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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.7 no.15 Lisboa set. 2016

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

A dialética dos materiais na obra de Regina Rodrigues

The dialectic of materials in the Regina Rodrigues's art work

 

Tatiana Campagnaro Martins*

*Brasil, artista plástica. Estudante de mestrado. Bacharelado em Artes Plásticas pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Centro de Artes.

AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Centro de Artes, Programa de Pós-Graduação. Av. Fernando Ferrari n°514, Goiabeiras Vitória – ES CEP, 29075-910, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Este estudo de caso tem como objetivo refletir sobre as dicotomias propostas pela artista plástica Regina Rodrigues (1959-) ao trabalhar a cerâmica em diálogo com o vidro. Utilizamos a Crítica de Processo e a Critica inferencial, como suporte para um olhar retrospectivo sobre as obras produzidas com estes materiais na exposição "Uma Oleira de Vida Inteira" (2015). Buscamos desvelar alguns dos princípios norteadores que permeiam a poética de Rodrigues como o jogo dual entre o rígido e o flexível, a opacidade e a transparência, o dentro e o fora, o masculino e o feminino.

Palavras chave:Arte, cerâmica, objeto, escultura, processo de criação.

 

ABSTRACT:

This case study aims to reflect on the dichotomies proposed by the artist Regina Rodrigues (1959-) when working with ceramics in dialogue with glass. We use the Process Criticizes and Inferential Criticizes, as support for a retrospective look at her works, produced with these materials in the exhibition "Uma Oleira de Vida Inteira" (2015). We seek to uncover some of the guiding principles that permeate the poetics of Rodrigues as the dual match between rigid and flexible, opacity and transparency, the inside and the outside, the male and the female.

Keywords: art, pottery, object, sculpture, creative process.

 

Introdução

Este artigo é um estudo de caso sobre as obras realizadas em cerâmica e vidro, pela artista plástica brasileira Regina Rodrigues (1959 – ), expostas na mostra Uma Oleira de Vida Inteira (2015) na Galeria de Arte Espaço Universitário (GAEU), despedida da artista, que após 20 anos como docente na cadeira de cerâmica da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) retornou para Uberlândia – MG.

Neste estudo, refletimos sobre a dualidade de sentidos apresentada pela artista ao colocar a cerâmica em diálogo com o vidro. Para tal análise utilizamos a Crítica de Processo e a Crítica Inferencial como suportes para um olhar retrospectivo, em busca de vestígios, indícios de pensamentos e ações da artista sobre as relações entre materiais e formas geradoras de sentido na obra.

Uma Oleira de Vida Inteira, apresentou uma seleção de obras de diferentes momentos da carreira de Rodrigues, evidenciando seu interesse pelas potencialidades expressivas da cerâmica no campo tridimensional da arte contemporânea. Imersa em um território investigativo, a artista explorou o potencial não funcional do universo cerâmico, voltando sua atenção para as características próprias dos materiais e técnicas. Também mostrou o desejo da artista em colocar a cerâmica em diálogo com outros materiais como o ferro o cobre e o vidro.

Neste artigo nosso olhar se volta, em especial para as obras onde Rodrigues interage a cerâmica com o vidro, resultado de suas pesquisas dos últimos cinco anos, apresentadas anteriormente nas mostras Opacidade e Transparência (2012) na Galeria de Arte e Pesquisa (GAEU) e Transumância (2015) na galeria municipal de Montemor-o-Novo em Portugal. As demais obras expostas, anteriores a 2008, se apresentam para nós, nesse momento, como documentos de um processo dinâmico, não linear, onde regressões e progressões infinitas são inegáveis.

[...] Como cada versão contém, potencialmente, um objeto acabado e o objeto considerado final representa, de forma potencial, também, apenas um dos documentos do processo, cai por terra a idéia da obra entregue ao público como a sacralização da perfeição. Tudo a qualquer momento, é perfectível. A obra está sempre em estado de provável mutação, assim como há possíveis obras nas metamorfoses que os documentos preservam. (Salles, 2001: 26).

Portanto a obra, tanto quanto os documentos pertencem ao campo do inacabado, onde os "documentos são uma possibilidade e a obra, deles decorrente, é uma escolha entre outras possíveis. A obra apresentada é uma versão dentro de um sem-fim de probabilidades [...]" (Cirillo, 2004: 37).

Os primeiros trabalhos de Rodrigues em cerâmica e vidro são do inicio de 2011, quando a artista teve o projeto, Opacidade e Transparência, contemplado no Edital 11/Bolsa Atelier, um financiamento concedido pela Secretaria de Estado da Cultura (SECULT) para o desenvolvimento de pesquisa e produção artística. Vendo nesse financiamento a possibilidade de ampliar suas investigações no campo da cerâmica enquanto expressão plástica, se propôs a trabalha -lá integrada a um novo material, o vidro.

As motivações que levaram Rodrigues a buscar o diálogo da cerâmica com o vidro estão presentes na ficha de inscrição do projeto Bolsa Atelier. Salles afirma que podemos utilizar como documento "[...] todo e qualquer registro do percurso feito pelo artista ou, de modo mais amplo, todo e qualquer registro que nos ofereça informações sobre processos de criação." (Salles, 2008: 89). Portanto, a ficha de inscrição, assim como os relatórios do andamento do projeto, foram utilizados nessa analise como material documental do processo de criação de Rodrigues.

Segundo a artista, no projeto de inscrição, Opacidade e Transparência nasceu em continuidade a sua pesquisa mais recente, onde interessada em colocar o barro em diálogo com materiais conflituosos, realizou uma série de trabalhos aproximando a cerâmica com o cobre, criando um jogo dual entre flexibilidade e rigidez.

Quais questões relativas ao seu trabalho com o cobre teriam continuidade nesse novo percurso com o vidro? Para responder tal pergunta se fez necessário uma analise não só das obras com fio de cobre, mas também dos documentos de processo em busca de registros das reflexões da mente criadora nos rastros da artista.

Na experiência com o cobre, a artista teceu uma delicada trama com fios desse material na criação de formas maleáveis e ocas. Eram longos tubos tecidos que ora se alargavam formando casulos, ora se estreitavam em forma de garganta (Figura 1). Nos seus relatos em um caderno diário a artista chamou as formas tecidas de esculturas de linha, afirmando que tais objetos não tinham um desenho inicial, surgiam a partir da manipulação da linha e da agulha. Segundo ela,era o gesto que se repetia a cada laçada ao redor do dedo que criava os pequenos pontos de crochê que geravam a forma. As palavras da artista revelam sua relação com a nova matéria: "[...] tecer é experimentar o desejo na vontade matérica [...] o investimento no esforço é visível à flor da pele [...] toda pele tecida informa uma intimidade com a linha [...]." Tais relatos nos apontam que, assim como na cerâmica, a materialidade e a manualidade também são questões importantes nas esculturas de linha criadas por Rodrigues.

 

 

A trama de pontos de crochê que dão forma ao objeto também permitem ver o seu interior, resultando em uma suave transparência. Rodrigues diz no caderno diário que as formas aparentemente orgânicas não são coisa alguma, "são apenas objetos lugares, e lugares que não carregam nada, um vazio". Ainda em seus escritos a artista coloca o vazio como uma ficção, pois para ela o vazio está "cheio da ação, cheio de um tempo de recolhimento e evasão ao mesmo tempo". Portanto o espaço interno envolto pela trama que encobre sem velar não está vazio, está impregnado de sentimentos e lembranças, deixados pelo contato íntimo da artista com a matéria no ato de tecer, no tempo da obra.

Ao colocar o corpo criado com fio de cobre em dialogo com a cerâmica a artista explora o dentro e o fora das duas matérias. No caderno diário, o orifício aparece como "o lugar que comunica o interior com o exterior", e é através do orifício que a artista conecta as duas matérias. Em alguns objetos a trama de cobre jorra pelo orifício do corpo sólido e opaco da cerâmica, em outros, é a cerâmica que se deixa envolver pelos fios metálicos que cobrem sua superfície, como se fosse uma epiderme protegendo o corpo cerâmico (Figura 2 e Figura 3).

 

 

 

 

A artista joga com os opostos criando uma série de contrapontos: o corpo rígido da cerâmica e a trama flexível de crochê; o opaco que encobre e a renda de metal que permite ver através do objeto; o dentro e o fora ao colocar um corpo inserido no outro; o feminino e o masculino com as formas fálicas em cerâmica que penetram as delicadas curvas de cobre.

Essa dialética entre a cerâmica e o cobre pode ser considerada, segundo a Crítica Inferencial (Baxandall, 2006), como o Encargo que impulsionou a artista em sua nova empreitada. O projeto enviado a SECULT, ao mesmo tempo em que viabilizou sua nova pesquisa propiciou algumas Diretrizes para o novo trabalho.

Vidro e argila são matérias que se comportam de maneiras distintas. A argila, com sua capacidade plástica, permite que o artista, através de seus gestos, transforme a massa amorfa nas formas sonhadas. A queima modifica sua consistência, dureza e cor, gerando o corpo cerâmico. O vidro por sua vez, rígido e frágil, só se torna maleável quando atinge o ponto de fusão por intermédio do fogo, o que impede o contato do artista com a matéria. O contato físico com a argila, a manualidade e a gestualidade são recorrentes nos trabalhos em cerâmica realizados por Rodrigues, procedimentos inviáveis na criação das formas com o vidro. A artista, com formação na área de cerâmica, não dominava as técnicas de modelagem com o vidro. As características e necessidades impostas pelo vidro conduziram Rodrigues para novas práticas criativas. Portanto, no projeto enviado à SECULT a artista fala da importância do apoio financeiro para a construção das peças com o novo material, que seriam realizadas por um profissional especializado na técnica do sopro, mão de obra inexistente no estado.

A artista iniciou seu trabalho modelando protótipos em argila e testando seu contato com objetos de vidro disponíveis no mercado, como lâmpadas, tubos de ensaio e outros recipientes utilizados em laboratórios de química, investigou as possibilidades formais e de encaixe entre os objetos. As peças em argila de formas cilíndricas e ovóides, com orifícios redondos e hastes cilíndricas se assemelhavam com as formas criadas com o crochê. Como nos trabalhos em cerâmica e crochê, continuou usando os orifícios para conectar as duas matérias, testando possibilidades de encaixe, ora como o vidro entrando na cerâmica, ora a cerâmica é que se inseria no vidro (Figura 4).

 

 

Com cinco protótipos, cada um com um modo de encaixe diferente, Rodrigues viajou ao estado de São Paulo para definir com o técnico em vidro, as possibilidades de realização das formas pré-concebidas. Decidiu fazer primeiro as peças em cerâmica, para em seguida trabalhar juntamente com o soprador na construção dos objetos definitivos com medidas precisas em vidro.

As vinte peças delicadamente acomodadas sobre almofadas, na exposição Opacidade e Transparência, mostravam os diálogos criados por Rodrigues entre o vidro e a cerâmica, ou entre a cerâmica e o vidro, pois não existia entre as matérias uma relação hierárquica. Em algumas obras, formas fluidas de vidro brotavam pelos orifícios do corpo áspero e opaco da cerâmica, como se o seu interior estivesse todo preenchido pela matéria translúcida (Figura 5). Em outras, a artista criava um jogo de forma e contra-forma onde o vidro revelava a intima relação entre os dois materiais (Figura 6).

 

 

 

 

Envolvida com as possibilidades poéticas da relação entre as duas matérias Rodrigues se propôs a aprender as técnicas de modelagem em vidro. Em 2014 iniciou um Pós-Doutoramento na unidade de investigação VICARTE – Vidro e Cerâmica para as Artes – uma parceria da Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa e da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, Portugal. O resultado dessa investigação plástica pôde ser visto na mostra Transumância (2015) na galeria municipal de Montemor-o-Novo. Nesses trabalhos a relação entre cerâmica e vidro se modificou, os corpos dos diferentes materiais que antes se interpenetravam, agora apenas se tocavam. O objeto cerâmico passou a receber delicadamente o corpo de vidro que se aconchegava em sua superfície côncava (Figura 7). O dentro e o fora dão lugar ao côncavo e ao convexo.

 

 

O contato com os procedimentos técnicos de modelagem em vidro na VICARTE abriram novos campos de investigação plástica para Rodrigues. Mais uma vez Rodrigues explorou a materialidade e o vidro que não podia ser tocado do momento da modelagem foi delicadamente tecido com o fio cobre. Nuvem, como a artista verbalmente chamou a obra pendia do teto junto com um feixe da luz que insidia sobre a renda de argolas de vidro, fruto de um exercício das aulas de sopro (Figura 8).

 

 

Rodrigues criou também uma série de gotas em vidro onde inseriu materiais que fazem parte do seu universo criativo como: argila seca, argila líquida, fio de cobre picado, água e ar, entre outros. O rígido e o flexível aparecem no fino e frágil tubo de vidro que se prolonga até formar a gota que parece prestes a pingar. Uma nova versão do jogo entre o dentro e o fora O vidro se tornou o corpo que contém na essência as matérias que habitam o universo criativo de Rodrigues (Figura 9).

 

 

Conclusão

Do contraste entre a superfície opaca da cerâmica e a ligeira transparência da malha em crochê com fio de cobre, a artista se lançou no desafio de explorar as possibilidades de diálogo entre cerâmica e vidro. Contornando as limitações técnicas com novas práticas construtivas, Rodrigues explorou as potencialidades plásticas desse novo meio, criando diferentes relações entre os materiais. Rígido e flexível, dentro e fora, opacidade e transparência, feminino e masculino, são algumas das dicotomias que, segundo o nosso olhar, permeiam a poética de Rodrigues.

 

Referências

Baxandall, Michael (2006) Padrões de intenção: a explicação histórica dos quadros. Tradução de Vera Maria Pereira. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras,         [ Links ]

Cirillo, José (2004) Imagem: Lembrança: Comunicação e Memória no Processo de Criação. 160f. Tese de Doutorado em Comunicação e Semiótica. Universidade Católica de São Paulo.         [ Links ]

Salles, Cecilia Almeida (2001) Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: FAPESP. Annablume.         [ Links ]

Salles, Cecilia Almeida (2008) Expansão dos documentos de processo: registros audiovisuais. in: Grando, Ângela & Cirillo, José (2008) (Org.) Processo de criação e interações: a critica genética em debate nas artes performáticas e visuais. Belo Horizonte: C/arte, pp. 89-94.         [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 20 de dezembro de 2015 e aprovado a 10 de janeiro de 2016

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: tatianacampagnaro@hotmail.com (Tatiana Campagnaro Martins)

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