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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.7 no.15 Lisboa set. 2016

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Um Compasso no Bolso

A compass in the pocket

 

Ana Rito*

*Portugal, artista visual, curadora, investigadora e docente. Estudante de doutoramento. Licenciatura em Pintura, Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas Artes (FBAUL); Mestrado em Pintura, FBAUL.

AFILIAÇÃO: Universidade de Lisboa; Faculdade de Belas-Artes; Centro de Investigação e Estudo em Belas Artes (CIEBA). Largo da Academia Nacional de Belas Artes, 1249-058 Lisboa, Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

"Um compasso no bolso" apresenta duas exposições e uma pintura em três cenas ou atos. Hugo Barata, artista e curador, transporta o espectador para uma dimensão pictórica que, mergulhada no universo cinematográfico, explora diferentes noções de espaço e tempo sem nunca se desviar da superfície das coisas (pele).

Palavras chave: pintura, acontecimento, materialidade, superfície, (in)visível

 

ABSTRACT:

"A compass in the pocket" presents two exhibitions and a painting in three scenes or acts. Hugo Barata, artist and curator, takes the viewer into a pictorial dimension which, steeped in the cinematographic universe, explores different notions of space and time without ever deviating from the surface of things (skin).

Keywords: painting, happening, materiality, surface, (in)visible

 

Introdução

UM COMPASSO NO BOLSO é uma operação investigativa cuja estrutura adopta um certo léxico cinematográfico, ao mesmo tempo que museográfico e que se traduz num conjunto de três cenas: situ-ações, com personagens reais e fictícias, visíveis e invisíveis, habitantes de zonas tensionais comuns: o(s) espaço(s) do espectador e as suas materialidades.

 

Cena 1. Noite sem nome (couple)

Pequenos monumentos que atestam o início da possibilidade apresenta a sua estratégia investigativa: situar a prática artística e curatorial entre noções diversas de palco e de ecrã no reposicionamento dos seus mediadores – privilegiando (elasticizando e definindo) uma "zona de contacto" que se efectiva quer no espaço expositivo quer, mais concretamente, na experiência da instalação/ambiente que posta em cena o corpo de um espectador movente e activo na condução do seu próprio processo perceptivo.

A própria Sala do Veado (Museu Nacional de História Natural e da Ciência) permite expandir o processo de metamorfose, na produção de uma nova forma de descontinuidade narrativa que convoca o espaço físico: a arquitectura torna-se elemento estruturante do projecto, pondo em relação uma diversidade de componentes audio-visuais – imagens em movimento, sonoras ou mudas (sequências e loops) e imagens fixas. É construído um mundo guiado segundo um princípio de repetição-variação que afecta a linguagem, os corpos e os lugares, na reunião essencial de várias expressões e no confronto de universos de matérias a partir dos quais estabelece esta proposta, criando formas a partir de formas já existentes, corpos a partir de corpos, espaços a partir de espaços. As imagens, os sons, os movimentos ou as palavras são reinventadas, re-mediadas desde o seu interior, mais especificamente nos seus "intervalos" – de um conceito para outro, de uma disciplina para outra – criando constelações em trânsito constante, onde a contaminação de elementos resulta numa narrativa fragmentada (e consequentemente incompleta). Paisagem Demorada (Hugo Barata, 2015). Demorada porque expandida. Demorada porque fragmentada, porque dispersa, porque espaçada. O artista acentua a horizontalidade da narrativa com o travelling a que obriga o espectador, quebrando-a na figura de um plinto que exibe um livro de colecção (da sua colecção particular), da década de 1950, no seio do qual se encontram cinco fotografias de arquivo intervencionadas e colocadas cirurgicamente com o auxílio de pequenos pedaços de gesso (Figura 1, Figura 2). Estas fotografias resultam de um trabalho minucioso de recolha e arquivo de imagens onde o mar surge como uma espécie de personagem, humorado, animado. O livro, referente a reproduções de pinturas e esculturas clássicas, reúne um conjunto de gravuras do qual Hugo Barata terá elegido duas: uma mulher e um homem que decide afastar do âmago da instalação para os colocar na entrada da Sala do Veado, como observadores, como interlocutores de toda a trama. Ao homem sobrepõe o mar, submerge-o nas águas negras. À mulher deixa só, como pilar de todas as imagens.


There exist what we call images of things,
Which as it were peeled off from the surfaces
Of objects, fly this way and that through the air …
I say therefore that likenesses or thin shapes
Are sent out from the surfaces of things
Which we must call as it were their films or bark.

– Titus Lucretius Carus, De Rerum Natura, Livro IV

 

 

 

 

A materialidade de uma imagem, e a iminência do toque, manifesta-se na superfície tensional do mundo e das coisas, transportando-nos, de quando em vez, para locais inacessíveis, implausíveis e imensuráveis.

Para Lucrécio a imagem é uma coisa flutuante, em trânsito, que deixa rastro, abre fendas e ostenta cicatrizes, como uma pele, como uma película. A "inelutável modalidade do visível" (ineluctable modality of the visible) sugerida por Joyce em Ulisses, aponta a invasão, o "encavalgamento" entre o olhado/tocado e o que olha/toca como se a tactilidade fosse prometida, de uma certa forma, à visibilidade. Cada trabalho é uma pesquisa e acarreta consigo outras possibilidades de investigação, logo é precisamente no interstício das coisas que o pensamento flui e que outras imagens são chamadas. O molde de gesso ao fundo indicia a natureza transitiva de Pequenos Monumentos.

 

Cena 2. The Blind Man (cabinet)

Se, segundo Carlos Vidal (2011) (já o dissera sobre Caravaggio, o mesmo que, segundo certas narrativas, andaria traria sempre um compasso no bolso) a pintura pode ser um acontecimento, um corpo-superfície, uma sequência, Hugo Barata convoca também o pictórico, na composição que parece desconstruir a cada novo elemento. Falamos de corpo. Falamos de filme. Falamos de pele. Falamos essencialmente de pintura.

Aquela que acontece, aquela que se esconde, que não se deixa ver no seu todo (porque algo "em falta" não é representado, porque não devolve o olhar, porque ignora ou afasta o espectador – sendo temperamental portanto), aquela, que por essa razão, cria zonas tensionais e convoca o vazio. O desvelamento do corpo-superfície (tela, armário, parede, papel, tecido, etc.) acontece nos contornos que a luz desenha, os mesmos contornos que definem a zona de névoa (incerta), não pertencendo a nenhum outro lugar que não o da indeterminação. Porque estes contornos não são fixos, actuando como espectros ou aparições, dão forma ao corpo para logo de seguida o mergulhar de imediato nas profundidades do negro. Do(a) cinza. Veja-se a pintura The Reference (another small fire) Cabinet version (reminiscência do projecto Pequenos Monumentos que atestam o início da possibilidade, Sala do Veado – MNHNC). O que acontece quando observamos uma pintura que nos conduz a uma fotografia, ou o que aparenta ser uma fotografia? E se essa fotografia, agora pintura, estiver a meio de um processo de destruição, de desaparecimento? Que tudo se apague, dizemos. Para que possamos ver, esperamos. Para que possamos tocar, tentamos. Ora, a base do toque é precisamente tentar chegar a uma coisa, a um lugar ou a uma pessoa (incluindo nós mesmos), implicando também esta o seu inverso: isto é, ser tocado de volta.

Para além do mais, devemos considerar que, como função receptiva da pele (e falamos de pintura, de filme, repito), o toque não é apenas uma prerrogativa da mão. É também uma função que cobre a totalidade do corpo, incluindo o próprio olho e os pés, estabelecendo assim o nosso contacto com o plano horizontal.

Esta espécie de investimento afectivo projecta a imagem e o "eu" transformado na superfície; o corpo não é ausente de forma alguma. Em vez disso, o corpo encontra-se sempre exterior à sua forma visível. Neste sentido, a pele do espectador estende-se para além do seu próprio corpo; tenta alcançar a pintura, o filme no mesmo sentido que a pintura, o filme tenta atingi-lo a ele – o corpo. À medida que a imagem é traduzida em resposta física, o corpo e a imagem não mais funcionam como unidades distintas, mas como superfícies de contacto, comprometidas com uma constante actividade recíproca de alinhamento assim como de inflexão. A sala, com o "seu" armário suspenso, integra esta sequência pictórica, aquela que se estende até ao acontecimento, que se projecta nas peles e nas superfícies das coisas e das imagens, fazendo filme com elas (Figura 3, Figura 4).

 

 

 

 

Cena 3. The Shield (pele)

Em Surface: Matters of Aesthetics, Materiality, and Media, Giuliana Bruno (2014) explora uma noção de membrana mediadora das relações entre interior e exterior, passado e presente, público e privado: a(s) superfície(s). Apostado numa transversalidade operativa, aplicada a uma espécie de pele que elasticiza a cada novo assunto que explora, o texto expande lateralmente (ganhando "corpo", espessura, e conectando um vasto mapa rizomático) ao evocar a perceção sensorial de um observador móvel e migrante. A superficialidade é tendencialmente tida enquanto lugar de descontentamento, na medida em que o que é "superficial" não é denso, profundo, cheio ou satisfatório. Ora, é nos antípodas desta observação que Bruno opera, apontando então a pele como superfície, interface e forma de habitação primeira.

A superfície-pele é assim pensada, avançamos nós, como meeting point, espaço de conexão e contaminação, cuja extensão óbvia a outras matérias parece aqui pertinente e profícua: o próprio vestuário, as paredes, os espelhos, as telas, as tapeçarias, as cortinas, os véus (de Verónica), os ecrãs.

Pensar a imagem, e pensá-la como coisa, implica uma aproximação multidimensional, olhá-la de frente, ponderar os seus limites (os seus lados, fronteiras, moldura), indagar o que estará por detrás da primeira "pele" (visível), caminhar para o seu interior e tocar as suas vísceras. Abordar este "para lá da imagem", ou o por "detrás da imagem" requer uma sucessão de projeções.

Projetamos uma série de ecrãs imaginários, enformados pelas nossas próprias narrativas, pela própria ontologia dos ecrãs e das imagens, na tentativa de uma qualquer relação com aquilo que se nos apresenta, num primeiro momento, como impenetrável e incognoscível.

Projection or protection, that which one poses or throws in front of oneself, either as the projection of a project, of a task to accomplish, or as the protection created by a substitute, a prosthesis that we put forth in order to represent, replace, shelter, or dissimulate ourselves, or as to hide something unavowable – like a shield [ … ] behind which one guards oneself in secret or in shelter in case of danger (Derrida,1993:11-2),

Alinhamos a nossa perceção, e a nossa posição, em relação a esta imagem-coisa a partir destes ecrãs virtuais, num jogo que oscila, naturalmente, entre estados de atenção e distração, de aproximação (mergulho, imersão) e afastamento, encontrando, algures, um punctum de contacto: um canal para o seu interior ou um convite para o seu exterior, um apartamento sem retorno – sim, porque as imagens também rejeitam os seus observadores/espectadores. The Shield (2015) parece convocar este alinhamento, entre o desvio e o embate, entre o visível e o invisível (ou ligeiramente perceptível). Este tecido-pele, que cobre o corpo na totalidade, esvazia-se para receber todas as figuras, todas as projecções e todos os ecrãs (Figura 5, Figura 6).

 

 

 

 

Simultaneamente próxima e distante, é este o paradoxo da imagem que procura o seu espectador, que quer vir ao seu encontro (para logo se esconder de novo), a mesma que com ele exercita um jogo duplo em que a premissa parece ser a aceitação do fenómeno, o do fascínio, o da reversibilidade, o do aurático: o aparecimento único de algo distante.

 

Conclusão

Hugo Barata coloca o espectador no âmago de um processo ambíguo que resulta de uma constante migração entre estados e territórios distintos e comprometidos com as suas "falas" e agentes: figuras espectrais que se repetem, nos mesmos enquadramentos, nos mesmos gestos, no mesmo silêncio das suas pinturas, desenhos e filmes (e algumas esculturas). Esta permanência entre dois planos e entre dois actos – entre a mão e a visão – parecem coincidir com o jogo subtil (e revertível) entre movimento e estaticidade que o artista permite ao seu espectador (que, na sua própria mobilidade, percepciona a pequena figura quieta e em sombra – a iluminação é desenhada de forma a não revelar totalmente a imagem-coisa). A tensão activada pela intersecção destes estados acciona a potencialidade do instante. A imagem (no seio da nossa análise) opera no sentido em que esta direcciona a atenção do espectador para um momento específico no tempo – em direcção ao real e construído por si – mas através de mecanismos ilusórios ou ficcionados, utilizando-se precisamente da dialéctica estabelecida por intervalos perceptivos distintos e de natureza oposta. Este "corpo a corpo", manifesto em forma de encontro, este "momento da visão", provém da interseção (intuitiva) entre a ilusão e a realidade, o real e o virtual, resultando numa "sensação momentânea de presença", no seio de um qualquer cinema-theather.

 

Referências

Bruno, Giuliana (2014) Surface: Matters of Aesthetics, Materiality, and Media. Chicago: The University of Chicago Press.         [ Links ]

Carus, Titus Lucretius (1997), DE RERUM NATURA (On the Nature of the Universe: a new verse translation by Sir Ronald Melville). Oxford: Claredon Press.         [ Links ]

Derrida, Jacques (1993), Aporias, trans. Thomas Dutoit. Stanford, CA: Stanford University Press.         [ Links ]

Vidal, Carlos (2011) Deus e Caravaggio. Lisboa: Edições Vendaval. ISBN: 9789728984137        [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 30 de dezembro de 2015 e aprovado a 10 de janeiro de 2016

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: anarito.ar@gmail.com (Ana Rito)

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