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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.7 no.15 Lisboa set. 2016

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Cildo Meireles: "como na tradição oral" e além

Cildo Meireles: 'as in the oral tradition' and beyond

 

Angela Grando*

*Membro do Conselho Editorial e Professora Universitária.

AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Centro de Artes, Programa de Pós-Graduação em Artes. Av. Fernando Ferrari, 514, Goiabeiras, Vitória – ES, CEP 29075-910, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Desde os anos 1960, Cildo Meireles traz o campo da "oralidade" como suporte de sua produção artística, que exige em sua estrutura uma "biografia" construtiva. Sob este eixo, a instalação Elemento Desaparecendo/ Elemento Desaparecido (2002) se apropria da "tradição oral", cuja ativação pode acenar e repor em questão um sistema social existente, inserindo-lhe contrainformações críticas.

Palavras chave: Cildo Meireles, instalação, oralidade, transgressão.

 

ABSTRACT:

Since the 1960s, Cildo Meireles brings the field of "orality" to support his artistic production, which requires in its structure a "constructive" biography. Under this perspective, the installation Disappearing Element/Missing Element (2002) appropriates the "oral tradition", which activation can point and replace into question existing social system, inserting counterpropaganda criticism.

Keywords: Cildo Meireles, installation, orality, transgression.

 

Introdução

Para explicar, de início, o que surpreende e desconcerta no agenciamento da "oralidade" como elemento construtivo no trabalho de Cildo Meireles, a narrativa do próprio artista se impõe:

[ … ] Um dia, depois do almoço, eu decidi ir até essa rodoviária. [...] Quando eu me aproximei mais vi uma outra coisa estranha: os picolés [...]. Tinha os de 1,50 que era leite, 1,00 que era fruta e aí perguntei: "vem cá e esse de 0,50?" O menino respondeu: "Esse é só água" (Rivitti, 2007:82).

É a partir desse episódio ocorrido em 1974, na rodoviária próxima à casa de sua avó, na periferia de Campinas, Goiás, que Meireles relata como a ideia de seu trabalho Elemento Desaparecendo / Elemento Desaparecido (tema deste texto) surgiu. É daí que apropria-se da cena e do discurso verbal para a elaboração da instalação exposta na XI Documenta de Kassel, em 2002. Ele diz: "Eu fiquei com aquilo na cabeça até esse dia lá em Madri em que contei para o Okui e ele falou para desenvolver isso" (Rivitti, 2007:82).Para a montagem desse trabalho, Cildo Meireles organizou e coordenou a instalação de uma pequena fábrica de picolés em Kassel, na Alemanha, envolvendo a criação de uma logomarca (Figura 1) – estampada nos uniformes, carrinhos e embalagens dos picolés – incluindo a aquisição de equipamentos e insumos, o acordo das relações contratuais com os fornecedores e funcionários, bem como a produção e venda do produto em diversos carrinhos que circularam nos espaços públicos da cidade no período de duração da Documenta (Figura 2, Figura 3).

 

 

 

 

 

 

Os picolés foram produzidos como o "diverso do mesmo", isto considerando a materialidade das cores azul, cinza e verde de suas embalagens, os títulos Elemento Desaparecendo/ Elemento Desaparecido inscritos nos palitos de plástico e por terem sido disponibilizados em três formatos diferentes: achatado, cilíndrico e cúbico, em acordo com as cores (Figura 4, Figura 5, Figura 6). Contudo, apesar da variação desses elementos, é preciso destacar que os três "tipos" de picolés eram feitos de água, portanto, incolores e insípidos. Também, ao ser usado as convenções visuais e conceituais de uma indústria, foi criado uma perspectiva contrária a sua realidade, por ser constituída sem visão de lucro ou mesmo de crescimento mercadológico, além de se estabelecer em caráter temporário, o que permite pensar na sua própria "desmaterialização", e

[...] ficou desde o início acordado que os rendimentos líquidos da venda do produto (descontados os custos variáveis de produção e comercialização) seriam integralmente distribuídos entre os funcionários envolvidos, subvertendo, assim, a lógica de apropriação e acumulação de valor em que se ancora a produção capitalista. (Anjos, 2010:68)

 

 

 

 

 

A obra é particularmente uma proposta de ação e participação. O objeto picolé, tanto pelas inscrições Elemento Desaparecendo / Elemento Desaparecido em seus palitos, quanto por estar afeito a ser consumido, direciona o espectador a refletir e interagir com a obra. Por exemplo, a ação de ingerir o picolé, leva a desmaterialização do objeto e o líquido (água) passa a circular no corpo do observador. Ou seja, a partir do momento em que a intervenção é realizada a materialidade do objeto (picolé) perde sua solidez e evapora. Este processo pode provocar uma inquietude, relacionada à multiplicidade de valores que emergem do processo da obra. Por exemplo, não se pode deixar de ser atingido pela inquietude de que a existência da água seja preservada, considerando as condições que, hoje, podem tornar sua existência comprometida. O trabalho opera uma experiência desconcertante, um Acontecimento. E que significa isto, Acontecimento? Na definição de Deleuze e Guattari, o que acontece, o que é do Acontecimento porta a dimensão da revelação, do excesso. Contudo, a sua experimentação dá-se como uma falta, ou seja, a revelação do Acontecimento conflui como um excesso-falta, pela impossibilidade de se dizer o tudo/absoluto do que acontece/Acontecimento. Como explicar um só momento com diversas articulações? Sem se petrificar no passado ou no presente, o Acontecimento entrelaça o tempo e o sentido, ao produzir diferença no próprio sujeito. E, sem se confundir com o sujeito, o que acontece se atualiza num corpo, num vivido, como modo intensivo e flutuante, sem se petrificar. Nas palavras desses filósofos: "Nada se passa aí, mas tudo se torna, de tal maneira que o acontecimento tem o privilégio de recomeçar quando o tempo passou" (Deleuze, 1992:204). O intervalo entre o ocorrido e aquele por advir dura um tempo perecível e conserva algo de visível e dizível, mas também de invisível e indizível, podendo se expandir em um seguimento de reiteração.

O instante de subtração do picolé (evaporação do líquido) instaura uma experiência equivalente a uma "espera infinita que já passou infinitamente" (Deleuze, 1992:203). O efêmero se aproxima da noção de Acontecimento, o quena leitura de Deleuze é também chamado de "entre-tempo" e pode ser descrito como algo sem localização temporal precisa, ou segundo suas palavras: "o presente passa (em sua escala), ao passo que o efêmero conserva e conserva-se (na sua escala)" (Deleuze & Guattari, 1992:55). Sem reduzir, na coincidência da evaporação do líquido do picolé com o aparecimento da inscrição "elemento desaparecido", o espectador pode produzir (ou não) uma reflexão crítica e redirecionar o processo estético que subsiste nessa experiência, ou seja, que persiste no tempo, naquilo que se envolve com a linguagem, tornando possível sua expansão.

 

Na fronteira entre ficção e realidade, ou "pertencendo simultaneamente a esses dois mundos"

"A mim", diz Cildo Meireles, "parecia que nas artes plásticas era um desafio fascinante chegar a essa situação da oralidade como suporte" (Cildo, 2014:104). Para tanto, a "oralidade" cria conceitos, dá partida à ideia que vai se formalizar, é ligada a diversos tipos de situação – experiências vividas, acontecimentos políticos, imaginário popular, histórias religiosas e literárias – e se desloca por temporalidades impuras, dialéticas. Nesse sentido, a oralidade se insere na "biografia" da obra, e não somente pontua uma conexão entre a construção da coisa escrita ou contada e a forma, como coloca em situação a dialética entre a prática plástica e a montagem teórica. Ainda, se articula na trilha do conceito de "sintoma", como empregado por George Didi-Huberman (Didi-Huberman, 2002:49), tratado como um campo de imagens, multidimensional, receptivo ao anacronismo do tempo e a historicidade de que emerge. Para este historiador, "a obra pensa" e nos dizeres de Cildo Meireles "[...] cada traballho tem uma espécie de biografia" (Soares, 2006:72), a arte deve encorajar o pensar, seduzir.

Como se sabe, nos finais dos anos 1960 e início dos anos 1970, o trabalho de Cildo Meireles se faz numa práxis experimental, que extrai de uma instância antropológica e da relação entre arte e sociedade um modo de pensar. E, aspira contra divulgar mensagens ou fazer circular por meio da especificidade da arte "uma força social" que deve produzir um efeito modificador no meio circundante. Isso significa dizer que trabalhos como Inserções em circuitos ideológicos: Projeto Coca-Cola (Meireles, 1981:22) ouas mensagens do Projeto cédula (Meireles, 1981:26) colocaram em situação um sentido crítico ante a realidade, mecanismo recuperado e reutilizado em outros de seus trabalhos posteriores. É o caso de Elemento Desaparecendo / Elemento Desaparecido, que reivindica o real para, sem se tornar estranho a ele, transgredir ativamente o seu campo. Conforme um processo que extrai matérias de um campo para criar uma nova maneira de pensar e, ao mesmo tempo, mudar com esse processo as condições em que o observador se encontra. Isto, no sentido da personalização do receptor, que "pode converter-se em emissor", diz Meireles.

E, interagir com o Elemento Desaparecendo / Elemento Desaparecido, é lidar com um discurso ininterrupto de questões diversas – conceitual, oral, sinestésica, poética – que implica em repotencializar as coisas, "transgredir o real". Seria uma prática artística, diz Meireles, operando numa escala industrial: "em vez de trazer algo do universo industrial (ready-mades) para o interior do universo da arte, queria possibilitar a intervenção do indivíduo no mundo industrial [...]" (Cildo, 2014:104). O trabalho funciona como industrialização de objeto artístico pela própria organização, já que é uma fábrica. Donde, Cildo Meireles classificar esse trabalho, assim como Camelô (1998), como "poemas industriais". Sobre esta questão já foi dito que: "Esses dois trabalhos parecem atestar, pela precariedade evidente dos objetos que lhes dão corpo, a batalha desigual da poesia contra a indústria" (Anjos, 2010:71). Nesse confronto, o produto final é então oferecido na forma de mercadoria de consumo individual e privilegia aquele que deseja e pode comprar, mas aí se flagra uma troca: não só de um objeto ordinário para um "objeto artístico" como também da noção de público de arte pela aquela de comprador. E, por mais que se busque visibilidade para essa imagem, ela nos escapará, porque não é apreendida pelo retiniano, escapa ao campo de percepção visual, pois inclui um processo de tempo e de ações não constituídas como visíveis. Ao comentar isto, retomo Deleuze que esclarece: "As visibilidades não se definem pela visão, mas são complexos de ações e paixões, de ações e reações, de complexos multissensoriais que vêm à luz" (Deleuze, 1988:68).

 

Conclusão

Elemento Desaparecendo / Elemento Desaparecido se funda no seu próprio enunciado, se cumpre ao enunciar-se, ao explicitar-se. O verbo desaparecer, conjugado no gerúndio e no particípio, dirige o foco tanto para a coisa (obra) quanto para a atitude do sujeito (observador) defronte a coisa, pela indecisão que pode afetar seu discernimento na questão ontológica. O trabalho arma um circuito de inteligibilidade que se movimentaria infiltrado nas práticas individuais e nas condições sociais (habitus) do observador. Ao participar da experiência, este vai levar adiante a história que, sob interferência voluntária ou não, vai se alterar sem perder alguns dados procedentes. Essa inserção do observador no processo da obra forja o pensamento expansivo, faz emergir tensões na percepção e no sensorial, que persistem na pluralidade de experiências e podem se repotencializar a cada vez que são retomadas, revelando-se alguns detalhes ou omitindo-se outros. Contudo, a ideia original do trabalho é preservada. Nas palavras de Meireles:

[...] se pensarmos bem, veremos que a oralidade é o elemento essencial das relações sociais no Brasil [...]. O seu dinamismo se passa sobretudo no seu plano da criação verbal cotidiana, e não há razão para que os chamados artistas plásticos não explorem esse fato. Gostaria que meus trabalhos pudessem ser "manipulados" mesmo por aqueles que tenham apenas ouvido falar deles. Mesmo porque, como a língua, a arte não tem dono (Meireles, 2009:29).

Nessa perspectiva a oralidade se movimenta naquele eixo proclamado por Benjamin, no qual "o narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes" (Benjamin, 1987:201). Por isso mesmo, é o movimento de coisas tão diversas que vai organizar a "biografia da obra", e essa partilha é sua constituição estética, o que a identifica.

 

Referências

Anjos, Moacir (2010) "Cildo Meireles: A indústria e a poesia". In: Anjos, Moacir. Crítica, Moacir dos Anjos / [coordenação da série e apresentação Luiza Mello & Marisa Mello] – Rio de Janeiro: Automatica. [Consult. 2014-03-03] Disponível em http://www.automatica.art.br/images/arte_bra_moacir_dos_anjos_mail.pdf        [ Links ]

Benjamin, Walter (1987) "O Narrador". In: Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios sobre Literatura e História da Cultura. Obras Escolhidas. Vol. 1. (tradução: Sergio Paulo Rouanet). São Paulo: Ed. Brasiliense.         [ Links ]

Deleuze, Gilles (1988) Foucault (tradução Claudia Sant'Anna Martins). São Paulo: Brasiliense,         [ Links ]

Deleuze, Gilles (1996) "O atual e o virtual". In: Alliez, Éric. (1996) Deleuze Filosofia Virtual. São Paulo: Ed. 34, p. 47-57.         [ Links ]

Deleuze, Gilles; Guattari, Felix. (1992) O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34.         [ Links ]

Didi-Huberman, Georges (2002) L' Image Survivante: Histoire de l' art et temps des fantômes selon Aby Warburg. Paris : Éditions du Minuit.         [ Links ]

Meireles, Cildo (1981) Cildo Meireles. [Textos de Ronaldo Brito e Eudoro Augusto Macieira de Souza]. Rio de Janeiro: Edição FUNARTE,         [ Links ]

Meireles, Cildo (2009) Cildo Meireles. Organização Felipe Scovino. Coleção Encontros. Rio de Janeiro: Beco do Azougue.         [ Links ]

Rivitti, Thaís de Souza (2007) A idéia de circulação na obra de Cildo Meireles. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo, Escola de Comunicações e Artes.         [ Links ]

Soares, Valeska; Meireles, Cildo; Neto, Ernesto (2006) Seduções: Valeska Soares, Cildo Meireles, Ernesto Neto: [instalações, June 9-October 15, 2006, Daros Exhibitions] Zürich: Hatje Cantz Pub.

 

Artigo completo recebido a 30 de dezembro de 2015 e aprovado a 10 de janeiro de 2016

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: angelagrando@yahoo.com.br (Angela Grando)

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