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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.7 no.15 Lisboa set. 2016

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

O social media como veículo da obra de arte total de Ana Pérez-Quiroga

Social Media as the Vehicle of Ana Pérez-Quiroga's Total Art

 

Felipe Aristimuño*

*Brasil, artista visual, curador e professor. Bacharel em Fotografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes (IA-UFRGS); licenciado em Artes Visuais pelo IA-UFRGS; Mestre em Ensino de Artes Visuais pela Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes (FBAUL).

AFILIAÇÃO: Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes. Largo da Academia Nacional de Belas Artes, 1249-058, Lisboa, Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Pensaremos neste artigo acerca da obra "Self-portrait of a female artist as part of society", da artista portuguesa Ana Pérez-Quiroga. Esta obra, que podemos definir como social media art, vem sendo construída ao longo dos últimos 4 anos no aplicativo Instagram e conta com mais de 16.000 imagens publicadas até o momento. Analisaremos o trabalho a partir do conceito de "arte total", ou Gesammtkunstwerk, adotado pela artista para determinar a sua busca poética intermediática, com a hipótese de que a arte pode se tornar total ao encontrar-se com a vida num conjunto de eventos sequenciais mediados por objetos e imagens do quotidiano. Faremos, ainda, uma breve relação com a obra "home", também de Ana Pérez-Quiroga, no sentido de perceber como o social media pode servir de veículo para uma "arte total" contemporânea em ambas as propostas da artista.

Palavras chave: social media art, obra de arte total, arte intermédia.

 

ABSTRACT:

In this article we discuss the work "Self-portrait of a female artist as part of society", by the Portuguese artist Ana Pérez-Quiroga. This work, which can be defined as social media art, has been built over the last 4 years using the Instagram app, and has over 16,000 images published so far. We analyze this artwork based on the concept of "total art", or Gesammtkunstwerk, adopted by the artist to determine her intermedia poetic search, with the assumption that art can become "total" when connecting to real life in a set of sequential events mediated by everyday objects and images. We will also briefly relate this artwork with the project "Home", also by Ana Pérez-Quiroga, to find out how social media can serve as a vehicle for a contemporary "total art" in both projects.

Keywords: social media art, total work of art, intermedia art.

 

Introdução

Refletiremos acerca da obra "Self-portrait of a female artist as part of society" (Figura 1), da artista portuguesa Ana Pérez-Quiroga. Esta obra, que podemos definir como social media art, vem sendo construída ao longo dos últimos 4 anos no aplicativo Instagram e conta com mais de 16.000 imagens publicadas até o momento.

 

 

A vida, conforme nos diz Ana Pérez-Quiroga (2015), pode ser observada a partir de "um conjunto de eventos sequenciais mediados por objetos do quotidiano". O aplicativo Instagram, espaço / dispositivo de criação e socialização mediática, mapeia esse quotidiano, registando e organizando os objetos que rodeiam a artista numa narrativa visual e sequencial (temporal). Para além da temporalidade e da materialidade dos objetos e imagens, o choque entre o íntimo e o exposto, o público e o privado, representa outra dimensão do autorretrato, principalmente pelo alcance transversal que os social media podem ter. Todos esses elementos fazem parte da estratégia da artista para unir a arte com a vida, ideia chave do conceito de "arte total" (Wagner 1849-1993).

Analisaremos o trabalho, portanto, a partir do conceito de "arte total", ou Gesammtkunstwerk, adotado pela artista para determinar a sua busca poética intermediática. Pensaremos acerca do conceito de social media art e faremos, ainda, uma breve relação com a obra "Home", também de Ana Pérez-Quiroga, no sentido de perceber como o social media pode servir de veículo para uma "arte total" contemporânea em ambas as propostas da artista.

 

1. Autorretrato em social media. O quotidiano e a narrativa transversal como estratégias da arte total

A noção de "arte total" (ou Gesammtkunstwerk) teve sua origem no pensamento romântico alemão do século XIX, desenvolvido principalmente por Richard Wagner em seus ensaios "Art and revolution" e "The Art-work of the future" (1849-1993: 69-214). Conforme Matthew Smith, a Gesamtkunstwerk surgiu com uma inextricável ligação com o desenvolvimento de novas tecnologias (mecanização) e o crescente domínio dos mass media em meados do século XIX (Smith, 2007). O autor nos diz que o conceito de arte total foi retomado e atualizado constantemente ao longo século XX e XXI, passando pelo Bauhaus, o cinema americano, a Disneylândia, o surrealismo e a transmedia storytelling contemporânea. Na ideia original de Wagner, o povo representa a força condicionante de uma obra de Arte (Wagner, 1994: 78). Neste sentido, percebemos que a Gesammtkunstwerk não busca apenas uma união ou interação dos média artísticos, mas uma expressão de um ideal social: uma unidade do corpo social na arte ou, como interpreta Ana Pérez-Quiroga, a relação entre "arte e vida".

Essa busca da relação entre "arte e vida" revela-se no caráter narrativo que a obra Self-portrait of a female artist as part of society adquire no suporte dos social media. As imagens publicadas diariamente constroem uma linha do tempo, da mais antiga à mais recente, descrevendo as relações sociais de Ana Pérez-Quiroga a partir de imagens da sua vida pessoal privada (Figura 2), bem como por representações da artista enquanto figura pública (Figura 3). Desta forma, surgem narrativas visuais interativas que permitem a participação do público, seja por meio de interações textuais na plataforma do Instagram, ou pela participação direta enquanto personagem nas imagens do autorretrato.

 

 

 

 

É justamente a capacidade de transversalidade dos social media que inspira Ana Pérez-Quiroga. Para a artista, no social media é possível atingir todo o tipo de pessoas, construindo um público muito mais heterogéneo e participativo do que em uma exposição tradicional. Ela explora, assim, relações com o público e com outras obras suas (Figura 4), buscando quebrar o papel do expectador contemplativo, desafiando simultaneamente os conceitos de arte "maior" e arte "menor".

 

 

Há, conforme percebemos, afinidades entre a transversalidade descrita por Quiroga e o conceito de transmedia storytelling (Jenkins, 2003; Giovagnoli, 2011). Max Giovagnoli define as "narrativas transmediáticas" da seguinte maneira:

Contar histórias simultaneamente em múltiplos média é como criar uma nova geografia da estória, e isso requer que o autor e o público encontrem espaços novos e interativos para compartilhar conteúdos (...). Mas o mais importante: tudo deve começar com uma estória. (Giovagnoli, 2011) (tradução nossa).

O transmedia storytelling é um conceito aplicado diretamente à comunicação massiva, ou à industria do entretenimento comercial (Giovagnoli, 2011:3). Seus objetivos aproximam-se dos ideais da "arte total", envolvendo diversos média e, principalmente, o público na criação de objetos culturais. Suas finalidades, entretanto, afastam-se dos ideais anticomerciais do romantismo (Wilson, 2007:24-6), isso porque visam o lucro de grandes produtoras de conteúdo. Percebemos que Ana Pérez-Quiroga questiona, justamente, esse caráter comercial das narrativas transmediáticas ao colocar em venda todas as imagens que compõem seu autorretrato, bem como quase todos os objetos de sua casa (projeto Home, Figura 5). Ao entrar na "loja virtual" do projeto Home, o espectador/usuário pode se perguntar: "quem pagaria 62 Euros por uma batedeira usada?". E logo, "o que há de especial nessa batedeira, então?" Ana Pérez Quiroga propõe, portanto, uma instabilidade (uma chamada de atenção) na percepção quotidiana.

 

 

2. Social media art. O consumo de objetos que nos define

Percebemos que os espaços sociais mediáticos são, com ou sem a presença de anunciantes, muito mais solidários do que econômicos, uma vez que é fácil observar, por meio de vivências em Rede, que grande parte dos conteúdos que se tornam virais em social media não possuem motivação (ou patrocínio) comercial. Ana Pérez-Quiroga explora e desafia a diversidade dos social media, buscando definir sua arte e o consumo online não pela natureza dos objetos e imagens, mas pelo caráter crítico e relacional que esses objetos e imagens podem ter com o público, propondo um novo olhar sobre o banal.

Ben Davis (2010) caracteriza a social media art como um campo de criação flutuante entre os média sociais e não sociais, entre a new media art, como o videogame, e a arte realmente colaborativa online. Para o autor, uma obra de arte em social media pode conservar as características de criação colaborada e compartilhamento das redes sociais online não-artísticas, características essas que podem figurar em maior ou menor grau em diversas obras de social media artists analisadas em seu ensaio. Aqui, arriscamos definir a social media art a partir de uma reflexão acerca da comunicação tecnológica de André Lemos (2015:40), onde o autor observa que existem diferentes usos das redes sociais, dentro e fora das lógicas do programa. Para Lemos, a tecnologia não pode ser pensada como uma substância com essência em si, mas como campo associado a uma complexidade de fatores sociais, que se transforma consoante às relações coletivas e individuais. A criação artística em social media pode surgir, então, das relações e apropriações simbólicas que o artista e seu público criam ao redor do dispositivo social-mediático, independentemente da natureza desse dispositivo.

Entendemos, então, que a possibilidade de ações diversas e não programadas em social media viabiliza a criação artística nesse domínio. Em seu autorretrato, Ana Pérez-Quiroga apropria-se do dispositivo Instagram para manifestar-se artisticamente, construindo uma narrativa de si própria para conectar-se de forma transversal com seu público, que participa da obra em diversos níveis, seja na construção ou no seu consumo.

 

3. Mapeando e revelando o quotidiano. Uma breve relação com o projeto Home

Ana Pérez-Quiroga pretende, seja com seu autorretrato em social media art ou no projeto Home, revelar narrativas produzidas pela justaposição de objetos e imagens do quotidiano. Para trazer à tona essas narrativas, a artista não pretende recortar os objetos de seus espaços utilitários, transportando-os para a galeria de arte como propôs Marcel Duchamp em seu readymade. Ela lança mão de diversos media (instalação, website, social media) para que paremos, observemos e vivenciemos os objetos e as imagens em seus habitats, uma vez que o sentido se constrói na sequencialidade e no relacionamento entre as imagens, os objetos e seu consumo.

No projeto Home há duas dimensões complementares: a casa da artista, uma instalação que pode ser explorada pelo público presencialmente, e o website do projeto, que se assemelha a uma loja online (figuras 5), com um catálogo de todos os objetos presentes na instalação (a maioria possui preço para venda). Para poder comprar objetos, entretanto, o interessado deverá ter passado ao menos duas noites na casa da artista, tendo vivenciado a relação do objeto a ser comprado com o restante da instalação.

Na obra Self-portrait of a female artist as part of society, como vimos anteriormente, a narrativa é construída por uma linha do tempo com imagens do quotidiano da artista. A identidade de Ana Pérez-Quiroga é representada pelo conjunto de imagens publicadas diariamente no Instagram e pela interação que essas geram com o público.

Percebemos, em ambas as obras, a necessidade da artista em construir um breviário que dê sentido ao conjunto de objetos e imagens que a rodeiam, quiçá para preservá-los enquanto documentos/vestígios da sua identidade. Caso ela não faça esse inventário, há a possibilidade de que esses objetos e imagens banais desapareçam, como acontece com quase todos os objetos do quotidiano (descartáveis). Para Nestor Garcia Canclini, a arte contemporânea trabalha com a iminência, com o que está por acontecer. O patrimônio, por sua vez, representa aquilo que está em perigo de se deteriorar ou de desaparecer. A prática artística não inaugura o sentido, mas o reinventa a partir de um patrimônio, do que já está feito, dito e organizado (Canclini, 2009:129). Ao construir seus breviários do quotidiano, a artista lança propostas de interpretação, crítica e, conforme percebemos, de preservação das suas narrativas. Conservar o objeto isoladamente não faz sentido. O que a artista propõe é preservar as relações entre objetos e a vida.

 

Conclusão

A partir da obra Self-portrait of a female artist as part of society, um social media art construído por Ana Pérez-Quiroga no aplicativo Instagram, pensamos neste artigo acerca do conceito de "arte total", adotado pela artista para descrever sua busca poética de unir arte e vida. Para melhor compreendermos os conceitos adotados pela artista, fizemos uma breve pesquisa bibliográfica, buscando definir arte total, social media art e transmedia storytelling.

Tendo em vista que o foco deste artigo foi a obra de Ana Pérez-Quiroga, lançamos apenas em linhas gerais a definição de social media art. Para um maior aprofundamento no tema, propomos a leitura do artigo "Social Media Art in the expanded Field", de Ben Davis (2010), onde o autor analisa diversas obras e artistas de social media nos Estados Unidos, lançando linhas para a reflexão e definição deste tipo de arte.

Ao perceber que uma dimensão importante da obra de Quiroga envolve a descrição da sua identidade pela justaposição de imagens do quotidiano, fizemos, também, uma breve relação do trabalho da artista com o conceito de transmedia storytelling. Observamos, principalmente no projeto Home, a utilização de diferentes meios (instalação, website e social media) para construir uma narrativa: a vida da artista.

A partir das reflexões acerca dos conceitos e dos modos criativos de Ana Pérez-Quiroga, concluímos que o social media serviu aos objetivos de integração "arte e vida" proposta pela artista, possibilitando que seu público vivencie sua produção no quotidiano, propiciando, simultaneamente, um espaço de criação, crítica e preservação das narrativas construídas.

 

Referências

Davis, Ben (2010) "Social Media Art in the Expanded Field. Squaring the circle of 'art and social media'." Artnet, 14 August 2010. [Consult. 2015-12-12] Disponível em http://www.artnet.com/magazineus/authors/davis.asp        [ Links ]

García Canclini, Néstor (2009-2012). A Sociedade sem relato: antropologia e estética da iminência. Trad, Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: EdiUSP. ISBN: 978-85-314-1369-8        [ Links ]

Giovagnoli, Max (2011) Transmedia Storytelling. Imagery, Shapes and Techniques. [Consult. 2015-12-12] Disponível em http://beta.upc.edu.pe/matematica/portafolios/nmynt/book-by-max-giovagnoli-transmedia-storytelling-imagery-shapes-and-techniques.pdf        [ Links ]

Jenkins, Henry (2003) Transmedia Storytelling. Moving Characters from Books to Films to Video Games Can Make Them Stronger and More Compelling, 15 January 2003. [Consult. 2015-12-12] Disponível em: http://www.technologyreview.com/news/401760/transmedia-storytelling/        [ Links ]

Pérez-Quiroga, Ana (2015). Home: breviário do Quotidiano #8 : os regimes acumulativos dos objetos e as suas determinantes. [Consult. 2015-12-12] Disponível em: http://www.anaperezquirogahome.com/         [ Links ]

Smith, Matthew Wilson (2007) The Total Work of Art: From Bayreuth to Cyberspace. New York: Taylor & Francis. ISBN: 0203963164        [ Links ]

Wagner, Richard (1993) The Art-Work of the Future, and other works: trans. and ed. W. Ashton Ellis [orig. 1849].London: Lincoln. ISBN: 0-8032-9752-1        [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 30 de dezembro de 2015 e aprovado a 10 de janeiro de 2016

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: felipegibraltar@gmail.com (Felipe Aristimuño)

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