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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.7 no.16 Lisboa dez. 2016

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Fioravante e o vazio: o desenho como estratégia de ausência

Fioravante and the emptiness: the drawing as strategy of absence

 

Eduardo Figueiredo Vieira da Cunha*

Brasil, artista visual. Bacharelado em Desenho, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Master of Fine Arts (MFA) no Brooklyn College, City University of New York (CUNY). Doutorado em Artes e Ciências da Arte, Université de Paris-I Pantéon-Sorbonne (Paris-1).

AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais. Rua Senhor dos Passos, 248 Cep 90020-180 Porto Alegre Rio Grande do Sul Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

O artigo trata da produção de Marcos Fioravante e a estética do abandono, isolamento e vazio. O contraste entre o branco do papel e a sobreposição de zonas sombrias no desenho, que traz um caráter tátil ao desenho, são aqui relacionadas com a tensão entre a presença (do desenho) e a ausência (do referente, a fotografia) O objetivo é refletir sobre uma possível filosofia da ausência e o desejo de transformação dos documentos de trabalho do artista em obras, e, com metodologia dialética, tratar do tempo de espera e latência da fotografia e do desenho.

Palavras chave: ausência, desejo, latência.

 

ABSTRACT:

The article surveys about Marcos Fioravante's drawings, and his aesthetics of abandonment, isolation and emptiness. The contrast of the paper's whiteness and the overlaps of shadow zones brings a sense of tactility to drawing, here compared with the tension between the presence (of drawing) and absence (of the reference, the photo). The goal is to think about a possible philosophy of absence and the desire of transformation from artist's documents in drawings, with dialectical methodology to think about the time of waiting and latency of photography and drawing.

Keywords: absence, desire, latency.

 

Introdução

Para tratarmos da ampla ideia do vazio, da falta, e da ausência como elementos de sublimação na arte, escolhemos o viés da análise das estratégias que o artista se utiliza para completá-los e superá-los através de sua poiética, com um tempo de espera, de latência. Se a marca do desejo é a carência, e o tempo de espera da completude é um elemento essencial, estaremos tratando também do vazio do papel, do motivo do início, da gênese do trabalho, e seu processo temporal de preenchimento, à procura das múltiplas implicações que este trabalho nos abre como desejo. E, mais ousadamente, procuraremos explicar o trabalho artístico como a mediação de uma ausência, uma perda.

As referências e os documentos de trabalho, que acompanham uma série de desenho do brasileiro Marcos Fioravante de Moura, desenvolvidos entre 2013 e 2015 durante seu Mestrado em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) já nos servem de indício para esta confrontação com a filosofia da ausência: a fonte de inspiração são imagens mecânicas, de natureza bidimensional. Mas as imagens resultantes falam de uma economia da perda. Como estímulo, buscamos entender a transformação de um olhar sintético da foto ao desenho, à procura da perfeição do detalhe, nos motivos que falam a mesma linguagem do vazio: casas abandonadas, containers, construções ocas e com profundas zonas de sombra. Este é o lugar do início da aventura da invenção, motivo que leva o artista à necessidade de materializações, e seus processos de preenchimento.

O transporte da imagem fotográfica inicial para o desenho é um primeiro passo, que acontece a partir de "necrópcias" da imagem: a imagem fotográfica como um véu, e o desenho desvelando e revelando esta imagem. Deste modo, o lento agregar de tempos e camadas modificam a hierarquia e a própria natureza do instantâneo fotográfico. O instante único é revertido em vários tempos agregados no desenho.

Procedimentos como este, que Fioravante utiliza em seu processo, valorizam a contenção, a ordenação, a seleção, a ocupação e a deposição. Estes atos também encontram diálogo no próprio motivo, seja pela organização e função do representado, seja pela sensação de vazio. O desenho, além de representação, revela-se como aparecimento, que nasce no interior do processo. A escolha do preto e branco, com negros de carvão ou de grafite, contribui para revelar uma imagem sombria, que se recusa a uma fácil compreensão. O vazio torna-se um intervalo, um hiato, um elemento entre fotografia e desenho, tornando-se presença que configura o espaço.

A conclusão do artigo trata do sentimento filosófico da ausência e do vazio, localizado entre branco do papel, que não deve ser visto como um nada (Doctors, 2013), mas um espaço ativado por estes elementos. O desejo aparece como uma latência, revelado posteriormente nas zonas de sombra dos trabalhos do artista. Há uma reflexão crítica sobre o desenho, partindo do fato fotográfico ao fato gráfico, da economia da ausência à presença, da imanência à transcendência, e da falta à plenitude do desejo. Busco investigações filosóficas sobre a perda e sua recuperação em um trabalho plástico, e poéticas, sobre a percepção e seus hiatos, do estranhamento à experiência da imaginação e do sonho.

 

1. Contenção, ausência e vazio.

Containers, recipientes vazios, isolados em meio à folha vazia do papel. Os motivos dos desenhos de Fioravante nascem da busca de referências em catálogos de imagens deste tipo de recipientes que são espalhados pela cidade, para a coleta de entulhos. Eles apontam, na poética de Fioravante, a um lugar sombrio a ser preenchido, lugar onde depositamos nossa imaginação, nossos sonhos. A fotografia faz a mediação entre o real e o desenho: é um espaço intermediário, mas é um lugar de ausência: ausência do referente (o real), fantasma, espectro. São vazios e ausências ativos (Shendel, 1996). A ausência é elemento filosófico na constituição da obra plástica e do processo de invenção do artista, e garante a dimensão metafísica da obra. Ao se colocar diante destes desenhos sobre o vazio e a ausência de um conteúdo físico e material, o espectador é transportado a uma dimensão diferente do real, e experimenta um sentimento de suspensão. Se a foto, como uma imagem de relação (Mondzain, 1995), representa uma ausência, o desenho surge como tensão entre ausência e presença. No desenho de Fioravante, encontramos a textura que preenche o espaço vazio, e traz o tacto. É como se os containers passassem a receber e a acumular passo a passo a matéria táctil do desenho (Figura 1): o carvão, o negro de fumo, o pastel, o grafite. Diferentes tons de preto, do negro profundo ao negro brilhante, sobrepostos, absorvendo a luz. A dimensão de aparecimentodo desenho é salientada, ultrapassando a dimensão de representação da fotografia (Castello Branco, 2013). Este é um elemento rico o suficiente para provocar um enigma. Falta algo. E há uma busca pelo preenchimento deste espaço de contenção. É um hiato, e há uma latência, uma antecipação, uma expectativa. Trata-se de um elemento conceitualmente capaz de dar um novo sentido no jogo da vida e da arte, onde ausências podem ser mais intensas e vibrantes que as presenças que as acompanham.

 

 

1.1 Presenças ausentes, desejos, perdas e latências

Para Mondzain, a imagem é "uma modalidade específica da presença, pela qual se manifesta toda a ausência" (Mondzain, 1995: 29). Trabalhando com paradoxos, Fioravante utiliza a fotografia como matéria-prima para seus desenhos, salientando a relação de ausência na imagem fotográfica e a presença no desenho. Embora sendo também uma imagem, o desenho tem a singularidade do tacto.

Toda a obra de arte carrega em si a possibilidade de uma perda. Perda do referente, perda do tempo, perdas infinitas e permanências infinitas (Soulages, 2007). Se a fotografia é um meio empregado como recuperação e permanência destas perdas, através do processo de revelação e latência, o processo é amplificado no desenho pela dimensão de um programa amoroso, próximo à sedução. Barthes, em Fragmentos de um discurso amoroso se refere a esta angústia da espera, "como ingrediente imprescindível para a recompensa do amor e como sublimador do sentimento amoroso" (Barthes, 1997: 25). A espera, para Barthes, é um momento rico de expectativas, onde se vivencia o luto da perda, ou a possibilidade de uma ausência. Fioravante refere-se ao trabalho em atelier como espaço mágico, que marca a experiência da criação através da manipulação de elementos que circundam e habitam o espaço do artista: documentos de trabalho em processo de espera, "testemunhos do silêncio do fazer, e identificam o percurso e as estratégias de construção e desdobramento do trabalho" (Fioravante, 2015: 69).

Fioravante fala de seus desenhos como desejos circunscritos pela ausência, que trazem a ideia de lacuna, paralisia e estranhamento, mas de "desejos de tornar uma imagem desenho" (Fioravante, 2015: 10). Ele se refere também a um "esvaziamento no sentido metafórico, fruto das relações de feitura e escolha de tais imagens, motivos, que contam com uma ideia ou sensação de ausência, abandono ou isolamento" (Fioravante, 2015:130). Podemos localizar aí o sentimento, as casas vazias, abandonadas, cheias de sombra (Figura 2). Se há esta melancolia da perda em toda a fotografia, há uma inquietação, e é o desejo que alimenta a busca pela completude, e recuperação através dos desenhos.

 

 

2. O desejo

A palavra desejo tem uma origem poética, pois origina-se no verbo desiderare, que por sua vez deriva-se do substantivo sidus (mais usado como o plural sidera), significando a figura formada por um conjunto de estrelas. Marilena Chauí lembra que a marca do desejo como falta, vazio, ausência e carência reaparece na Fenomenologia do Espírito de Hegel (Hegel, 1989) na medida em que o desejo só se efetiva pela mediação de uma perda, uma ausência. Na psicanálise, o desejo aparece também como falta, carência, vazio. E sua relação com o tempo é fundamental quanto à espera, latência. Se o desejo envolve uma antecipação, uma expectativa, há no desejo um elemento de incitação, de espera.

Podemos localizar no desenho este tempo de prolongar, protelar a satisfação, apesar do risco. Pensemos no tempo intrínseco à escolha das referências empregadas pelo artista, como quando ele trabalha com a fotografia: A fotografia digital prescinde deste tempo de espera. Entre a imagem latente e a imagem final não há um intervalo, uma espera. Tudo acontece consequentemente. A latência aqui acontece no atelier do artista, no lento movimento das escolhas. Já a fotografia química possuía este tempo de espera, de antecipação, "um intervalo angustiante entre o clique e a imagem consumada" (Fontcuberta, 2014:45). Como uma semente plantada no vazio da fotografia, a imagem latente revela-se no desenho, como uma memória esquecida, promessa antes escondida, lugar dos desejos do artista. Como em uma paixão, a imagem do desenho submete o artista a uma espera que passa pelas escolhas, pelo risco, e posteriormente pelo prazer, em um tempo de sedução, e de consumação do trabalho final.

Fioravante se refere ao flerte com a sombra, e ao mistério da separação e do abandono, com sua origem mítica onde a sombra circunscrevia uma ausênca anunciada, uma perda iminente. Plínio, o Velho, descreve a história do nascimento da pintura pelas sombras: uma jovem chamada Dibutade teria se apaixonado por um soldado que estava prestes a partir para a guerra. Ela convidou, então, o apaixonado, a comparecer ao atelier de seu pai, que era um oleiro, e o desenhou, circunscrevendo a sombra do jovem projetada na parede. A partir do desenho, a moça pediu a seu pai para que ele executasse a obra.

O fato de o nascimento da pintura e da representação artística ocidental ter nascido nas sombras, em negativo, tem uma importância indiscutível. Quando a pintura nasceu, ela já fazia parte da dialética presença/ausência: presença da pintura, ausência do corpo. Ausência do corpo, presença da sombra, ou sua projeção. Uma espécie de ausência anunciada, que se completa com o desejo.

 

Conclusão

O trabalho do artista é um risco: estamos sempre arriscados à perda contínua. Fracassos possíveis, ruínas iminentes, tensão entre expectativas e possibilidades. O risco do desenho de Fioravante traz esta marca do insaciável, do vazio que precisa ser completado, na arriscada tarefa de experimentar. Se imaginar é construir ideias com imagens, seja pela câmara em relação às outras coisas, o desenho é a marca da transformação: ora afirmando, ora negando a imagem original da fotografia. Nascido de uma perda, representada pela foto, o trabalho do artista é o desejo da busca desta perda, deste vazio e destas sombras, desta ausência que não cessa de estar presente na materialidade do desenho. O desejo aqui não é a necessidade ou apetite, algo dirigido ao tempo presente, à satisfação imediata, mas manifesta-se em latência, na construção lenta de traços do desenho. Na ritualização da espera, o desenho de Fioravante cria-se em uma rede monopigmentária muito sutil, que gera infinidade de reflexos. Do reflexo à reflexão, o desejo no desenho constrói-se em temporariedades, revelando todas as inflexões da latência, e da economia da ausência, da perda, e a possibilidade de sua sublimação através da arte.

 

Referências

Barthes, Rolland (1997). Fragmentos de um discurso amoroso. São Paulo: Google Books. ISBN 8533617895        [ Links ]

Chauí, Marilena (1994) Laços do Desejo. São Paulo: Companhia das Letras. ISBN: 9788535918304.         [ Links ]

Castello Branco, Patricia (2013) Imagem, corpo, tecnología: a função háptica das imagens tecnológicas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. ISSN: 9789899821507.         [ Links ]

Doctors, Marcio (2013) Nocturno: Projeto respiração. SP; Fundação Eva Klabin.         [ Links ]

Fioravante, Marcos (2015) Quando a imagem recai sobre si mesma. Porto Alegre: UFRGS. Dissertação de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais.         [ Links ]

Fontcuberta, Joan (2014). A Câmara de Pandora. Madrid: Gustavo Gilli. ISBN: 8571107017.         [ Links ]

Hegel, Georg (2013) A Fenomenologia do espírito. São Paulo: Jorge Zahar. ISBN: 8571107017.         [ Links ]

Mondzain, Marie-José (1997). L'Image Naturelle. Paris: Le Nouveau Commerce. ISBN 2855410789.         [ Links ]

Shendel, Mira (1996). No vazio do mundo. São Paulo: Marca D´agua. ISBN: 8585118237.         [ Links ]

Soulages, François (2007). A estética da fotografia. São Paulo: Senac. ISBN 9788573599169.         [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 24 de dezembro de 2015 e aprovado a 10 de janeiro de 2016

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: ppgav@ufrgs.br (Eduardo Vieira da Cunha)

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