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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.7 no.15 Lisboa set. 2016

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

A "joia dispositivo" na obra de Ana Cardim

The "device jewel" in the work of Ana Cardim

 

Isabel Ribeiro de Albuquerque*

*Portugal, artista visual, pintora e joalheira. Licenciatura em Artes/Plásticas/ Pintura – Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas Artes (FBA-UL); Mestrado em Teorias de Arte (FBA-UL)

AFILIAÇÃO: Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes, Centro de Investigação de Belas Artes (CIEBA). Largo da Academia Nacional de Belas Artes, 1249-058 Lisboa, Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

O objetivo deste texto é abordar o conceito de "joia dispositivo", introduzido por Ana Cardim em 2008, na sua obra. O seu trabalho coloca-nos questões sobre os clássicos conceitos de jóia/joalharia o que leva não só à reflexão sobre a função/papel da joia, bem como sobre os limites desses mesmos conceitos.

Palavras chave: "joia dispositivo", interação, subversão, conceito, humor/ironia.

 

ABSTRACT:

The aim of this paper is to address the concept of "jewel device " introduced by Ana Cardim in 2008, in her work. Her work raises questions about the classical concepts of jewel / jewelry which leads not only to reflect on the function / role of the jewel, as well as the limits of these same concepts.

Keywords: "Device jewel", interaction, subversion, concept, mood/irony.

 

Introdução

Como se sabe as joias e adornos são tão antigos quanto o Homem. Da necessidade inicial de embelezamento e testemunho da expressão do génio criador, à medida que o pensamento humano foi evoluindo os significados e todo o jogo simbólico à volta da noção de joia foram evoluindo também.

Com o advento das ciências humanas, sobretudo as teorias da comunicação foram-se ampliando e enriquecendo os conceitos iniciais. Há hoje, toda uma atribuição de significante comunicacional àquilo que, noutros tempos, eram apenas joias vistas como peças de arte.

Ana Cardim chama-lhe "joia dispositivo". Mas podemos colocar algumas perguntas à volta deste assunto.

Não terá sido sempre a joia um dispositivo de comunicação, seja ela usada com essa consciência ou não de poder comunicativo? Como tantas outras "coisas de dimensão simbólica" também a joia funciona como espelho na nossa interação social. Usar ou não uma joia está ligado sempre a uma intenção consciente ou inconsciente do sujeito.

O facto de o adorno ser uma obra cujo lugar é, habitualmente o corpo, este na sua mobilidade permite que cada leitura seja feita em função do lugar e do contexto social para onde é transportada. Este transporte do espaço privado para o público e vice-versa confere-lhe um carácter privilegiado enquanto comunicador social. Assim a joia ou adorno ganha também um valor semiótico e comunicacional, tornando-se geradora de uma reflexão muito mais ampla e inovadora face aos cânones tradicionais.

Noutro plano da realidade e por oposição, quando a joia se encontra encerrada numa exposição, aprisionada numa vitrina, a sua possibilidade polissémica fica oculta portanto empobrecida, perdendo-se assim a dialética entre a esfera privada e a esfera pública.

Nelson Goodman, em 1968, no seu livro Languages of Art, afirma que o mesmo objeto poderia ser entendido de distintas maneiras, de acordo com as circunstâncias da sua recepção. Sugeria que a pergunta habitual "o que é arte", fosse substituída por outras duas: «quando há arte?» e «o que faz a arte?». No atual contexto do "estado das artes" da discussão contemporânea, gostaria de sugerir aqui que se tome como válido o regresso a esta hipótese para novas discussões.

Vinte anos depois, Arthur Danto – filósofo americano – afirma que na arte contemporânea tudo pode ser arte, porque "tudo vale" (Anything Goes). Para Danto, a aceitação do objeto artístico no seio da intersubjetividade pública do mundo da arte, só no domínio da convenção arte é que se poderá distinguir o que é e não é (Cardim, 2009). Também Gerard Vilar (2005), contemporâneo de Danto, na obra Las Razones del Arte, se questiona sobre a forma de pensar a arte atual. Para ele, a teoria estética terá de renovar os seus pressupostos visto que tudo é permitido na arte contemporânea, mas nem «tudo vale» o mesmo. Só o impulso criador da produção dos artistas nos pode ir guiando na semiologia do assunto.

Ana Cardim, discípula de Vilar, com um percurso feito como joalheira, pega nessas questões e imprime-lhes um novo impulso conceptual. Sem receio de polémicas vai trabalhá-las dentro da sua ideia de joalharia de autor.

 

1. Questionar os conceitos – procurar de novos sentidos

Peguemos então nalguns trabalhos de Ana Cardim.

Na obra Not For Sale a artista confronta a sociedade de consumo onde tudo tem um preço, enumerando algumas coisas que nunca poria à venda: Sonhos, Memórias, Amizade, Liberdade, Confiança, Inocência, Amor, Alma e Mente (Figura 1).

 

 

Não por acaso, certamente, esta obra traz-nos à memória um trabalho de Helena Almeida. Seria interessante questionar porque é a obra de Ana Cardim considerada uma peça do território da joalharia enquanto a de Helena Almeida Ouve-me (Ear me), de 1979 pertence ao da pintura (Figura 2), quando ambas têm como suporte a fotografia a preto e branco com a cara da autora sobre a qual qualquer delas atua. Este é um exemplo do confronto conceptual que Ana Cardim nos coloca.

 

 

Esta obra surge numa época na qual o pensamento, conhecido como o erro de Descartes "Penso, logo existo" parece ter sido substituído por "Tenho, portanto, eu existo". Paulatinamente o Ser foi-se confundindo com o Ter. Tudo parece estar à venda podendo ser monetariamente valorizado no "mercado de ações da perversão" pelo sistema capitalista de consumo atual. Com esta obra, Ana Cardim pretende alertar para o predomínio do "Império da matéria", pronto a consumir em detrimento da valorização do Ser Humano. Os valores que a autora enumera, na sua essência, proíbem qualquer tipo de valorização financeira, porque são a riqueza verdadeira da pessoa humana.

Na mesma linha, a vídeo-instalação Aesthetic Nutrition (Figura 3), propõe uma reflexão socioeconómica sobre o desequilíbrio de valores estabelecidos pelas convenções da cotação financeira que opera, em todos os domínios, no seio do capitalismo contemporâneo. Ana Cardim aponta o ouro, o material padrão mais valioso, "em correspondência quantitativamente desproporcionada com o valor do arroz, que se constitui como base alimentar de mais de metade da população mundial e que assegurou, ao longo dos séculos, a sobrevivência dos povos asiáticos" (Cardim, 2009).

 

 

Para os ocidentais, o arroz não é um alimento da sua base de alimentação e a fome não é uma realidade maioritária, logo o valor do arroz é menorizado pelo poder do valor financeiro e estético do ouro. O sentido deste trabalho é acentuado através de uma "folha de sala" que é distribuída ao público à entrada, onde a autora cria uma espécie de escala de relação entre o peso e preço dum grão de arroz em ouro, e o preço dum quilo de arroz, procurando denunciar a discrepância da importância "entre valores que nutrem ambiciosas e supérfluas necessidades de poder e ostentação, e valores que permitem suprimir as necessidades de nutrição básica e fisiológica do ser humano" (Figura 4). Acaba por salientar ainda a hipocrisia como um "valor" coletivo que não está em crise. Poder-se-á dizer que Cardim não questiona apenas o significado estético mas também o significado político dos valores.

 

 

2. O Projeto Garbage Pin

Este projeto nasceu dum conceito de apropriação e reinterpretação de um objeto do quotidiano: o caixote do lixo. Tomou forma a partir dum pin em prata, material natural e nobre, onde se adapta um saco de plástico transparente, material barato e sintético, responsável por grande parte da poluição no nosso planeta. Esta peça é complementada por um Kit de recarga para proceder à substituição dos sacos de plástico após cada utilização (Figura 5 e Figura 6).

 

 

 

 

Constituiu-se uma equipa internacional em rede trabalhando virtualmente: Portugal, Espanha, Reino Unido, Suécia, Alemanha, Luxemburgo, Áustria, Roménia, Argentina, Chile, Colômbia, E.U.A., Singapura e Japão. Participaram 90 artistas de diversas nacionalidades, idades, percursos e proveniências: para além de autores do mundo da joalharia, participaram também pintores, escultores, gentes do teatro, do cinema, do vídeo, da fotografia, da moda, do design e também performers, e escritores, incluindo um xamã.

A proposta consistia em solicitar aos artistas que usassem o pin durante 5 dias e que selecionassem ou recreassem o seu "lixo" diário e o guardassem em cinco sacos de plástico, segundo o conceito "valor VS desperdício", levando-os assim a questionarem-se sobre esta contradição na sociedade atual. Alguns abordaram o projeto pelo lado do valor e guardaram nos sacos símbolos daquilo que mais valorizavam, enquanto outros guardaram nos sacos aquilo que achavam ser o lixo da sociedade. Outros ainda utilizaram os sacos como contentores de memórias simbólicas ou histórias pessoais. Houve também propostas de sentido político como a apresentada pela joalheira Tereza Seabra – Black Money Makes Trash People – que cobriu com um banho de ouro cinco moedas de 1 euro e mandou gravar em cada uma os males que advêm do dinheiro sujo: armas, tráfico de orgãos, drogas, prostituição e tráfico de crianças.

Ted Notem, conceituado artista plástico contemporâneo, resolveu deitar fora peças de joalharia tradicional visto que já tinha sido aceite como joalheiro de Arte Moderna. Podemos referir ainda o caso de António Contador conhecido por trabalhar com a temática do invisível, do ocultado ou que ainda está por acontecer. Para este projeto Contador pediu a colaboração do pai, que escolheu algo desconhecido, guardou nos sacos de plástico e trancou com cadeados dentro de ovos Kinder Supresa e depois deitou fora as chaves. Ninguém, nem mesmo o artista sabia o que lá estava contido (Figura 7).

 

 

Este projeto contou com a produção de 440 elementos expostos em suportes de acrílico transparente, instalados em várias galerias, fazendo um percurso internacional por alguns países: Antuérpia, Berlim, Barcelona, Riga, Lisboa, Porto, Los Angeles, São Paulo, etc.

Deste trabalho, de grande complexidade e múltiplos significantes, resultou um corpus esteticamente diversificado e semiologicamente rico. A proliferação interpretativa exprimiu não só a singularidade mas ainda a subjetividade de todos. Fora criado um espaço generosamente oferecido à fruição pelos sentidos e, simultaneamente, à discussão conceptual para a qual Ana Cardim pretende contribuir. Julgo poder afirmar, sem grande receio, que Ana Cardim acaba por fazer interessantes incursões no domínio da poliestética. Ao criar um caixote do lixo aparentemente desprovido da sua função primeira – a de guardar lixo – a autora criou um dispositivo de liberdade e um articulador que levou os artistas a transformar o desperdício em arte, o lixo em luxo e, em alguns casos, a transformar o caixote do lixo em relicário.

Deve registar-se que, por outro lado, Cardim também nos propõe um projeto anti institucional uma vez que este tipo de arte não se dirige aos museus nem aos colecionadores, mas ao público em geral. Trata-se de uma tentativa de recolocar a joalharia de autor a par dos outros géneros de arte, o que a leva a procurar espaços expositivos não vinculados à joalharia e pode levar também à des-ocultação do reduto conceptual em que a joalharia tem estado confinada.

 

3. A ironia e a estética relacional

O humor tem sido uma das formas mais elevadas de pensar o mundo e Cardim utiliza não só o humor como a ironia no sentido de ironeia (inquietação) através do seu trabalho subversor. O projeto Eu sou uma Joia foi apresentado em Barcelona e Lisboa. Consistiu num simples crachat (com 3 cmde diâmetro em alumínio e uma impressão sobre papel plastificado) onde estava escrita a frase, eu sou uma joia, em vários idiomas, criando um pin que inverte o sentido normalmente atribuído aos adereços porque aqui a relevância passa do objeto para o seu portador.

Trata-se de reconhecer que o individual é precioso e tem um valor único. O valor simbólico foi transferido para o o indivíduo que usa o objeto. O adereço é esvaziado do seu próprio valor e a pessoa que o usa não adquire nenhum estatuto social por ostentar uma joia com materiais caros ou esteticamente deslumbrante. O resultado é inverso porque o sujeito é valorizado por ele próprio, sem necessidade de qualquer adereço. Também aqui é claro o humor irónico de Ana Cardim, brincando com as múltiplas transferências e contra-transferências de significados e simbólicas, gerando uma revolução permanente nos cânones tradicionais.

Para a apresentação/performance deste trabalho a artista elaborou 3 questões postas ao público que passava na rua – Você é único? Você é uma joia? Você é precioso? – oferecendo o pin.

Quando interrogado o público reage, fala com a artista e a aderência faz-se pelo sentido de humor não deixando perder de vista a simbologia do objeto.

Este tipo de trabalho vem na linha da estética relacional. É usado o termo introduzido por Nicolas Bourriaud que precisa da participação ativa de um público reflexivo. Este vê-se, assim, integrado numa ação de forma ativa. Também na linha da estética relacional salientamos outra performanceClean you mind – realizada em Barcelona, Lisboa e Berlim. A proposta artística consistia em fazer da cidade um palco, onde os habitantes participavam e interagiam, como se de atores se tratasse numa catarse coletiva. Neste projeto o espectador-participante é convidado a libertar-se dos problemas que o atormentam escrevendo-os no papel, que sai duma joia, e que a autora traz ao peito simulando um rolo de papel higiénico (Figura 8). Depois atira os testemunhos fora para uma sanita portátil. Podemos falar aqui que o humor é quase levado ao limite da corrosão.

 

 

O espaço onde se desenvolve esta performance torna-se um laboratório de ação que atua como uma expansão da vida real atribuindo ao cidadão a função de transporte, o que conduz a "cidade real" a uma "cidade simbólica" através da experiência interventiva artística (Figura 9, Figura 10, Figura 11).

 

 

 

 

 

 

Ainda no mesmo ano e com o mesmo sentido de ironia cria o Urban Help. Uma joia concebida como se fosse um medicamento e, como tal, inclui uma bula de indicações para o seu uso. É uma joia ansiolítica para uso externo, constituída por um recipiente colocado num cinto que contém círculos de plástico com bolhas. O ato de rebentá-las associado ao barulho que provocam aliviam o stress ao produzir o efeito imediato de tensão e descarga de ansiedade acumulada (Figura 12).

 

 

Refere ainda a composição e todos os efeitos secundários: a dosagem, modo de usar, a apresentação, a atenção ao uso de máquinas e à condução de veículos (Figura 13). Esta obra foi apresentada num concurso de joalharia em que ganhou o 1º Prémio de Joalharia Contemporânea "Enjoia´t 2008".

 

 

Conclusão

No seu trabalho, Ana Cardim explora todas as possibilidades do adorno. Desde a conceção, à realidade estética passando pela função de objeto de adorno corporal e desiderato social e político. Recoloca-o no centro da discussão atual, apelando a uma nova visão. Para ela, as peças geradas pelo seu processo criativo podem ser entendidas como microdispositivos de interação e intervenção socialque operam o diálogo e a crítica da opinião pública. Através de uma outra visão da realidade estética da arte, da subversão dos conceitos e materiais e, ainda, do sentido e do humor.

Dado que o campo da não arte encurtou importa repensar a joalharia à luz dos outros géneros de arte para abrir fronteiras que se descobrem, se confirmam e se diluem simultaneamente num continuum eterno.

Só assim se faz jus ao trabalho artístico, se avalia o grau de empenhamento estético, social e político. Só assim se respeita e amplia o conhecimento que o artista nos traz.

 

Referências

AAVV. (2009). Garbage Pin. Project. Catálogo da exposição. Klimt02/Publishers, ISBN 978-84-612-7947-0.         [ Links ]

Cardim, Ana (2009).Turbulências Caóticas, revista Bypass #2.         [ Links ]

Goodman, Nelson (1976). Languages of Art, Hackett Publishing Company.         [ Links ]

Vilar, Gerard (2005). Las Razones del Arte, António Machado, ISBN 9788477746478.         [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 30 de dezembro de 2015 e aprovado a 10 de janeiro de 2016

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: lab.d.arte@gmail.com (Isabel Ribeiro de Albuquerque)

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