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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.7 no.16 Lisboa dez. 2016

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

O múltiplo em publicações de artistas: Röhnelt, Cattani e Mutran

The multiple on artist's publications: Röhnelt, Cattani e Mutran

 

Maristela Salvatori*

*Brasil, artista visual. Membro do Conselho editorial. Doutorada em Arts et Sciences de L´Art: Arts Plastiques. Université Paris 1, Panthéon-Sorbonne, Paris. Mestrado em Artes Visuais, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, Brasil.

AFILIAÇÃO: Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Rua Senhor dos Passos, 248, CEP 90020-180 – Centro – Porto Alegre, RS Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Este artigo enfoca o livro de artista apresentando diferentes abordagens de três artistas contemporâneos radicados no sul do Brasil: Mário Röhnelt, Maria Lucia Cattani e Flavya Mutran. Cada qual criando de uma maneira singular um múltiplo sob forma de livro de artista.

Palavras chave: múltiplo, livro de artista, Mário Röhnelt, Maria Lucia Cattani, Flavya Mutran.

 

ABSTRACT:

This article focuses on the artist's book presenting different approaches of three contemporary artists based in southern Brazil: Mario Röhnelt, Maria Lucia Cattani e Flavya Mutran. Each one creates in their own way a multiple as an artist book.

Keywords: multiple, Artist book, Mario Röhnelt, Maria Lucia Cattani, Flavya Mutran.

 

Presente em grande parte da obra de artistas atuantes na contemporaneidade, o livro de artista apresenta-se através das mais diferentes possibilidades, como pudemos observar na leitura da revista :Estúdio 6 (2012), entre tantas outras publicações sobre o tema. Com ele, conforme Paulo Silveira (2012: 276), "O conceito de leitura da obra de arte, caro ao nosso universo, precisara´ ser relativizado", visto que "Os fundamentos estéticos, linguísticos, funcionais e estratégicos que configuraram o livro de artista stricto sensu (uma publicação) são os mesmos dos principais eixos estruturantes da arte contemporânea."

Configurando-se sob as mais diversas formas, o livro de artista comumente constitui um múltiplo, mas também pode existir como exemplar único, utilizando ou não recursos da gravura ou outras técnicas de reprodução. Trataremos aqui dados sobre obras de três autores contemporâneos brasileiros, Mário Röhnelt, Flavya Mutran e Maria Lucia Cattani.

 

As Galerias de Mário Röhnelt

Mário Röhnelt (Pelotas, Brasil, 1950), um dos grandes artista de sua geração, com uma volumosa produção, iniciou sua carreira como designer gráfico, atividade ainda exercida em paralelo à produção artística. Tendo passado pela Faculdade de Arquitetura (UFRGS) nos anos setenta, logo integrou o grupo KVHR que reunia desenhistas, expondo e publicando com este grupo que teve intensa atuação junto ao ainda insipiente circuito de arte contemporânea local. Com um trabalho com muitas referências na estética POP, Röhnelt participou também do Espaço NO, espaço cultural alternativo que promoveu manifestações culturais experimentais em Porto Alegre, e seguiu sua carreira de forma independente, realizando inúmeras exposições individuais e recebendo numerosos prêmios.

Recentemente, após uma exposição individual consagrada à sua obra, que teve lugar no Museu de Artes do Rio Grande do Sul, o artista lançou o livro Galerias – edição em off-sett de um livro que já existia há alguns anos como exemplar único, acrescida de um texto – posfácio, de Gaudêncio Fidelis. Originalmente seu autor criou obras digitais e as imprimiu em impressora caseira e montou em forma de livro, propiciando ao privilegiado leitor um delicioso passeio por seu repertório visual.

Quando conheci o exemplar, então único, impresso pelo próprio artista, no atelier deste, comentei, em coro aos demais presentes, que o mesmo merecia ser publicado, impresso, em série, ao que Röhnelt prontamente respondeu ser praticamente inviável, visto o alto custo de produção implicado. Felizmente, graças a um financiamento, ao cabo de alguns anos, temos esta bela edição agora acessível ao grande público.

O livro traz fartas imagens onde grande parte das obras foi criada apenas de forma virtual, mas também inclui versões de obras que foram materializadas. Estas peças foram inseridas digitalmente nestes espaços arquitetônicos ficcionais e/ou existentes (Figura 1). Desta forma, ao mesmo tempo que apresenta obras do artista recontextualizando-as, também instaura obras. Sem apresentar uma única frase ou palavra, legendas, créditos ou datas, o livro nos convida a um delicioso mergulho em seu imaginário artístico, um imaginário constituído no decorrer de sua extensa carreira e estabelecendo quase um jogo com este grande leque de possibilidades plásticas a partir de sua obra. A visão encontra em suas páginas um voo libertador onde as imagens falam por si mesmas.

 

 

Mário nos conduz em diferentes projetos e propostas, nestas imagens realizadas ao longo de vários anos (de fato, criadas entre 1998 e 2014, conforme o posfácio) e que estendem-se por paredes e ocupam virtualmente estes espaços perspectivos, Galerias existentes ou inventadas, suas reentrâncias e angulações. Suas imagens de referência são desdobradas com duplicações, espelhamentos, inversões, distorções, inserção de veladuras e de signos gráficos não despidos de ironias (Figura 2). Da fotografia em alto contraste de pinturas da história da arte passa a pinturas gestuais que fotografadas, exacerbam a textura da matéria pictórica. Pinturas servem de fundo para desenhos lineares, assim o leitor é transportado para numerosas sucessões de diferentes séries, possibilidades gráficas, quase transformado em voyeur do processo e pensamento do artista.

 

 

Gaudêncio Fidelis destaca o caráter antropofágico, tão arraigado à cultura brasileira, que pode ser intuído nesta apropriação do próprio espaço expositivo:

Ao proceder a uma canibalização do espaço, o artista destitui a distinção institucional atribuída ao espaço da galeria e a cada um desses espaços em particular, transformando-os no domínio de um nivelamento entre a disposição diagramática das obras, o prestígio que elas adquirem quando reconhecemos o espaço e sua localização e a veracidade do caráter documental da imagem. Como um portfólio falso, este livro é antes de tudo um objeto de arte em si, e sua circulação posterior existe na confluência entre essa canibalização da imagem e a perda da veracidade constitucional que a determina. Nesse processo de transformação pela via antropofágica, as imagens passaram por um processo de contaminação que é característico da especificidade própria do regime antropofágico (Fidelis apud Röhnelt, 2014: 308).

Maria Lucia Cattani e o livro dos Sete dias

Maria Lucia Cattani (Garibaldi, Brasil, 1958 – Porto Alegre, Brasil, 2015), também gaúcha, fez parte de uma geração de artistas que ganhou espaço a partir dos anos oitenta. Realizou seus estudos superiores no Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul onde, posteriormente, atuou como professora por quase 30 anos, tendo realizado estudos de pós-graduação nos Estados Unidos e na Inglaterra (Mestrado no Pratt Institute, em Nova Iorque, Doutorado na University of Reading e pós-doutorado na University of the Arts London, ambas na Inglaterra). Realizou numerosas exposições no Brasil e exterior e recebeu numerosos prêmios.

Interessando-se pelos recursos dos múltiplos que, por meio de exaustivas repetições, de gestos ou formas, possibilitavam a criação de obras, frequentemente, únicas, Cattani construiu obras bastante singulares. Se experimentou a produção de alguns livros nos anos oitenta é a partir do final dos anos 90 que esta produção passa a ser sistemática e encontra maior expressividade.

O livro Sete dias – one week (Figura 3) foi realizado, em 2000, na cidade de Nova York, onde a artista retornava dez anos depois de haver concluído seu curso de Mestrado. Para realiza-lo Cattani, abasteceu-se dos materiais necessários numa loja local. Talhou com a goiva o bloco de borracha, entintou este carimbo forjado na borracha com o pincel e tintas guache e estampou sobre as folhas coloridas – de sete cores diferentes, cada cor correspondendo a um diferente dia de permanência na cidade. Para cada estampagem foram escolhidos tons próximos à coloração do papel da página. Cattani tratou este livro como um testemunho de sua passagem na cidade, realizando uma página por dia, em cada um dos sete dias desta nova vivência, diferente da anterior e, desta vez vivida, de forma solitária.

 

 

Foram feitos poucos exemplares de cada página e estes, funcionaram, e foram expostos tanto como gravuras isoladas quanto encadernadas sob forma de livro (Figura 4). Uma versão de menor formato foi impressa em off-sett e editada como livreto. Conforme Matthew Browne: "Seu livro seria o silencioso som de um indivíduo em uma ensurdecedora cidade de milhões." (Browne, 2000).

 

 

RASTER de Flavya Mutran

Flavya Mutran (Marabá, 1968), paraense radicada em Porto Alegre onde cursa o doutorado em Poéticas Visuais pelo PPGAV no Instituto de Artes da UFRGS, iniciou seu percurso nas artes visuais ainda quando cursava Arquitetura e Urbanismo em Belém do Pará. Tendo exposto e recebido diversos prêmios na área da fotografia, Mutran interessa-se pela comunicação de massas, redes sociais e tecnologias que permitam o compartilhamento de arquivos fotográficos, especialmente na web. Em sua prática artística utiliza tanto imagens autorais quanto apropriadas.

Trabalhando tanto com arquivos digitais quanto com arquivos analógicos, estes últimos logo decodificados digitalmente, Mutran reflete sobre os processos aí envolvidos (Pereira, 2013: 1458):

Cada foto digitalformada por um conjunto de pixels que corresponde a uma estrutura única de 'zeros e uns', como também de outros caracteres e algoritmos em combinações decimais, hexadecimais e octadecimais da imagem. Mesmo que os arquivos sejam reconfigurados, reduzidos, ampliados, alterados em cor ou matiz, ainda assim seus códigos estruturais guardam todas as suas características originárias, e dependendo do programa que será´ usado para sua interpretação, passam a ter significados e correspondências próprias, passíveis de leituras, ainda que esta leitura seja inteligível apenas por máquinas.

É justamente pensando nesta codificação de imagens em caracteres – sobretudo os códigos binários que são a base de toda informação digital, que Mutran concebe a série RASTER. A célebre imagem Vista da janela em Le Gras, de Joseph Nice´phore Nie´pce (1826), foi ponto de partida para a criação do primeiro livro da série que reúne volumosas páginas (202, para ser exata), impressas em impressora caseira (sem edição definida), que são geradas a partir da leitura digital da imagem, sem no entanto materializa-la como imagem impressa em nenhuma parte. A artista coloca maiores informações sobre sua fonte primeira na forma de um QR-CODE que pode ser consultado via web (Figura 5).

 

 

Como procedimento de base, Mutran abriu a imagem em arquivo de extensão jpg em programas de leitura de texto gerando, assim, um arquivo de caracteres de leitura incompreensíveis, que lembram os sinais de corrupção de arquivos (por vírus ou outras anomalias). Depois, formata estas informações em páginas assemelhadas às de livros tradicionais que são apresentadas encadernadas e também em folhas soltas (Figura 5 e Figura 6).

 

 

Mutran desdobra esta imagem primeira em outras combinações gráficas, corrompendo-a novamente sob novos aspectos e formas. Uma caixa arquivo com cartões tipo fichário (Figura 6) integra um possível dispositivo onde supostamente a digitalização destes códigos (sem erros) poderia recriar virtualmente a imagem original.

Assim, esta série, consagrada integralmente à imagem, em nenhum momento oferece e a visualização da mesma nos objetos que dela resultam.

Pontuamos aqui um número bastante limitado de obras dentre este grande universo de publicações de artistas brasileiros contemporâneos. As obras de Mario Röhnelt, Maria Lucia Cattani e Flavya Mutran, aqui destacadas, apresentam abordagens bastante diferenciadas do múltiplo na criação de livros de artistas, onde cada qual emprega diferentes procedimentos na construção de sua poética.

 

Agradecimentos

Maristela Salvatori é bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq, Brasil.

 

Referências

Browne, Matthew (2000) A história de um livro: Maria Lucia Cattani [Consult. 2015-07-15] Disponível em URL: http://www.marialuciacattani.com/pdfs/matthew_pt.pdf        [ Links ]

Pereira, Flavya Mutran (2013) "Escrituras fotográficas no futuro analógico do pretérito digital." Ecossistemas Estéticos. Anais do 22º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas. [Consult. 2017-10-15] Disponível em URL: http://www.anpap.org.br/anais/2013/ANAIS/comites/pa/Flavya%20Mutran%20Pereira.pdf        [ Links ]

Röhnelt, Mário (2014) Galerias, Porto Alegre: Museu de Arte do Rio Grande do Sul.         [ Links ]

Silveira, Paulo (2012) "O livro de artista como assunto académico." Revista :Estúdio. vol. 3 (6): 273-277        [ Links ]

Silveira, Paulo (2011) "Sistemas para a página na obra de Maria Lucia Cattani." Subjetividades, utopias e fabulações. Anais do 20º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas. [Consult. 2017-09-15] Disponível em URL: http://www.anpap.org.br/anais/2011/pdf/chtca/paulo_antonio_de_menezes_pereira_da_silveira.pdf        [ Links ]

 

 

Artigo completo recebido a 23 de dezembro de 2015 e aprovado a 10 de janeiro de 2016

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: maris@ufrgs.br (Maristela Salvatori)

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