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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.8 no.17 Lisboa mar. 2017

 

DOSSIER EDITORIAL

EDITORIAL SECTION

João Paulo Queiroz: Desenhos, 2005-2016. Acalmar a natureza inquieta do lugar

João Paulo Queiroz: Drawings, 2005-2016

 

Luísa Santos*

*Portugal, curadora, Professora Gulbenkian, CECC, Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Católica Portuguesa. Doutorada em Estudos de Cultura pela Humboldt-Viadrina School of Governance, Berlim (2015). Mestre em Curadoria de Arte Contemporânea pela Royal College of Art, Londres (2008). Licenciada em Design de Comunicação pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (2003).

AFILIAÇÃO: Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas. Palma de Cima, 1649-023 Lisboa.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

João Paulo Queiroz tem vindo a desenvolver um corpo de trabalho em série a partir da repetição, da observação e da representação de um mesmo lugar desde 2005. Ao longo dos doze anos que medeiam a produção traduzida no corpo de trabalho que hoje se afirma, João Paulo Queiroz regressou, durante um mês de Verão de cada ano, a um mesmo lugar que se tornou, simultaneamente, sujeito e objecto do seu estudo. Este artigo pretende reflectir sobre os processos e metodologias inerentes a uma prática continuada dedesenho na multiplicidade de inquietudes que representa.

Palavras-chave: Repetição / observação / representação / desenho / paisagem / lugar.

 

ABSTRACT:

João Paulo Queiroz has been developing a body ofwork in aseries based in repetition, observation and representation of the same place since 2005. Along the twelve years that encompass theartistic production translated in a body ofwork of hundreds ofdrawings, João Paulo Queiroz revisited, during onemonthinthesummer of every year, one place that became both subject and object of study. This paper aims to reflect on the processes and methodologies inherent toan unquiet practice.

Keywords: Repetition / observation / representation / drawing / landscape / place

 

Introdução

João Paulo Queiroz (1966, Portugal), tem vindo a desenvolver um conjunto composto por séries de desenhos com uma metodologia baseada em repetição, num acto que podemos considerar performativo na medida em que o corpo se torna parte do desenho, em observação continuada e, finalmente, em representação de um mesmo lugar desde 2005. Durante os doze anos que medeiam o conjunto existente até hoje, João Paulo Queiroz produziu, durante um mês de Verão de cada ano, uma série de desenhos, com 21x21cm, nos Valinhos, em Fátima, num perímetro de cerca de 300 metros. Ao longo dos doze anos, poderíamos, naturalmente, esperar algumas marcas humanas no lugar, tendo em conta a velocidade dos dias intrínseca à sociedade contemporânea. Contudo, neste lugar, há uma serenidade testemunhada visualmente pela paisagem, ao longo dos vários conjuntos que formam a série produzida ao longo de mais de uma década.

Se pensarmos na arte contemporânea enquanto sistema social – uma ideia do sociólogo Alemão Niklas Luhmann (1984) – situaremos a arte no domínio da percepção do mundo. E é precisamente de percepção do mundo que nos rodeia, no que nos é mais familiar mas também naquilo que nos surpreende e nos escapa – e a imensidão da natureza será a metáfora perfeita para o que entendemos como Sublime que admiramos mas que não alcançamos – , que este conjunto trata.

A natureza tem sido objecto de estudo, representação e interpretaçãoaolongo da história da arte. Num processo paulatino de observação e contemplação, João Paulo Queiroz explora, por um lado, os significados da percepção psicológica do espaço e do tempo e, por outro, as mudanças físicas, ora subtis ora drásticas, inerentes à matéria de uma paisagem natural ao longo de um dia, de um mês e, pensando no conjunto na sua totalidade, ao longo de doze anos.

Este artigo começa por contextualizar, no domínio da história da arte, a representação da natureza na sua relação com a ideia de Sublime. Esta ideia é o tema do artigo, que pretende, no seu desenvolvimento, investigar o carácter inquieto da natureza bem como dos processos de representação artística da mesma, atentando na ideia de Sublime. De seguida, pretende-se um olhar à especificidade do corpo de trabalho de João Paulo Queiroz a par de outros exemplos comparativos numa tentativa de perceber convergências e divergências ao longo da história da arte na representação da paisagem. Ao longo do artigo, o método narrativo (Boje, 2001) e as comparações são os escolhidos pelas características do trabalho do artista e para permitir uma leitura subjectiva e aberta (Eco, 1962), por oposição a uma leitura dogmática. No entanto, para os objectivos deste texto, não há um capítulo dedicado à metodologia. O artigo termina com uma breve proposta de reflexão conclusiva sobre a inquietude partilhada pela natureza e pela prática de representá-la a partir do trabalho de João Paulo Queiroz.

 

1. A paisagem: lugar do Sublime e lugar a desublimar

Historicamente, a representação da paisagem não tem sido tratada como um motivo independente na arte Europeia: na maior parte dos casos, apresenta-se como cenário para alguma situação ou como estudo prévio para um desenho, pintura ou escultura (Sarapik, 2012). A paisagem enquanto género independente surge no trabalho produzido por escolas como a pintura Flamenga do Séc. XVII e nas ideias do Romantismo do Séc. XIX. Contudo, apesar de silenciosa, a paisagem sempre foi observada e representada ao longo da História, como testemunham motivos da natureza na Idade Média e do início do Renascimento, momento no qual a paisagem viria a tornar-se um dos objectos de representação – apesar de, na maior parte das vezes enquanto cenário – mais explorados para contar as histórias da Bíblia e os temas da mitologia clássica (Sarapik, 2012).

As paisagens, enquanto imagens de cenários naturais, mantiveram-se populares na arte do final do Séc. XIX e início do Séc. XX. Duas inovações tornaram a tarefa de desenhar e pintar ao ar livre mais fácil: a primeira residiu no desenvolvimento dos transportes, com os comboios e os carros a possibilitarem viagens mais rápidas a lugares menos acessíveis; a segunda assentou no surgimento da tinta em tubo, que permitiu uma portabilidade do material a par da possibilidade de manter-se seco e usável em quaisquer locais.

Motivados em parte pela insatisfação com a cidade moderna, muitos artistas procuraram lugares intocados, próximos da ideia de paraíso. Nestes lugares, longe do bulício urbano, os artistas podiam focar-se no seu trabalho e observar a natureza em primeira mão. Como consequência, muitos ensaios artísticos tiveram lugar na natureza, com o uso experimental de tintas e de cores inesperadas, não naturalistas. Artistas como Vincent van Gogh (1853-1890, Holanda), em trabalhos como a The Starry Night (1889), quebraram as fronteiras tradicionais da representação objectiva da natureza apontando para uma representação que assume a natureza enquanto sujeito, numa exploração dos lugares psicológicos e espirituais da paisagem.

Esta exploração traduz-se de um modo particularmente fascinante na ideia de Sublime entendida pelos artistas nas suas representações da natureza. Nas artes visuais, o Sublime é, regra geral, associado ao período entre 1750 e 1850 quando se deu uma nova resposta emocional à paisagem, primeiramente desenvolvida no trabalho dos pintores Românticos, e atingindo o apogeu com o trabalho de J.M.W. Turner (1775-1851, Reino Unido). A história vigente é de que o termo terá perdido a sua forma original depois de 1850 devido a uma mudança nos valores estéticos e culturais, dando caminho ao Belo como conceito ideal (Prettejohn, 2007), que, por sua vez, é abandonado com a arte conceptual das décadas de 1960 e 1970 que advoga a primazia da ideia sobre a forma.

De todos os pintores Românticos influenciados pela estética do Sublime, Turner talvez tenha sido o mais reconhecido pelo sucesso em capturar o efeito de total ausência de limites que Edmund Burke (1729-1797, Irlanda) e Immanuel Kant (1724-1804, Alemanha) identificaram como pré-requisito à representação verbal e visual do Sublime enquanto algo que pode ser evocado mas não atingido (Wilton, 1980). Os trabalhos de Turner tipicamente vistos enquanto tradução visual do Sublime usam uma linguagem formal que escapa a definições precisas, usando a pintura enquanto ferramenta para transmitir o simultaneamente aterrorizador e maravilhoso. Através de justaposições de escuridão e de luz, de efeitos de simbiose, de configurações de energia centrífuga e de distorções de escala, as pinturas de Turner elevam e inspiram a percepção do observador.

Mas é também a percepção do observador que desublima a paisagem. Esta desublimação reside nos modos de ver paisagens que atentam às realidades materiais do lugar representado (Wright, 1997). A inclusão de observadores contemplativos nas paisagens tornou-se uma ferramenta efectiva para mostrar como uma experiência estética poderia ser focada no sujeito que observa, como demonstram, por exemplo, as pinturas de Caspar David Friedrich (1774-1840, Alemanha), que frequentemente incluíam uma figura ao fundo a contemplar uma determinada vista de modo a representar a experiência da percepção de algo sem limites físicos.

Também a ênfase Pré-Rafaelita na particularidade de um lugar eleva as realidades materiais de cada lugar. Paralelo ao fascínio científico pela história natural característico de meados do Séc. XIX, com o seu sentido de curiosidade pela infinitude e complexidade do mundo natural, este período tornou-se particularmente apelativo para artistas que defendiam a busca da verdade enquanto objectivo primordial da arte (Ansted, 1863).

A ciência veio desvendar os imensuráveis conceitos como tempo, espaço e existência que, simultaneamente, fascinam e aterrorizam o ser humano. E foi este desvendar que veio oferecer uma nova linguagem para evocar o Sublime.

A tensão entre a representação do material e do simbólico, que pode assinalar a impossibilidade do visual em evocar o Sublime, é central no trabalho de Holman Hunt (1827-1910, Reino Unido), um dos fundadores do Pré-Rafaelismo. O artista viria a fazer a ligação com a teoria do poeta Romântico Samuel Taylor Coleridge (1772-1834, Reino Unido), que anunciava o símbolo como uma forma de conhecimento que quebrava a distinção entre sujeito e objecto. Na sua pintura The Light of the World in 1851–2 (Keble College, Oxford) (1851-53), a ideia de representar a verdade da natureza tornou-se um imperativo moral, entendendo a natureza enquanto representante da verdade transcendente, uma ideia que vem a ser resgatada mais de um século depois por Luhmann (1984), no seu entendimento do papel social da arte exclusivamente no domínio da percepção.

A leitura do "Modern Painters" (1843) de John Ruskin (1819-1900, Reino Unido) tê-lo-ia convencido da necessidade de fundir conteúdo moral com realismo e adoptou a ideia de Ruskin do simbolismo tipológico (que residia em ler profecias ao contrário) para mostrar a possibilidade de combinar realismo e simbolismo sem distorcer o primeiro com redundâncias alegóricas.

Ruskin é o autor do termo "arte de paisagem histórica" para descrever o trabalho de Hunt e distinguir dois tipos de Pré-Rafaelismo, o poético e o prosaico, sendo o primeiro relativo à imaginação e o outro do domínio da ciência, afirmando que o último seria o mais significante para os tempos modernos em gravar monumentos do passado e cenas de beleza natural ameaçadas pelas forças da modernização (Cook & Wedderburn, 1903-12). Vários artistas, ao longo do Séc. XIX, influenciados pelas ideias de Ruskin sobre o prosaico, viriam a apresentar os problemas em expressar visualmente o Sublime num questionamento sobre o valor da Arte – cuja fundação residiria na filosofia mental, lidando com as influências do mundo externo na mente humana – e da Ciência – cuja matéria seria independente da sua relação com o homem, sendo o seu campo o domínio da mente (Brett, 1852). Sob este ponto de vista, a ciência e a arte seriam modelos a partir dos quais não se poderia chegar a uma síntese dado que quaisquer tentativas de aproximação às necessidades científicas por parte da arte resultaria numa perda da perspectiva humana. Com o final do Pré-Rafaelismo nos anos de 1860, os objectivos da arte passaram a divergir dos da ciência e cada área deveria encontrar os seus próprios termos.

O regresso à estética do Sublime pode ser visto também como uma resposta ao que tem sido descrito enquanto crise de fé que seguiu as teorias Darwinianas de selecção natural e evolução, a par de uma preocupação crescente com as consequências da industrialização e da urbanização no meio ambiente.

Seguindo a concepção Burkiana de Sublime, que toma como missão a busca por uma linguagem secular para uma experiência humana profunda, o interesse renovado pelo Sublime, depois do final do Pré-Rafaelismo, pode ser visto como uma tentativa de encontrar uma nova linguagem não religiosa mas espiritual. Por outro lado, para os artistas que mantiveram um sentido de fé, o Sublime representava uma experiência religiosa. Nas duas tendências, contudo, a paisagem tornava-se, nesta época, um domínio metafísico para a projecção de emoção, um espaço limite que atravessava factos e sentimentos e no qual a natureza funcionava como reflexo do sujeito observador.

Para Ruskin, artistas como Hunt e George Frederic Watts (1817-1904, Reino Unido), artistas com uma estética próxima de Turner, mantiveram o papel ético da arte ao usar o visual como ferramenta para exprimir o mistério e o medo inerentes ao desconhecido. No caso de Watts, com os seus elementos abstractos para comunicar aspirações espirituais, o simbolismo servia para entender áreas da existência humana que residem para lá da lógica científica. O simbolismo abstracto de Watts pode ser visto como um ponto de partida para a abstracção do Sublime que podemos encontrar no Séc. XX, nos padrões densos da energia centrífuga do Caos e nas paisagens apocalípticas abstractas de artistas como Wassily Kandinsky (1866-1944, Rússia).

Jean-François Lyotard (1924-1998, França), com o seu The Postmodern Condition (1979), veio definir a ideia de pós-moderno enquanto final das grandes-narrativas que tomamos como verdades absolutas, uma definição que confrontava os sistemas políticos, culturais e epistemológicos com os seus próprios limites, nos quais deixam de operar. Era este tipo de potencial em traduzir este tipo de confronto que Lyotard viu numa arte do Sublime, desta época, que residiria na apresentação do irrepresentável. Actos radicais na arte contemporânea podem efectivamente recusar a compreensão e a inclusão em categorias de significado e narrativas pré-concebidas confrontando assim os observadores com as suas limitações conceptuais. As paisagens industriais de Edward Burtynsky (1955, Canadá), com o seu carácter esmagadoramente destruidor, os espaços criados por Anish Kapoor (1954, Índia) nos quais somos convidados a entrar e onde somos engolidos pela diferença de escala serão exemplares das representações do Sublime na arte contemporânea, primeiro enunciada por Lyotard com a sua concepção de pós-modernismo.

Muitos dos temas provocados pelo Sublime ao longo da História, desde os assentes na ideia de que o moderno é muito mais sobre libertar as forças aterrorizadoras do que dominar o ambiente na sua matéria aos que elevam o carácter singular de cada aspecto material da natureza, ajudam a explicar porque é que as múltiplas formas do Sublime – e de desublimar – continuaram a fascinar os artistas do Séc. XX e a prevalecer na contemporaneidade.

 

2. João Paulo Queiroz: acalmar a natureza inquieta do lugar

Quando estamos perante este conjunto, tornamo-nos testemunhas das mudanças da mesma paisagem ao longo de um mês nos últimos doze anos com as datas sempre indicadas na parte superior do desenho – como 13 de agosto e 8 de setembro de 2015 –, escritas à mão também com o pastel de óleo. Mesmo que não tivéssemos quaisquer informações sobre a localização exacta destes desenhos, as oliveiras, as azinheiras, os sobreiros, as pedras de calcário, com a identidade das suas tipologias e espécies denunciam a sua ligação indubitável a Portugal (Figura 1).

 

 

A escolha do pastel de óleo prende-se com as necessidades intrínsecas à representação da natureza: a natureza é mais rápida que nós, pede-nos velocidade, as sombras correm, as cores mudam a um ritmo que mal conseguimos acompanhar em observação e que, mesmo em meios como a fotografia e o vídeo será sempre impossível de captar em toda a sua complexidade. E é também esta necessidade de velocidade que determina o formato pequeno.

O formato pintado, ao longo de todo o conjunto, é repetida e propositadamente quadrado. Trata-se de uma escolha consciente de renúncia à segurança do rectângulo de ouro encontrado na natureza, nas artes e na arquitetura, e incorporado por artistas como Piet Mondrian (1872-1944, Holanda), Le Corbusier (1887-1965, Suíça) e Leonardo da Vinci (1452-1519, Itália), matemáticos e arquitectos, desde a Grécia clássica até à contemporaneidade. O rectângulo de ouro representa a busca permanente da harmonia e da beleza. Pela expressão do movimento, mantendo-se em espiral até ao infinito, o rectângulo de ouro exprime o Belo.

Ao optar pelo quadrado em vez do rectângulo de ouro para representar esta natureza especifica, à qual tem retomado nos últimos doze anos, João Paulo Queiroz assume o desafio da dificuldade – ou da impossibilidade – de exprimir o Belo na sua plenitude.

Nas primeiras séries, os desenhos surgiam como sínteses, como um exercício de memória, numa ambiciosa busca permanente ao que a observação das cores intensas das árvores e das pedras escreve e esconde, simultaneamente. Até 2010, estamos perante uma aproximação clara aos referentes. Enquanto nos primeiros anos da série o chão mostra a sua posição mais perto de nós, nos seus imensos acidentes (Figura 2)., a partir de 2010, de um modo gradual até aos últimos anos, o olhar levanta-se e começa a revelar o céu nos seus movimentos rápidos. Se por um lado o céu concede um carácter de familiaridade aos desenhos, por outro, a representação torna-se mais complexa a nível da forma e, essencialmente, nas suas camadas de interpretação (Figura 3, Figura 4).

 

 

 

 

 

 

A um primeiro olhar, vemos árvores, todas tratadas de modo igual. Contudo, sob um olhar mais atento, rapidamente percebemos que as árvores que aparecem aqui representadas – ora em primeiro plano, ora em grupos num plano mais afastado – e que foram escolhidas para serem desenhadas são, claramente desafiantes ao nível da técnica: troncos retorcidos, copas de árvores com recortes que só se deixam adivinhar perante o contraste com um céu em constante mutação, texturas impossíveis ao olho humano, nos seus detalhes e tonalidades infinitas. João Paulo Queiroz fala de "acalmar a natureza" e é disso que se trata: selecciona as árvores mais rebeldes e trata depois de serená-las, com o traço, para que as olhemos como árvores que são, no seu crescimento e movimentos lentos, e não como muitas vezes pensamos vê-las, humanizadas e à nossa semelhança, com troncos que nos lembram braços agitados.

Na última série do conjunto até à data (2016), há um foco num dos elementos desta paisagem específica. Todos os desenhos desta série – a mais longa do conjunto – confidenciam o regresso ao mesmo local e a tomada do mesmo referente, das mesmas árvores, prancha após prancha, em cento e doze desenhos. Com as variações dos dias, das horas, das inclinações do sol à mesma hora, em cada desenho as árvores escrevem-se diferentes. Tal como todas as outras árvores representadas ao longo dos doze anos, vivem nesta zona de Portugal mediterrâneo. Azinheiras ainda novas, não se apresentam com características especiais nas suas formas ou simbolismos mas sim como verdadeiras daquela paisagem, tal como a luz, a terra os sobreiros, as oliveiras, as pedras, e a erva de sequeiro representadas ao longo de todo o conjunto determinado pelas doze séries.

A natureza, neste conjunto de João Paulo Queiroz, apresenta-se mais como resultado de uma experiência interpretativa e vivencial do que como um argumento ou uma temática – incide nos aspectos nos quais a natureza se sobrepõe a uma noção visual de paisagem e encontra uma união corporal com o ser humano. O desenvolvimento da representação da natureza neste conjunto, no qual o acto de desenhar assenta num esforço continuado do corpo, pode ser comparado com a filosofia fenomenológica de Maurice Merleau-Ponty (1908-1961, França) e, em particular, às noções de experiência contida e interconectividade, nas quais defendia que o nosso objectivo constante, enquanto seres humanos, residiria em assumirmos uma posição nos espaços, nos objectos e nas ferramentas, descrevendo o corpo como o lugar onde esta apropriação acontece (Merleau-Ponty, 1945).

Muitas vezes, pensamos no trabalho do artista contemporâneo como um trabalho de atelier. Contudo, aqui, somos transportados para a realidade dos Impressionistas do Séc. XIX que pintavam ao ar livre e espontaneamente nos lugares que escolhiam em vez de num atelier a partir de estudos.

Cada um dos desenhos aqui apresentado foi produzido ao longo de um dia, independentemente das condições meteorológicas, desde o amanhecer ao entardecer, até ao ponto em que se torna impossível ver com nitidez, como o céu mas também os jogos de luz e de sombra nas árvores, na vegetação e nas pedras denunciam. Em alguns desenhos podemos ver que estaria prestes a chover e noutros, que estaria, de facto a chover (como o desenho "c" de 31 de Agosto da série de 2015). Outros desenhos revelam dias de muito sol e podemos adivinhar a dificuldade de manter os pastéis de óleo sem derreter antes de tocarem a superfície de papel (como o desenho "b" de 4 de Agosto ou o "c" de 8 de Agosto, também da série de 2015).

Num processo reminiscente do de Impressionistas como Paul Cézanne (1839-1906, França), em pinturas como L'Allée au Jas de Bouffan (c. 1874-75), a composição dos desenhos das últimas séries do conjunto é complexa, nas formas densas, na folhagem com diferentes tonalidades, nos recortes cuidados das copas das árvores, nos troncos dramáticos que aqui são serenados, e nos céus em constante mutação como vemos nos vários desenhos, de "a" a "e", ao longo de cada dia, correspondente a cada mês e a cada ano.

A especificidade identitária da natureza, do campo, e das árvores que não teve toda a atenção nas representações de paisagem na História da Arte Portuguesa, é sujeita a um olhar analítico e detalhado de João Paulo Queiroz. Com um convite a uma imersão total na contemplação, o mundo que este olhar nos apresenta assenta, contudo, tão paradoxal quanto conscientemente, mais do que na impressão subjectiva de um determinado lugar, no carácter inescapável da mudança inquieta e inquietante que representa os ciclos de vida e morte, e é, afinal, inerente tanto à natureza como ao ser humano.

 

Conclusão: uma breve reflexão sobre a inquietude da prática do desenho

Perante os desenhos de João Paulo Queiroz somos, simultaneamente, confrontados com a quietude desta paisagem específica, que permanece livre de intervenções humanas ao longo de mais de uma década, e com a sensação inquietante inerente à natureza que nos escapa na sua vastidão.

Se por um lado, este conjunto se apresenta como uma desublimação da paisagem – a matéria deste lugar adquire uma importância de protagonista, com a preocupação em identificar e revelar as espécies naturais características da zona – por outro lado, a quietude bucólica que compete com a mutabilidade constante da mesma matéria natural, convoca a sensação de falta de controlo diante de algo que na sua velocidade e ritmo, não conseguimos deter e apreender.

A metodologia de João Paulo Queiroz, baseada na observação repetida de um mesmo lugar num mês de Verão, na dificuldade que essa escolha temporal apresenta para o domínio da técnica (os pastéis de óleo, que derretem; o corpo que fica exposto ao calor ao longo dos dias de Verão), traduz-se num aparente afastamento da estética do Sublime. A busca paulatina, ao longo de doze anos, pela melhor e mais fiel representação das oliveiras, das azinheiras, dos sobreiros, das pedras de calcário, está tão ligada ao desejo de aproximação e entendimento da dureza da natureza quanto à busca pela identificação por parte dos segundos observadores (nós).

Com esta metodologia, João Paulo Queiroz aponta para uma nova forma de expressão visual. Nas várias séries que compõem os desenhos, a experiência de fascínio é conseguida ora por uma sensação de aproximação aos detalhes daquilo que nos é mais próximo – o chão e o que conseguimos tocar das árvores representados em cada tonalidade da folhagem, da terra e das pedras (nas primeiras séries) – ora por uma sensação de afastamento daquilo que nos escapa, física e conceptualmente – o céu imenso, nublado ou limpo (nas últimas séries).

Ao convidar-nos a identificar as espécies com as suas características particulares e a contemplar a vastidão de uma natureza em constante mutação, os desenhos de João Paulo Queiroz evocam, por um lado, a noção matemática de Sublime de Kant – a ideia de que a mente detém o poder de estender as fronteiras do que a imaginação não consegue compreender que, neste caso, se revela nas múltiplas e cíclicas relações entre tempo e espaço que no limite se referem aos ciclos de vida e morte partilhados entre a natureza e o ser humano. Os motivos representados nestes desenhos – em especial as árvores – actuam enquanto guias que nos conduzem também a sentimentos de deslumbramento, uma ideia reminiscente da noção de Sublime de Samuel Taylor Coleridge na qual a consciência individual seria engolida por uma sensação de eternidade. Por outro lado, a identificação que João Paulo Queiroz alme ja com sucesso, do observador perante a especificidade e identidade destas espécies naturais, leva-nos de volta ao nosso mundo, real e palpável que não partilha a sensação de deslumbramento criada pelo Sublime. E é precisamente na inquietude provocada pela tensão entre as duas sensações – o Sublime e a desublimação – que reside, paradoxalmente, o fascínio pela natureza, por esta natureza aqui representada.

Diz João Paulo Queiroz que as árvores "ensinam coisas, que demoram a aprender. Uma delas é que entre elas e eu, elas ganham" (Queiroz, 2016). O que a história de arte nos ensina, é que talvez a natureza – seja no seu carácter Sublime ou desublimada, sempre em co-existência com as preocupações do que é ser(-se) humano – , ganha sempre face às nossas tentativas de representação e de apreendermos o mundo que nos rodeia na sua totalidade. E será talvez essa nossa derrota que nos continuará a manter fascinados e aterrados perante a (nossa) natureza.

 

Referências

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Artigo completo submetido a 5 de janeiro de 2017 e aprovado a 5 de fevereiro 2017

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: luisa.santos@network.rca.ac.uk (Luísa Santos)

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