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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.7 no.15 Lisboa set. 2016

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Derivas: um olhar sobre a obra de Marcelo Moscheta

Drift: a look about the work by Marcelo Moscheta

 

Joedy Luciana Barros Marins Bamonte*

*Brasil, artista plástica, pesquisadora e professora universitária. Graduada em Educação Artística, Universidade Presbiteriana Mackenzie (São Paulo). Mestre em Comunicação e Poéticas Visuais – UNESP. Doutora em Ciências da Comunicação (Comunicação e Estética do Audiovisual, Sistemas de Significação em Imagem e Som – Universidade de São Paulo, ECA.

AFILIAÇÃO: Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Departamento de Artes e Representação Gráfica. Av Eng Luiz Edmundo Carrijo Coube, nº 14-01, Bairro: Vargem Limpa, CEP 17033-360, Bauru, SP, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Em instalações, objetos, esculturas, a obra de Marcelo Moscheta apresenta reflexões geradas em imersões em paisagens distantes, locais de difícil acesso onde o processo criativo se desenvolve em meio ao silêncio e distanciamento do cotidiano. Com foco para a obra "Norte", a abordagem prioriza um estudo com base na crítica de processo.

Palavras chave: Marcelo Moscheta, poética artística,crítica de processo, linguagens artísticas

 

ABSTRACT:

In Installations, objects, sculptures, works of Marcelo Moscheta presents reflections generated in immersions in distant landscapes, places of difficult access where creative process development is in the silence and everyday detachment. With focus for the work "North", the approach prioritizes a study based on the process of criticism.

Keywords: Marcelo Moscheta, artistic poetry, critical process, artistic languages

 

Introdução

Marcelo Moscheta (n. 1976- ) é um artista brasileiro, multimídia, nascido em São José do Rio Preto, (São Paulo, Brasil). Com produção voltada para a experiência da paisagem, observações e investigações sobre a natureza, possui em sua carreira uma sequência de trabalhos relacionados a visitas em ambientes de difícil acesso, como um desbravador incessante. Contemplado inúmeras vezes com premiações, participou de bienais, exposições coletivas e individuais na Itália, Alemanha, Estados Unidos, Canadá, Venezuela, Uruguai, Inglaterra, Dinamarca, Espanha, Portugal, Cuba, França, Bélgica, dentre outros.

O presente texto faz uma abordagem das obras expostas na exposição "Norte", priorizando o registro da memória e espaços de reconstrução de seus desenhos. Como aporte teórico para o desenvolvimento do texto, optou-se pela crítica de processo, linha de pesquisa nascida da crítica genética, que tem em Cecília Almeida Salles sua principal representante no Brasil. Para tanto os registros de Moscheta serão enfatizados, sob a luz de textos de Gaston Bachelard, em La poétique de l'espace (1957) e Anne Cauquelin, em L'invention du paysage (2004), favorecendo o estudo sobre a poética do artista.

Com o intuito de investigar o processo de criação de Moscheta, desde sua inserção na paisagem, imersão, passando pela pesquisa, formas de registro, até chegar à obra final, enfatiza o momento de montagem da obra no espaço expositivo, como ele se dá trazendo as questões esmiuçadas pelo artista e a maneira como elas são elaboradas chegando às instalações. Para tanto, aproxima-as de outras fases de produção para melhor compreensão dos procedimentos do artista.

 

Sobre o processo criativo de Marcelo Moscheta

Ao traduzir a persistente busca pelos extremos presentes na natureza e as limitações em se dominar a paisagem, Moscheta reconstrói o espaço e a si mesmo enquanto investigador e arqueólogo, sensível às manifestações e permanências da vida. Em suas próprias palavras:

Desde 2007 tenho trabalhado com pequenas expedições, deslocamentos, enfrentamentos diante de uma paisagem específica, e empregado essa experiência como combustível para a criação. Troco o conforto do meu ateliê, em Campinas, pela dificuldade de estar longe do que é confortável. Lá, na paisagem, não tenho controle do tempo ou do espaço e deixo-me, assim, aberto à experiência do maravilhamento com o entorno, para o encontro com a essência do lugar. (Moscheta, 2013:9)

Em espaços expositivos, as vivências, sensações e percepções são reproduzidas, recodificando a paisagem, à medida que o olhar encontra seu refúgio no momento de fruição e experienciação das obras. Anotações, desenhos, estudos, fotografias dão suporte às descobertas, em operações onde a arte e a ciência estão em constante convívio, reafirmando-se.

Ao observar os registros que documentam o processo das obras, a questão da personificação e elaboração das paisagens se torna latente, assim como os mecanismos de escolha e significação de um determinado espaço e configuração enquanto lugar. Ao refletir sobre essas questões, cita-se trecho de texto de Anne Cauquelin (2007: 92), em A invenção da paisagem:

"Devo" ver. Esse imperativo se dá inicialmente como um todo. Contudo, ele é construído com mil estratos justapostos, que até mesmo o historiador mais minucioso e mais bem documentado não consegue apreender separadamente, no pormenor de sua exigência.
É o que se passa, por exemplo, com a descoberta da montanha ou do litoral. A sensibilidade social a essas 'paisagens' é historicamente atestada em épocas determinadas e bastante recentes. "Descobre-se" a beleza, freqüentam-se os lugares até então considerados desertos maléficos, aterradores. Eles entram na moda, primeiro para a elite da sociedade, depois entram no vocabulário das "necessidades" naturais, são um bem comum, disponível a todos.

A elaborar das obras está intrincada a um deslocamento para lugares fugidios, distantes, onde o conceito de paisagem ainda não foi configurado, onde o poder aquisitivo não pode ser estabelecido. O conforto é trocado por dias de descoberta diante do completamente desconhecido, onde as memórias serão solicitadas para que as conexões sejam feitas. A deriva conduz o indivíduo para o nunca visto e lá ele percebe que sua história também está presente, em deslumbramentos que trazem novas imagens, sensações e percepções a seu repertório. A rede de criação continua a ser construída.

A exposição "Norte" é decorrente de uma viagem ao arquipélago de Svalbard, território norueguês banhado pelas águas do Oceano Glacial Ártico, local de acesso controlado. A experiência faz parte de um programa anual de residências artísticas chamado The Artistic Circle, durante a qual um veleiro navega pela costa oeste da localidade sob governo norueguês durante três semanas. Em expedições como essas, Moscheta carrega poucas coisas para elaboração dos trabalhos: lacres, GPS, fitas adesivas, câmeras. Sua principal ferramenta é o caderno onde guarda seus registros em desenhos, anotações, colagens. O deslumbramento frente a um local praticamente inabitado dá lugar a construções onde o conceito de paisagem é resultante de uma imersão e do que pode ser gerado em função disso. Há o continuum,constantemente alimentado, conforme afirma o próprio artista, algo que nasce e se alimenta do "maravilhamento frente às coisas", o que afirma ser o combustível de seu trabalho (Moscheta, 2015a).

Realizada no Paço Imperial, no Rio de Janeiro-RJ, entre 12 de dezembro de 2012 e 17 de fevereiro de 2013 sob curadoria de Daniela Name, Norte ocupou a comprida sala Terreiro do Paço, na qual, conforme discorre, a narrativa expográfica foi montada intuitivamente rumo ao norte (Moscheta, s/d a). A montagem foi dividida da seguinte forma: um primeiro segmento foi denominado "Navegação", possuindo duas obras anteriores à viagem, Ilha Elephant e "Maré 1.3". Junto a eles foram colocados A line in the Arctic e Driftwood. No centro da sala foi disposta a instalação "À deriva", um conjunto escultórico de icebergs impressos em acrílico, a partir de esculturas em isopor escaneadas por meio de ressonância magnética (Moscheta, s/d b) (Figura 1). Em uma terceira e última parte da mostra, chegava-se ao "caderno de viagens" de Svalbard, nas obras Ny Alesund, Atlântida, Fotocromáticos, Ártico e Notes from de cold (Figura 2, Figura 3). Nas palavras de Name, a exposição tomou uma sequência que aparenta ao espectador estar primeiro em uma embarcação, a seguir, à deriva, chegando-se enfim ao extremo da sala, onde a luz do ambiente gelado se revela, um mundo quase imaginário em nuances de branco.

 

 

 

 

 

 

A observação das obras enquanto espectador parece solicitar os momentos de registro e seu frescor. Como as imagens captadas durante a residência foram disponibilizadas em vídeos na internet, assim como fotos do artista criando as obras para a exposição, elas podem ser aproximadas das que foram expostas. São extremamente enriquecedoras e trazem a importância dos documentos de processo, que podem ser até mais importantes do que a produção finalizada. Foram durante os momentos de seus registros que ocorreram o fascínio e o deslumbramento do artista. O acesso a essas imagens originais talvez sejam até mais importante do que visualizar as próprias obras que estão na mostra, levando-nos a questionar o que é a obra finalizada e que é rascunho. Cita-se Cecília Almeida Salles, "Gesto Inacabado: processo de criação artística":

Cada obra é uma possível concretização do grande projeto que direciona o artista. Se a questão da continuidade for levada às últimas conseqüências, pode-se pensar cada obra como um rascunho ou concretização parcial deste grande projeto. (Salles, 2011:46)

A elaboração dos trabalhos finais percorreu um ano dentro do ateliê, em produção constante. O resgate da memória, estudos de desenhos, escolhas de imagens estáticas e móveis varreram tudo o que se tornou deriva. Arquivos materiais, mentais foram acionados e tudo o que se foi presentificado tornou-se produção. Obras anteriores foram convocadas, continuadas. Exemplifica-se "Fotocromáticos", no qual o artista utiliza a paleta Pantone para "organizar", relacionando a ação à tendência humana de classificar as coisas. As cores são trazidas para mensurar o que foi encontrado no Ártico, extremamente colorido, como diz Moscheta. É uma referência à percepção e concepção da paisagem abertas ao espectador. O artista compartilha a experiência conosco, o fenômeno.

Diante de sua obra, a aproximação com expedicionários no decorrer da história é mencionada. O artista é aquele que investiga, descobre, ressignifica. Ainda há lugares por se conhecer/reconhecer, desvinculados ou não do mundo globalizado. Ao se preterir o cotidiano, novas possibilidades de olhares são proporcionadas e é isso que move o artista ao se deslocar do ambiente confortável de seu ateliê para ir ao encontro de áreas que o coloquem em sua limitação física. O frio, o desconforto, a distância tornam-se mecanismos de sobrevivência diante da vida, que anseia por renovar-se, questionar-se. A beleza deriva dessas contingências, onde pode encontrar novas possibilidades, novos pontos de vista. Foi assim nos séculos passados e ainda pode ser assim.

No interesse pelas expedições em locais longínquos e a realização diante de uma viagem ao Pólo Norte, pontua-se o encontro com a imensidão em oposição aos momentos introspectivos dos desenhos nos cadernos, potencializados em obras como "Notes from the Cold" e "Arbor-vitae", nas quais o registro gráfico é feito com a extração da camada de grafite aplicada sobre placas de PVC pretas, com uma borracha "apontada" (Figura 4). O todo se estende ao espectador. Na expansão dos documentos de processo, a imensidão visitada está presente. O gelo é trazido até nós. Nas palavras de Gaston Bachelard:

A imensidão está em nós. Está ligada a uma espécie de expansão de ser que a vida refreia, que a prudência detém, mas que retorna na solidão. Quando estamos imóveis, estamos algures; sonhamos um mundo imenso. A imensidão é o movimento do homem imóvel. A imensidão é uma das características dinâmicas do devaneio tranqüilo. (Bachelard, 1993:190)

 

Considerações finais

"O isolamento é a maior parte da residência". Nas palavras de Marcelo Moscheta encontra-se a relevância atual da investigação sobre as derivas na arte, surgidas em meados da década de 1950. Ao remeter, inclusive às expedições que desbravaram o novo mundo durante o processo de colonização entre os séculos XVI e XIX, o estudo sobre imersões e a paisagem nos lança ao inacessível, onde a solidão é manifesta, colocando-nos à deriva. Compreender o que se passa nesses momentos é passar pela experiência do artista, identificando e sensibilizando-nos. Nesse instante somos todos nômades e entregues ao desconhecido. Acompanhar os percursos do processo de criação das obras mencionadas nos aproxima do artista e de nós mesmos, indo ao encontro da sede pela experiência e pela identificação com a vida.

 

Referências

Bachelard, Gaston (2008) A poética do espaço. 2ed. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Cauquelin, Anne (2007) A invenção da paisagem. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Moscheta, Marcelo (2013) Norte. Rio de Janeiro: Imã         [ Links ].

Moscheta, Marcelo (s/d a) Norte: Marcelo Moscheta. [Consult. 2015-12-01] Disponível: https://www.youtube.com/watch?v=7zcGhrSypTM         [ Links ]

Moscheta, Marcelo (s/d b) À deriva. [Consult. 2015-12-01] Disponível: https://www.youtube.com/watch?v=QGZX-ykcLTQ        [ Links ]

Moscheta, Marcelo (s/d c) Marcelo Moscheta. [Consult. 2015-12-01] Disponível: http://www.marcelomoscheta.art.br        [ Links ]

Moscheta, Marcelo (s/d d) Marcelo Moscheta: Norte (vídeo 2, ateliê). [Consult. 2015-12-01] http://www.youtube.com/watch?v=VxGF324cQjE        [ Links ]

Salles, Cecília A. (2011) Gesto inacabado: processo de criação artística. 5 ed. São Paulo: Intermeios.         [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 30 de dezembro de 2015 e aprovado a 10 de janeiro de 2016

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: joedy@faac.unesp.br (Joedy Luciana Barros Marins Bamonte)

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