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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.7 no.15 Lisboa set. 2016

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

A escritura-rasura na obra de Edith Derdyk

The scripture – erasure in the work of Edith Derdyk

 

Ângela Castelo Branco Teixeira*

*Brasil, escritora, artista visual e arte educadora. Bacharelado em Fonoaudiologia na Universidade Estadual Paulista (UNESP), Mestrado em Educação / Ensino na Educação Brasileira, UNESP.

AFILIAÇÃO: Universidade Estadual Paulista 'Júlio de Mesquita Filho', Instituto de Artes, Programa de Pós-Graduação em Arte e Educação. Dr. Bento Teobaldo Ferraz, 271 Barra Funda, 01140-070, São Paulo-SP, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

O objetivo deste artigo é tecer aproximações entre a obra 'Rasuras' da artista Edith Derdyk e o ato de escrever, considerando que ambos traçam linhas no espaço, marcam superfícies, fixam gestos e produzem sentidos. Esta relação se dará à luz do conceito de escritura de Barthes que evoca um dizer-experiência, próximo do que está acontecendo com aquele que escreve, causando um estranhamento na língua, ou seja, uma "rasura".

Palavras chave: escritura, rasura, experiência, gesto.

 

ABSTRACT:

The purpose of this article is to establish links between the 'Rasuras' work of artist Edith Derdyk and the act of writing, considering that both draw lines in space, both mark surfaces, fix gestures and produce meanings. This relationship is seen under the concept of Barthes, scripture, that evokes a telling experience, close to what is happening to the one who writes, causing an estrangement in the language, or an erasure ('Rasura').

Keywords: scripture, erasure, experience, gesture

 

1. O gesto de tecer o espaço

O objetivo deste artigo é tecer aproximações entre a obra Rasuras (Figura 1) da artista paulista Edith Derdyk e o ato de escrever, considerando que ambos traçam linhas no espaço, fixam gestos, marcam superfícies e produzem sentidos.

 

 

A artista paulista Edith Derdyk formou-se em Artes Plásticas pela FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado, São Paulo / SP) em 1980 e desde então possui uma vasta produção que transita entre trabalhos gráficos, livros infantis, livros sobre desenho e seu ensino, poética da costura, o ato criador e inúmeros livros de artista. Em 1997, lançou o livro Linha de Costura, com textos poéticos sobre o ato de tecer, coser, costurar e escrever. Como artista plástica realizou exposições nacionais e internacionais em importantes galerias de arte e museus, além de desenvolver bolsas de criação artística. Atua ainda como professora e orientadora de jovens artistas. Linhas, papéis, livros, chapas de ferro e palavras são suas matérias de criação. Tensão, corte, traço, costura, sutura, rasura e transposição são seus principais gestos.

Em seu trabalho há a instauração de um lugar entre a costura, o desenho-linha e a escrita. No texto Da sutura a rasura: A costura de Edith Derdyk de Andrea Masagão a artista afirma: "eu tenho a linha costurada na minha mão" (Masagão, 2011:2). Para ela, escrever é como costurar: "Costurando, ligando, furando, recortando, costurando pensamentos e tudo mais. Para que escreve? "Escrevo para me fixar, é quase ficção. Escrevo, desenho, costuro, construo para me fixar" (Masagão, 2011:2).

O foco deste artigo será a obra Rasuras (Figura 1), exposta em 1998 no Museu de Arte Contemporânea de Niterói (Rio de Janeiro-Brasil), para o prêmio "O artista pesquisador". Nesta obra, Edith traça linhas no espaço com 60.000 metros de linha preta de algodão, presa nas paredes com 22.000 grampos, obra realizada em 13 dias de montagem.

Neste trabalho, o gesto de traçar linhas é aparente, deixa rastros e produz uma mancha de cor, condensada, materializando o gesto repetitivo de levar o fio de um ponto ao outro, fixando-o. O fio é esticado em seu limite máximo, produzindo uma tensão, que parece capturar o último instante antes do rompimento total, antes do afrouxamento fatal.

Não é possível detectar o início do gesto e nem seu ponto final, porém, este emaranhado de fios nos dá notícias de que um corpo passou por aqui, de um ponto ao outro, em uma certa cadência, labor e continuidade. Além da passagem do tempo, tomamos contato com o movimento do corpo que passou pelo tempo: a cada grampo pregado na parede, a cada gesto de puxar o fio, elevá-lo, tensioná-lo e trazê-lo à aparência nos impregnamos da certeza da existência de um ato: a costura. Ato de deixar um rastro, uma rasura no espaço.

 

1.2 Escrita: o gesto de tecer

Na produção de um texto, há o gesto de traçar um fio de sentido, a materialização de um pensamento e um desenho a partir das palavras. Encontramos na etimologia da palavra "texto", que tem sua raiz na palavra latina "texere", o significado de "tecer". Segundo o dicionário, tecer significa "tramar, entrelaçar, fazer algo através da justaposição de fios" (Cunha, 1986:759). Considerando esta acepção, o texto escrito pode ser concebido como uma composição, um tecido de significados. Elaborar um texto é tecê-lo com as palavras, tramá-lo, uni-lo, tal como num tecido os fios se entrelaçam.

Segundo Flusser(2010:25), "escrever origina-se do latim 'scribere', que significa riscar." O instrumento pontiagudo da agulha no tecido se assemelha ao instrumento cuneiforme utilizado para riscar/gravar uma superfície.

Escrever pressupõe a existência de um corpo. Para Nancy (2000:10), não se trata de "escrever acerca do corpo, mas o próprio corpo. Não a corporeidade, mas ainda o corpo." E o que isso significa? Que escrever é o gesto de tocar algo, de tocar o extremo da língua, tocar o sentido, margear a sua borda, seus limites, expandindo-o. Escrever com o corpo pressupõe deixar uma marca para fora do corpo, inscrever-se no espaço, ou seja, deixar um rastro, uma rasura.

Quanto mais de perto olhamos para um tecido, mais percebemos as suas complexas tramas. No texto, esta trama também está exposta, as palavras podem estar em diálogo ou em conflito, podem estar soltas ou apertadas, sobrepostas ou lado a lado.

O tecido que recebe a costura sempre revela o gesto de quem o bordou. Seja pelo seu avesso ou não, o desenho de cada ponto traz em si uma memória gestual das mãos costureiras. Na escrita, o texto recebe a costura da língua, o gesto de organizar, encadear e tensionar palavras e seus sentidos.

Considerando que o gesto de costurar e escrever são solidários, que relações podemos traçar entre a obra Rasuras e o ato da escrita? De que escrita estamos falando? Toda a escrita pressupõe uma rasura? O que é escrever rasurando? E o ato de traçar linhas no espaço é uma escrita? Produzir sentidos é produzir rasuras?

 

1.3. A Escritura-Rasura

Fazendo uma distinção entre a escrita e a escritura, Barthes (2007:20) afirma que "a escritura faz do saber uma festa," ou seja, se encontra em toda a parte onde as palavras têm sabor. Enquanto a escrita está mais voltada para a representação, a escritura estaria mais próxima da apresentação, dito de outro modo, a escrita seria a imersão e a legitimação de um dizer único e hegemônico, pautado numa determinada realidade e que teria, portanto, um formato/conteúdo prévio e conhecido pelos cânones do saber; por outro lado, a escritura seria a fundação de outro dizer, muitas vezes não conhecido do ponto de vista da forma/conteúdo e que, ao provocar um estranhamento na língua, abriria a possibilidade de um dizer singular, próximo do que está acontecendo com aquele que escreve.

Neste artigo interessa-nos, portanto, este conceito de escritura. Trata-se do gesto de escrever sem rumo certo, sem intenção de narrar, representar ou descrever algo previamente. Escrever, apenas. Para que as palavras antes soltas no pensamento possam compor sentidos.

A escritura se encontra, então, mais próxima de um estado bruto do dizer, um estado de gesto sem finalidade, pois quanto mais próximos estamos do acontecimento, mais próximos estamos do indizível, daquilo que pode apenas ser nomeado como uma primeira vez, pois não há referências nem discursos anteriores que o identifique.

Muitas vezes praticamos a escrita como um ato reflexivo somente, de sobrevoo em um acontecimento, com finalidade estruturante e intelectual. Recorre-se ao texto apenas depois de ter-se tombado, no momento em que se sente mais seguro e consistente, quase nunca antes ou durante o tombamento.

Já na escritura, o corpo que escreve está em busca de entrar num real possível, ou seja, não se está a relatar ou a traduzir tal como ele é ou foi, semelhante a um espelho que revela uma imagem em todos os seus detalhes, mas sim como um acontecimento singular, peculiar, que se funda na fragilidade da própria elaboração, que apenas emerge no mergulho na experiência e no retorno à superfície do suporte dessa escritura. E, para tanto, necessita-se tensionar as palavras, juntar opostos, diluir dicotomias, enfim, coloca-se em jogo o estatuto da língua porque se está a realizar o próprio pensamento.

É aqui que a rasura se instaura. Este dizer que é experiência e se dá no próprio ato de nomeá-la produz um traço originário, pois rasura o dizer anterior, inaugura uma voz, constituindo um condensamento e uma mancha de sentido. Alguém esteve ali. Há um vestígio de um gesto humano inaugural.

Este é o convite que emerge a escritura-rasura. Não se sabe o que se está a tecer, não se projeta o vivido, tampouco se antecipa sua adjetivação, não se repete, não se usa a experiência anterior como modelo, paradigma ou princípio. Na escritura-rasura há sempre um estado de relação, um entre que está a se compartilhar, nunca uma análise isolada ou descrição em que aquele que escreve está separado daquele que vive, padece, observa.

Não há julgamentos a fazer. Tal como nos afirma João Barrento em seu livro O Gênero Intranquilo, "a linguagem não fala, mas nomeia" (Barrento, 2010:70). A escritura não gera concórdia, nem promove uma unidade harmoniosa, a sua natureza confessa a discórdia, a tensão entre os opostos. A unidade de sentido, o todo, o fio condutor não está em questão, mas o seu emaranhado sim.

 

2. Conclusão

A relação entre a obra Rasura (e todo o gesto contido nela) e o ato de escrever (escritura) não se dá como uma metáfora, ou seja, como uma substituição de significados e sim como uma justaposição, ou melhor, solicita-nos considerarmos a existência de um "lugar entre" estes dois gestos: rasurar o espaço e rasurar a língua.

Ao mesmo tempo em que expõe um acontecimento, um texto-experiência possui certa disposição para o auto-sacrifício, para o abandono da afirmação e do dizer que se destina um lugar prévio, certo saber antecipado do acontecimento. Ao mesmo tempo em que expõe um gesto e uma materialidade, uma obra-experiência faz emergir o que não se fixa, o que está prestes a se desintegrar, apagando as memórias anteriores, fazendo surgir outra espacialidade no mesmo espaço, outra materialidade na mesma matéria. Um texto-experiência e uma obra-experiência tornam-se, então, mais próximos do irreconhecível, do inclassificável, do vir a ser a partir do gesto inaugural da rasura.

 

Referências

Barrento, João. (2010) O gênero intranquilo. Lisboa: Assírio Alvim. ISBN 978-972-37-1495-1.         [ Links ]

Barthes, Roland. (2007) Aula: aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio de França, pronunciada dia 7 de janeiro de 1977; tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix. ISBN: 978-85-316-0029-6.         [ Links ]

Cunha, Antônio Geraldo da (1986) Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro. ISBN 978-85-8636817-2.         [ Links ]

Flusser, Vilém.(2010) A Escrita: Há futuro para a escrita? Tradução do alemão por Murilo Jardelino da Costa. São Paulo: Anablume. ISBN 978-85-391-0053-8.         [ Links ]

Masagão, Andrea Menezes.(2011) Da sutura a rasura: A costura de Edith Derdyk. Disponível em: http://www.edithderdyk.com.br/portu/texto_rasuras_andrea%20masagao.pdf         [ Links ]

Nancy, Jean-Luc.(2000) Corpus. Lisboa: Vega. ISBN 972-699-648-1.         [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 30 de dezembro de 2015 e aprovado a 10 de janeiro de 2016

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: acastelobrancoteixeira@gmail.com (Ângela Castelo Branco Teixeira)

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