da escultura-armadilha foi bastante complicado, e partiu de uma série de esboços prévios. (Figura 2)

 

 

O acionador da armadilha-escultura, redondo, ocupa uma posição privilegiada na obra. Um prato em aço inoxidável polido, que é também um lugar de reflexão. É a partir do espelho e do reflexo, em um mise-en-abyme, que o mecanismo fatal pode ser acionado. O espelho pode ser visto como um lugar privilegiado de uma operação que permite ver a nossa face, mas também é um lugar possível de todas as fascinações. Um lugar perigoso que nos leva a diferentes valores simbólicos, como a identidade, a alteridade e o próprio reflexo da imagem. Parafraseando Agnès Minazzoli, o espelho se transforma em olho da imagem, "aquele sem dúvida que nos convoca a manter vigilância" (Minazzoli, 1999: 55).

Esta imagem refletida parece ter o poder de nos mostrar o reflexo de nossas memórias e fantasias, sem que nós saibamos onde existem os limites, onde termina a escultura e começam nossos sonhos. É uma escultura-armadilha, um lugar de convertibilidade e de fronteiras. Fronteiras que se abrem e se fecham constantemente.

A poética de Cattani realiza um entrecruzamento de temas comuns a duas eras – a medieval e a contemporânea: o duplo, o lugar do veneno e o lugar da cura, a arte e a dor, os mártires, a autobiografia, a ascensão divina, o rito de possessão demoníaco, o transe extático, a proteção e o desdobramento do real. A arte aparece como um abrigo para estes fantasmas, onde a palavra surge como um texto, mas talvez não consiga transmitir isso tudo. Notamos que tanto no pensamento dominante na idade média, como na obra de muitos artistas contemporâneos, como é o caso de Cattani, o fantasma se converte em uma experiência extrema da perda. A estratégia da idade média era curiosa: tratava-se de atrair o olhar pelo efeito do medo e de desatar esse nó da armadilha usando a palavra, a voz. A arte contemporânea comungaria com a idade média figuras de fantasmas emprestados de outras épocas, como a confissão, as penitências, os mártires, a idolatria e a iconoclastia, as imagens mentais e os diferentes aspectos da ilusão, a alucinação, como um comentário e proteção da realidade.

Desatar os nós da armadilha de Narciso: a palavra e a voz convertem-se agora em um texto, o texto do artista. Escrevendo e falando sobre seu próprio trabalho, o artista-pesquisador conseguiria se livrar da armadilha do narcisismo estéril, transferindo-o à ideia do duplo que constrói, desdobrando assim seus fantasmas e desejos em obras, como Pigmalião? Ou se expõe ainda mais ao risco: o de perceber, no duplo, a mesma realidade da qual pretendia o artista escapar, não sabendo distinguir e caindo assim na armadilha, como um Narciso alucinado?

 

2. O desejo em Pigmalião

Escrevendo sobre Demônio pessoal, a artista salienta que a dupicação se expande para um "duplo estado", o do criador e observador: "o reflexo do indivíduo com seu duplo, encontra a atração dos abismos. A imagem suscita que o espectador, ao mergulhar no centro do Demônio Pessoal, o aciona. Dupla aniquilação – a do ser e do dispositivo" (Cattani, 2016:74). Mas a obra, apesar de ameaçada à aniquilação, se constrói fisicamente, com a matéria dos sonhos e dos fantasmas. A história do escultor grego que se apaixona pela sua obra, e que os Deuses, com um gesto de recompensa pela dedicação do escultor, decidem dar vida, constitui-se segiundo Stoichita em "a primeira grande história de simulacros da cultura ocidental" (Stoichita, 2011). A particularidade do mito descrito por Ovídio é que a sua escultura é fruto de sua imaginação e da sua arte. Já a mulher que os deuses lhe oferecem como esposa é um ser transformado, um artefato dotado de alma e corpo, objeto do desejo. Ainda, e apesar disto, um fantasma, um duplo.

Pigmalião, como um mito do esquecimento dos limites, das origens eróticas do duplo, e dos desvios do desejo, tem um valor de substituição do real, para se transformar em uma duplicação fantasmática. Clément Rosset lembra que a estrutura do conceito do duplo é a de não recusar-se a perceber o real, mas simplesmente desdobrá-lo (Rosset, 2016). E que o fracasso do duplo seria reconhecer muito tarde, no duplo protetor, a mesma realidade que queria-se proteger.

Sabemos que o conceito de fracasso em Arte é algo amplo. Ele pode ser considerado uma aniquilação, como também um elemento propulsor para novos recomeços. Em Elegia, Maria Negroni cita Samuel Beckett, quando ele diz que tudo o que pode pretender o artista é fracassar melhor (Negroni, 2013). Em eterna confrontação com a adversidade, o artista trabalha com o absurdo quando a perspectiva de fracasso inclui o contrário, a esperança e superação. Mas fracasso do artista tentado por Narciso aponta para outro caminho: o de perder-se em encantamento com sua própria imagem. Nenhuma obra seria criada. Um fracasso estéril. Stoichita lembra bem que Narciso e Pigmalião são dois mitos relativos ao excesso de investimento erótico e fantásmico na imagem A diferença é que a história de Pigmalião é uma história de esquecimento dos limites, mas uma loucura que os deuses tratam com indulgência. Já em Narciso, a obra é ausente, pois a imagem é evanescente, sem corpo, como um reflexo. Por isto, ele é punido pelos deuses com a morte.

Voltando a Demônio Pessoal: o reflexo no disparador da armadilha está ali para lembrar, como um contraveneno, dos males da autoreferência. Se estamos diante do perigo, vacinemo-nos. Até o animal, que escapa vivo de uma armadilha, aprende a lição e nunca mais é pego. Nossa imagem refletida nos coloca diante de um dilema, uma vacilação: entre o medo e o desejo, entre a tragédia da vida e a obra, entre a perda e a permanência.

 

Conclusão

Em Cattani, o artista que também escreve sobre seu próprio trabalho representa um duplo que transita entre dois paradoxos: o primeiro situado no o sistema da produção da obra plástica, que apontaria mais para a desordem, para a incerteza das decisões e para a pulsão erótica do desejo (Pigmalião). A sublimação, articulada à criação da obra, se efetivaria com a substituição do impulso sexual pela construção física da obra. O segundo, centrado na metodologia do texto, e destinado a um leitor/observador, possui uma estratégia, uma regra, mas corre um sério risco de estar mais exposto a um sistema de especulações sobre o ego, e se transformar em algo estéril (Narciso).

Ambos são movimentados pela perda, pelo risco e por uma busca de permanência. A diferença seria a de que de um lado, em termos de processo de construção da obra (poiésis), o artista trabalha com o rearranjo e a reconstrução de objetos pé-existentes. É o caso de Demônio Pessoal, onde o processo enfrenta uma série de riscos de acidentes, ao lidar com a instabililidade e a precariedade de materiais. Uma irreversibilidade no processo, que pode terminar no aniquilamento. Ainda, e apesar disso, haveria a sublimação, pois mesmo diante do fracasso, restaria uma obra. Esta seria a recompensa de Pigmalião. Já de outro lado, a construção lenta do texto de artista é um processo que não tem a marca do irreversível, podendo ser composto e recomposto, escrito e reescrito. O risco estaria no mergulho no próprio corpo, um ato de olhar e se perder no abismo de si mesmo, algo sem volta e estéril, como um Narciso alucinado e perdido na contemplação de seu reflexo.

Apesar disso, e acima de todas as perdas e ganhos, o artista que escreve sobre seu trabalho estaria experimentando, consigo mesmo, as lições da vertigem e do mal-estar de nosso tempo.

 

Referências

Stoichita, Victor. (2011). O efeito Pigmalião: Para uma antropologia histórica dos simulacros. Trad. de Renata Correa Botelho e Rui Pires Cabral. Lisboa: KKYM, ISBN 978-978-97684-0-6.         [ Links ]

Rivera, Tânia. (2012) O avesso do imaginário: Arte contemporânea e Psicanálise. São Paulo: CosacNaify ISBN 978-85-405-0695-4.         [ Links ]

Cattani, Laura. (2016) O duplo e seus desdobramentos na arte contemporânea. Texto de qualificação para o doutorado no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS.         [ Links ]

Minazzoli, Agnès. (1999). La première ombre. Réflexions sur le mirroir et la pensée. Paris: Éditions de Minuit, ISBN 2-7073-1366-1.         [ Links ]

Rosset, Clément. (2016). Lo Real e su doble. Trad.: Santiago Espinoza. Buenos Aires: Libros Del Zorzal, ISBN 978975994539.         [ Links ]

Negroni, Maria. (2013). Elogio a Joseph Cornell. Buenos Aires, CajaNegra.         [ Links ]

 

Artigo completo submetido a 31 de dezembro de 2016 e aprovado a 5 de fevereiro 2017

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: ecunha@cpovo.net (Eduardo Figueiredo Vieira da Cunha)

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