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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.7 no.16 Lisboa dez. 2016

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Arte contemporânea: proposições olfatórias e gustativas

Contemporary Art: Olfactory and taste propositions

 

Lurdi Blauth* & Fernanda de Christo**

*Brasil, artista visual. Lincenciatura em Desenho e Plástica; Mestre e Doutora em Poéticas Visuais, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

AFILIAÇÃO: Universidade Feevale, Programa de Pós Graduação em Processos e Manifestações Culturais. Avenida Dr. Maurício Cardoso, nº 510, Hamburgo Velho, Novo Hamburgo, RS, CEP 93030-220, Brasil.

**Brasil, artista visual, bailarina. Universidade Feevale, Artes Visuais (FEEVALE).

AFILIAÇÃO: Ballerin Cia de Dança. Rua Affonso Schmitt, º 158, Centro, Picada Café, RS, CEP 95175-000, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Este artigo trata de questões da arte contemporânea, cujos limites são diluídos nas relações que se estabelecem entre procedimentos e suportes, bem como na exploração de outros sentidos, e não apenas na apreciação por meio da interpretação da visão. Aborda proposições poéticas das artistas brasileiras Isabel Sommer e Lucimar Bello, que provocam experiências estéticas com os sentidos do olfato e do gosto, gerando novos diálogos com a arte.

Palavras chave: memória, acúmulos, processo de criação, experiência estética.

 

ABSTRACT:

This article is about contemporary art matters, whose limits are diluted in the relations that are established between procedures and form, as well as in the exploitation of other senses, and not only in the appraisal done through vision interpretation. It approaches poetic propositions of Brazilian artists Isabel Sommer and Lucimar Bello, that provoque aesthetic experiences through the senses of smell and taste, generating new dialogues with art.

Keywords: memory, accumulations, creation process, aesthetic experience.

 

Introdução

Na arte contemporânea, determinadas proposições interagem na fronteira entre o que compõe acúmulos e hábitos cotidianos e o que pode ser considerado uma experiência estética. Materiais e suportes convencionais da arte são substituídos por ações que aguçam, para além da visão contemplativa, os sentidos do olfato e do gosto evocando memórias, lembranças e outras partilhas sensíveis.

Neste estudo, enfocamos proposições de duas artistas brasileiras sobre cujos trabalhos, mesmo tendo distintos percursos e processos de criação, procuramos tecer algumas aproximações.

A artista visual Isabel Sommer (1964), reside na cidade de Esteio, RS, é graduada em Artes Visuais, (2009) e pós-graduada em Pintura, Gravura e Processos Híbridos, Universidade Feevale, Novo Hamburgo, RS, (2011). Desenvolve a sua pesquisa por meio de diferentes linguagens artísticas e suportes, bem como realiza intervenções artísticas em espaços urbanos, interagindo diretamente com o transeunte da cidade. Participa de exposições coletivas e realiza exposições individuais em diversos espaços e instituições culturais.

A artista visual Lucimar Bello (1946), vive em São Paulo, SP, é graduada em Belas Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais, (1970), tem doutorado em Artes pela Universidade de São Paulo (1993). É pós-doutora no Núcleo de Estudos da Subjetividade, PUC/SP (2008). Realiza exposições individuais e coletivas no Brasil e em diversos outros países. Sua pesquisa em Artes Visuais envolve processos de criação em arte contemporânea, arte e seu ensino, arte e comunidades.

A intenção de abordarmos experiências estéticas de Sommer e Bello, vem de encontro com um dos eixos conceituais que tratou da questão do envolvimento dos sentidos, proposto pelo Curador-Chefe e historiador Gaudêncio Fidelis, na 10ª Bienal do Mercosul, 2015, em Porto Alegre, RS/Brasil (Fundação Bienal, 2015). Essa exposição internacional teve como temática geral "Mensagens de uma nova América", que foi subdividida em quatro campos conceituais, com o intuito de sinalizar o significado cultural e artístico da produção contemporânea. Considerou o substrato histórico da arte, apresentando obras canônicas e não canônicas, as quais propunham mostrar um amplo percurso histórico e suas possíveis conexões com produções e manifestações artísticas atuais.

Um dos eixos temáticos dessa Bienal, denominado "A Insurgência dos Sentidos", explorou outros meios de apreciar a arte, isto é, propôs ir além do olhar interpretativo e absoluto atribuído exclusivamente à visão. Para Fidelis, (2015) ao instigar o olfato do público, abandona-se o "regime do ocularcentrismo" e abre-se um outro campo de alternativas para o engajamento de outros sentidos na realização de estratégias curatoriais para a produção artística – diferente daquela baseada na visão, com sua perspectiva excludente e discriminatória.

Mencionamos o artista Hélio Oiticica (1937-1980), por exemplo, de quem havia trabalhos na Bienal, como a obra Tropicália, que visa aguçar os sentidos do espectador. A obra é um labirinto construído com uma arquitetura improvisada, semelhante às favelas, um cenário tropical com plantas características e araras. O público caminha descalço, pisando em areia, brita, água, experimentando sensações táteis. Tais proposições criativas fazem referência ao experimental como uma possibilidade de explorar algo desconhecido, ou como o próprio artista refletia: "acham-se coisas que se veem todos os dias mas que jamais pensávamos procurar. É a procura do mesmo na coisa [...]." (Oiticica, apud Fervenza, 2012: 56). Assim como os Penetráveis de Oiticica, entre outras obras, a práxis artística é, igualmente, dilatada pelas vivências sensoriais com o corpo do participante, propostas por Lygia Clark (1920-1988), gerando novos questionamentos em relação aos dispositivos normativos dos meios e materiais da arte.

Entendemos que, numa mostra de arte de envergadura internacional, por exemplo, são sinalizados recortes de possibilidades estéticas que instigam estranhamentos e outras percepções, colocando em curso vivências cotidianas que podem ser reordenadas poeticamente. Sob esse aspecto, identificamos singularidades nas práticas artísticas de Isabel Sommer e Lucimar Bello que suscitam memórias e lembranças por meio de experiências com os outros sentidos, gerando novos diálogos poéticos com a arte contemporânea.

 

1. Proposições olfatórias e gustativas

 

1.1 Acúmulos reordenados no espaço expositivo de Isabel Sommer

As distintas interlocuções estéticas presentes no contexto da arte atual são desdobradas e experienciadas pela artista Isabel Sommer que, em suas proposições criativas, busca um novo sentido para os excessos e os acúmulos produzidos pela sociedade de consumo. Atenta aos resíduos e materiais encontrados no cotidiano, Sommer recolhe, interfere, transforma e reestrutura determinados objetos para reconfigurá-los como objetos artísticos, como "objetos pensantes que promovem o alargamento do conceito de arte" (D'Angelo, 2012: 105) (Figura 1).

 

 

A artista, no ato de escolher, recolher e acumular objetos, aproxima-se do bricoleur que, segundo o antropólogo Lévi-Strauss (1976), coleta materiais e resíduos que podem ser reaproveitados algum dia. Para a obra denominada Acúmulos, exposta na Pinacoteca da Feevale, (2015), Sommer, apropria-se da estrutura de um simples sachê de chá, utilizado diariamente, modifica seu formato para uma dimensão maior (35 x 26 cm) e o reproduz 400 vezes. Esses inúmeros sachês são pigmentados com terra, café e distintos chás, ao mesmo tempo em que são preenchidos e aromatizados com alfafa e hortelã. Ao serem reordenados e suspensos em varais nas paredes do espaço expositivo, os objetos são deslocados da função original para o qual foram produzidos (Figura 2 e Figura 3).

 

 

 

 

O espectador, ao adentrar a exposição, é absorvido pela repetição desses inúmeros objetos mas é, simultaneamente, afetado pelos cheiros misturados que impregnam todo o ambiente. Ao sentir o odor de alfafa e hortelã dos sachês, o espectador testemunha, talvez, "a existência de certa relação do pensamento com o não-pensamento, de certa presença do pensamento na materialidade sensível, do involuntário no pensamento consciente e do sentido no insignificante" (Rancière, 2009: 11). Sentidos mudos são potencializados e evocam outros lugares, cujas estruturas sensíveis movem-se numa espécie de arquitetura de sentidos. Os cheiros remetem às lembranças de vivências, pois elementos terra e ar estão presentes neste trabalho na medida em que incorpora manchas de café, terra e chás nos sachês objetos. E, na tentativa de identificar a origem destes cheiros, entram em curso lembranças e memórias e, talvez, nesse experienciar subjetivo, algo possa ser transformado, algo que remeta a outras partilhas sensíveis (Rancière, 2009).

 

1.2. Desenhos de comer de Lucimar Bello

As proposições criativas de Lucimar Bello envolvem a produção de sentidos a partir da utilização de outras práticas artísticas que instigam e redimensionam a participação do espectador que passa a fazer parte de ações que compartilham experiências e que vão para além da arte. Tais práticas artísticas, no entendimento de Rancière (2009: 17), "são maneiras de fazer que intervêm nas maneiras de ser e formas de visibilidade", recolocando em causa a questão da partilha sensível, como uma possibilidade de abrir discussões estéticas.

Os Desenhos de Comer, fazem parte das investigações poéticas de Lucimar Bello que são ações criativas, realizadas desde 2009, com pessoas e comunidades de diferentes lugares feitas por meio de experimentações gustativas. Neste trabalho, a artista percorre a cidade local, onde vai realizar a ação, para adquirir pequenas coisas comestíveis que são reorganizadas sobre uma mesa, formando desenhos muito singulares. Ao mesmo tempo, veste-se, em algumas ações, como um chef de cozinha que, de certa maneira, também são performances, pois a artista convida os participantes a sentarem à mesa. Iniciam-se a interação de conversas, percepções, afetos e sensações em relação aos hábitos cotidianos de comer, os quais, diante do mundo apressado de hoje, na maioria das vezes, não são mais saboreados (Figura 4, Figura 5 e Figura 6).

 

 

 

 

 

 

Para a artista, o projeto contínuo do comer e o saborear, implicam em colocar o participante em operação reflexiva com o seu próprio corpo, sinalizando que a existência deve ser interpretada "pelo pensamento e pelas experimentações também gustativas" (Bello, 2013). Sob esse aspecto, traz à tona "o irrepresentável que desconcerta o pensamento" (Bello, 2013), com vivências sensíveis que propiciam contatos e trocas de percepções e sentidos entre os participantes.

As convivências participativas proporcionadas pela artista em diferentes locais, promovem experiências diretas com hábitos cotidianos que refletem também a diversidade cultural de cada lugar onde são realizadas as ações. Bello menciona Jacques Rancière (2009: 11) que fala sobre a 'fábrica do sensível', e considera "os atos estéticos como configurações da experiência, que ensejam novos modos do sentir e induzem novas formas de subjetivação política". Nesse contexto, os acontecimentos gustativos, igualmente implicam no compartilhar coletivo de experiências que podem sinalizar sensibilidades, afetos e ser tocadas por meio da arte.

 

Conclusão

Nas obras de ambas artistas, o espectador é convocado a instaurar novos sentidos e, nessa ação, participa de operações que buscam articular a partilha sensível com o outro. Essas articulações geram significados que suscitam algo que vai além da racionalidade e da sensibilidade, e nos leva a interrogar a vida e nossa própria história. O exercício experimental da arte e seu entrelaçamento ao cotidiano da vida, mostram que a arte não se direciona apenas ao olhar, mas, enfatiza o processo vivencial.

O deslocamento das fronteiras e as contaminações da arte, em seus modos de transformar e pensar, provocam o redimensionamento da arte como objeto, valorizando-se o processo de criação em suas possibilidades de relacionar visibilidades do fazer. São entrelaçadas certezas e incertezas em ações que evocam sentidos outros como detectamos nas práticas estéticas de Sommer e Bello. Isabel Sommer, em Acúmulos, traz à tona cheiros, que podem remeter à redescoberta de memórias e lembranças de algo vivenciado ou, ao contrário, experienciar algo ainda não vivenciado. Já Lucimar Bello, em Desenhos de Comer, busca ressignificar pequenos gestos cotidianos, como o pegar coisas mínimas para comer e levar à boca. A operação estética entre gostos, cheiros, sabores doces e amargos evoca relações éticas, políticas e culturais, bem como suscita pensamentos, olhares, sensibilidades e narrativas que revelam rituais em seus múltiplos sentidos.

 

Referências

Bello, Lucimar. (2013) Desenhos de comer, cerâmicas para viver, desenhos de comer, para itaparica e travessias, três experimentações. [Consult. 2015 12 22] Disponível em URL: http://anpap.org.br/anais/2013/ANAIS/simposios/08/Lucimar%20Bello%20Frange.pdf        [ Links ]

Fundação Bienal (2015) Projeto curatorial [Consult. 2015 11 28] Disponível em URL: http://www.fundacaobienal.art.br/site/pt/bienais/10D'         [ Links ]

Angelo, Martha (2012) Tudo é arte, portanto a arte não existe. In: Vinhosa, Luciano; D'Angelo, Martha (orgs.) (2012) Interlocuções – estética, produção e crítica de arte. Rio de Janeiro: Apicuri. ISBN: 978-85-61022-70-9        [ Links ]

Fervenza, Hélio (2012) Formas de apresetnação: experiência, autonomia, escritos de artistas. In: Vinhosa, Luciano; D'Angelo, Martha (orgs.) (2012) Interlocuções – estética, produção e crítica de arte. Rio de Janeiro: Apicuri. ISBN: 978-85-61022-70-9        [ Links ]

Fidelis, Gaudêncio (2015) O cheiro como critério em direção a uma política olfatória em curadoria.Chapecó, SC: Argus. ISBN: 978-85-7897-146-5        [ Links ]

Rancière, Jacques (2009) A partilha do sensível. São Paulo: EXO experimental org; Editora 34 (2ª edição). ISBN: 978-85-7326-321-3        [ Links ]

Rancière, Jacques (2009) O inconsciente estético. São Paulo: Editora 34 (1ª edição). ISBN: 978-85-7326-438-8        [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 29 de dezembro de 2015 e aprovado a 10 de janeiro de 2016

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: nucleoderelacionamento@feevale.br (Lurdi Blauth)

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