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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.7 no.15 Lisboa set. 2016

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Grupo Acre, aqui nasceu (e assim finou?)

Grupo Acre, born here (and thus ended ?)

 

Isabel Sabino*

Portugal, artista visual. Licenciatura em Artes Plásticas/Pintura, Escola Superior de Belas Artes de Lisboa (ESBAL), Agregação no 5º grupo, Pintura, ESBAL, Agregação em Belas Artes / Pintura / Composição, Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas Artes (FBAUL).

AFILIAÇÃO: Universidade de Lisboa; Faculdade de Belas Artes; Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes (CIEBA). Largo da Academia Nacional de Belas Artes, 1249-058, Lisboa, Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Em 1977, duas obras em dois locais são decisivas na história do Grupo Acre, e expressivas da viragem gradual da sociedade portuguesa desde abril de 74. A sua análise e contextualização visam compreender raízes conceptuais e relação com o espaço para onde são pensadas, nos IV Encontros Internacionais de Arte das Caldas da Rainha, quando a violência súbita que irrompe ali assinala a suspensão da atividade do grupo. Hoje, sem lugar certo, o medo infiltra-se nos espaços públicos globais, implicando profunda reflexão sobre o destino da liberdade criativa.

Palavras chave: Grupo Acre, violência, medo, liberdade criativa.

 

ABSTRACT:

In 1977, two works in two places are decisive in the history of Grupo Acre, and they are expressive of the gradual turn of the Portuguese society since April 74. Their analysis and contextualization aim to understand conceptual roots and relation with the space they have been though to, in the IV International Art Meetings of Caldas da Rainha, when violence suddenly breaks out, marking the suspension of this group's activity. Today, without map, fear seep in global public spaces, implying deep reflection about the destiny of creative freedom.

Keywords: Grupo Acre, violence, fear, creative freedom.

 

Introdução

Dois locais estabelecem as coordenadas iniciais deste texto, remetendo para agosto de 1977, nas Caldas da Rainha, perante duas obras concebidas para os IV Encontros Internacionais de Arte pelo Grupo Acre.

Aí, na Praça D. Maria Pia, Rossio, ou Praça da República – que quase todos conhecem por Praça da Fruta dado ali acontecer, todas as manhãs desde o século XVIII, um mercado ao ar livre – colocam na parede uma lápide comemorativa do nascimento de D. Sebastião, rei de Portugal. Mais adiante, na Praça do Peixe ou Praça 5 de Outubro, local igualmente público, instalam um objeto escultórico que evoca o 16 de março de 1974.

Constituído por Clara Menéres e Lima Carvalho (após morte de Queiroz Ribeiro em dezembro de 1974), o Grupo Acre está ativo desde junho desse ano até 1977. Protagoniza uma obra que acompanha uma fase expressiva do período pós-revolucionário em Portugal e possibilita revisões com grande sentido de atualidade para artistas, criadores e investigadores sobre os processos criativos em grupo e politicamente empenhados.

Neste texto, a suspensão da atividade do grupo nas circunstâncias em que sucede torna-se pertinente para análise por coincidir com o rumo entretanto tomado pela sociedade portuguesa e o inusitado palco de violência em que se transforma o dia final dos Encontros nas Caldas.

Ali, naquele local, a destruição das obras é diversamente ruidosa, física e definitiva, mas em ambas o desfecho é comum: acabam perdidas no tempo. E hoje?

 

1. Aqui nasceu

Assim, recuemos.

Hoje, 12 de agosto de 1977, na varanda do 1º andar do prédio dos nºs 81-84, há, com anuência do advogado então proprietário, uma lápide colocada na parede sob instruções de Clara e o "Pintor", depois de estes, cá em baixo, na calçada portuguesa do tabuleiro central da praça, confirmarem a correção da posição e o efeito desejado, deixando-a coberta para ser descerrada apenas na hora combinada no último dia dos Encontros.

À semelhança das três edições anteriores dos Encontros Internacionais de Arte (Valadares, Viana do Castelo e Póvoa do Varzim), esta IV edição, agora nas Caldas da Rainha de 1 a 12 de agosto, é iniciativa da revista Artes Plásticas e do Grupo Alvarez, do Porto, com especial ação de Jaime Isidoro e do crítico Egídio Álvaro. Celebrando-se o cinquentenário da ascensão da vila a cidade, há colaboração da autarquia caldense, do Museu José Malhoa, da Casa de Cultura e dos serviços de Turismo, e patrocínio da Direção Geral da Cultura. Visa-se estabelecer momentos de diálogo no espaço público entre a população e a produção artística de diversas formas, incluindo as menos convencionais ou mais vanguardistas, fomentando a reflexão, a abertura cultural, a colocação de Portugal nos mapas da arte contemporânea.

São cerca de 120 os artistas convidados a participar: Serge Oldenburg, Orlan, o Grupo Anima de Poesia Visual (com Melo e Castro), o Grupo Puzzle, Miguel Yeco, Gillian Ayres, Artur Bual, Eurico, o Grupo Acre, etc. Ao longo dos doze dias, há exposições, pinturas realizadas ao vivo, performances, ações rituais, declamações, concertos e, no ambiente de teor festivo muito livre e convivial, somam-se atividades de perfil tradicional com outras críticas e conceptuais, às vezes mais transgressoras ou com nudez explícita, pouco habituais numa cidade pequena e conservadora.

Conforme o programa, no 12º e último dia, às 15h30, é descerrada a lápide de mármore do Grupo Acre (Figura 1) (Programa dia 12 sexta-feira, 1977).

 

 

"No 1º andar desta casa nasceu, em 20-Janeiro-1554, D. Sebastião – Rei de Portugal", lemos nas palavras gravadas na pedra e subscritas pelo grupo. No topo da praça, a ermida de S. Sebastião parece estabelecer uma estranha coincidência toponímica com o nome que a placa escondera até aí, como que tornando sólido, naquele lugar, o nevoeiro que, desde martírios passados, envolve o mito de Alcácer-Quibir. Agora, trata-se de levantar essa névoa e, segundo folheto do grupo (Grupo Acre, 1977), a intenção da intervenção passa por questionar a validade de uma história com lendas tão ou mais determinantes que factos e, sobretudo, remeter o mito para a responsabilidade individual e colectiva de todos os portugueses, já que, como afirmam nesse texto, "nasce em todas as casas portuguesas".

Mas, se o desejo é combater a passividade da espera tradicional no sebastianismo, o público, meio indiferente ou alheado da verdade histórica, pouco reage ali, não parecendo colocar dúvidas ao que a placa refere, como que sancionando a mistificação numa confirmação tácita, quase honrosa ou crente. Afinal, talvez D. Sebastião tenha mesmo nascido ali.

 

2. E assim finou?

Apesar do fundo crítico, irónico e político da mistificação histórica que propõe, a lápide do Grupo Acre é uma obra discreta e passa praticamente despercebida, comparada com a instalação-escultura que a dupla de artistas apresenta também na cidade, na Praça do Peixe, pelas 18h30.

Essa outra intervenção, homenagem duplamente apelidada "Escultura" ou "Monumento ao 16 de Março de 1974", remete para o levantamento dos soldados do Regimento de Infantaria das Caldas que assinala o prelúdio de Abril. A instalação consta de espécie de estrutura geométrica que brota do chão, leve, perceptivamente transparente, com alusões quase vegetais, constituída por varetas verticais, subtilmente ritmadas, encimadas por caracteres soltos, cruzando a informação do facto histórico com uma sua desconstrução poética:

(...) cerca de 150 hastes de ferro (de 1,80m a 2,50m), pintadas de verde escuro que simbolizavam as Forças Armadas. Além dessas, havia sete hastes que serviam de suporte a uma placa, também em ferro, com a inscrição da data: "16-3-74". Toda esta construção estava fixada em cimento sobre tijolo. A área total da escultura era de 3x3 metros. (Grupo Acre, 1977).

Entretanto, o sol sobe no dia quente. No espaço público, as obras são de qualidade desigual, umas apreciadas, outras incompreendidas ou chocantes, originando alguma polémica nas populações mais conservadoras. E, apesar do apoio da câmara e de parte da população se manter aberta às propostas, não é do agrado de todos a invasão da cidade pela arte de vanguarda, com obras marcadamente políticas e de crítica religiosa, happenings e performances com nudez integral (como as de Orlan ou a de Chantal Guyot, que cobre o corpo com mousse de chocolate), vistas como uma sucessão de acontecimentos "bizarros" de "hippies".

Mais logo, a confusão é total, colocando a cidade no mapa da violência de extrema-direita que reage contra o rumo político do país – e que, só entre maio de 75 e 76, realiza mais de sessenta ataques a instituições de esquerda ou culturais, com agressões, vandalismos, incêndios e explosões apoiadas por uma rede bombista. Exemplo disso é a destruição parcial por uma bomba, a 7 de janeiro de 1976, das vetustas instalações da Cooperativa Árvore, no Porto.

Nesse último dia, um grupo de desordeiros atravessa os diferentes locais dos Encontros, lançando provocações, vandalizando um armazém de arrumos e destruindo no seu caminho diversas obras com manifestações de violência e agressões contra os artistas, numa fúria iconoclasta que poupa uma Crucificação pintada por Artur Bual, também no espaço público. Entre gritos, insultos, pauladas, o monumento do Grupo Acre é deliberadamente desmantelado, o que impede a sua prevista permanência após o evento.

Nos dias 14 e 16, tabloides diários como o Jornal de Notícias, Comércio do Porto, Diário de Notícias, Diário de Lisboa, O Diário, etc., citam a ANOP e noticiam abundantemente os incidentes, referindo como possíveis autores arruaceiros e caceteiros estranhos à cidade. Os diferentes textos referem violência, destruição, golpes de picareta, pintores ameaçados de morte e agredidos (Mário Silva e Serge Oldenburg), manifestações inqualificáveis de violência ao longo do dia, o cerco dos artistas num restaurante sob ameaças, o incêndio da obra do Grupo Puzzle, o desmantelamento da escultura sobre o 16 de Março e remoção da lápide dos Acre. Chegam a falar até em tentativas de linchamento e ameaça de destruição do Museu Malhoa onde parte dos encontros acontece. As versões oscilam e, se um artigo diz "ser o grupo de caceteiros natural de Rio Maior e (...) o mesmo que durante o Encontro já agredira alguns artistas estrangeiros e turistas com aspeto menos conformista" (Diário de Lisboa, 1977, 16 de agosto), noutro caso referem-se "tentativas de agressão a artistas estrangeiros e turistas com aspecto hippie" (Jornal Novo, 1977, 16 de agosto), atribuindo a Eurico Gonçalves, artista presente no local, a declaração de que aquele tipo de encontros artísticos serve precisamente para a criação de "choques a nível cultural e social".

Segundo os jornais ainda, a polícia intervém e os artistas e outros participantes acabam por refugiar-se até de madrugada no Colégio Agrícola.

Mais tarde, é também o próprio Eurico que relata detalhadamente o clima e produção artística nesses encontros, com destaque final para a obra destruída do Grupo Acre, representativa da revolução, concluindo:

Volvidos três anos e meio, a reacção ainda lá está e não só não permitiu tal tipo de evocação, como perseguiu à paulada alguns artistas participantes nestes Encontros e destruiu muitos objectos e símbolos de uma intensa actividade desenvolvida durante 12 dias, evidenciando assim um total desrespeito pelo trabalho não remunerado (o sublinhado é meu) dos artistas. Desfecho lamentável que não invalida o que houve de positivo nestes encontros. (Gonçalves, 1977: 73)

Para muitos, como a vereadora da cultura da autarquia, as obras e a memória que ficam são um espólio gratificante para as gerações futuras, núcleo para um possível museu de que, então, se fala. E, se o monumento do grupo Acre acaba sem dúvida totalmente destruído na hora, o destino da lápide não é tão certo, estando por confirmar se é de facto retirada pelos arruaceiros, conforme publicam os jornais, ou prudentemente guardada por Jaime Isidoro, como também se diz.

Depois disto, o Grupo Acre suspende tacitamente as suas ações.

A decepção pelos acontecimentos decorridos nas Caldas soma-se a uma espécie de "anátema caído sobre o grupo" (Carvalho, s/d): a morte de Queiroz Ribeiro, a prisão de Clara e o ferimento de Lima na ação de ocupação de 1975. Ao mesmo tempo, estabiliza-se no país o estado de direito, o contexto social e político vai-se alterando num rumo liberal cada vez mais marcado pela retração do sentido colectivo face ao individualismo. Melhor ou pior, as pessoas adaptam-se.

Nesse ano, em que o Centro Pompidou abre em Paris e já se planeia o Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, Clara Menéres tem forte sucesso individual na Alternativa Zero com a sua Mulher-Terra-Viva (que aparece em capa na Colóquio Artes no outono). A realidade parece apontar para maior distanciamento entre a utopia da arte com o povo e uma arte sediada nos meios específicos e sofisticadamente mais preparados para compreender projetos de qualidade.

Assim, como diz Lima Carvalho, "a iniciativa do grupo esmorece". Há outras coisas a fazer e adiam-se ações em favor de outras "mais importantes e urgentes".

Afinal, "o tempo não parou" (Carvalho, s/d). Em breve, a partida de Clara para Paris com uma bolsa de estudo acentua a tendência para a separação dos dois membros do grupo, que fica suspenso no tempo, sem contudo decretar a seu fim.

 

Conclusão

E nós, então e hoje, deixamos com os Acre as Caldas da Rainha, cientes de que a cidade é pequena, o país tem dificuldade em vencer a sua posição periférica e, apesar da democracia, são recentes e pouco sólidas a abertura ao mundo, à diferença e multiplicidade cultural, até porque menos prioritárias face aos grandes problemas económicos.

Há pouco, damos conta pela internet do vídeo de Madonna, a cantar sem aviso numa outra Praça da República, quase incógnita, presença simbólica mas tímida, no local mal cicatrizado depois das feridas abertas recentemente no Charlie Hebdo e no Bataclan.

Ao caminharmos por Paris, encontramos uma cidade de perfil parcialmente apagado. Em museus como o Pompidou, há portões com detectores de metais, vistorias dos objetos pessoais e, nas ruas e no metro, as pessoas evitam parar e as esplanadas estão vazias. Noutras cidades grandes também, a violência da ameaça latente está a criar uma nova identidade para os lugares, tornando em não-lugares os mais carismáticos. De certo modo, os arruaceiros, sejam de Rio Maior ou de uma seita radical global de rosto turvo, já venceram.

Mas não é só isso. Se a lucidez não impera e a resistência tem limites, também o engenho criativo se adapta, descobrindo, se tudo correr bem, soluções melhores ou, se assim não for, apenas menos más porque, como disse alguém do Grupo Acre, o tempo não para.

Hoje, a liberdade criativa arrisca toldar-se, desviando-se no abismo das coordenadas apagadas pelo medo.

 

Referências

Programa dia 12 sexta-feira (1977) Caldas da Rainha, Quartos Encontros Internacionais de Arte em Portugal (documento fotocopiado).         [ Links ]

"Arte nas Caldas da Rainha. Encontros Internacionais visam criar choques" (1977). Jornal Novo, 16 de agosto.         [ Links ]

Carvalho, Lima (s/d) Arte e Actos Públicos do Grupo Acre. (manuscrito do autor).         [ Links ]

"Encontros de arte acabam à mocada" (1977) O Diário, 16 de agosto.         [ Links ]

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Gonçalves, Eurico (1977) "IV Encontros Internacionais das Caldas da Rainha". Colóquio Artes nº 34, Outubro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.         [ Links ]

Gonçalves, Rui Mário (1986) "De 1945 à Actualidade." In História da Arte em Portugal. Volume 13. Lisboa: Publicações Alfa.         [ Links ]

Grupo Acre (1977) Descerramento de uma lápide: montagem de uma escultura. (Documento fotocopiado, assinado Lima Carvalho).         [ Links ]

"Nas Caldas da Rainha Arruaceiros perturbaram Encontro de Arte de Vanguarda" (1977). Diário de Lisboa, 16 de agosto, p. 4.         [ Links ]

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Violência do fecho dos encontros Internacionais de Arte, Monumento ao "16 de Março" destruído a golpes de picareta, Pintores agredidos e ameaçados de morte nas Caldas da Rainha (1977). Jornal de Notícias.         [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 30 de dezembro de 2015 e aprovado a 10 de janeiro de 2016

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: isabel.sabino@fba.ul.pt (Isabel Sabino)

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