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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.7 no.15 Lisboa set. 2016

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Ferran Adrià, a criatividade como discurso (entre gastronomia, arte e design)

Ferran Adrià, creativity as discourse (between gastronomy, art and design)

 

Suzana Isabel Malveiro Parreira*

*Portugal, designer. Licenciatura Design de Comunicação, Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes (FBAUL); Mestrado Sociologia Económica e das Organizações, Universidade de Lisboa, Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG); Doutoramento em Belas-Artes, especialidade Design de Comunicação, Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes (FBAUL).

AFILIAÇÃO: Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes (FBAUL), Largo da Academia Nacional de Belas Artes, 1249-058 Lisboa

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Qual o papel da criatividade nas dinâmicas de criação do chef catalão Ferran Adrià? Pode o seu processo criativo configurar uma visão enformada pelo design e pela metodologia projectual? Este artigo procura compreender a abordagem criativa com que Adrià inicia uma revolução na alta cozinha, cujo motor é o processo criativo (inerente à concepção, execução e consumo do seu trabalho), e que conjuga o pensamento científico com uma forte dimensão artística na criação dos pratos e no planeamento de toda a experiência.

Palavras chave: Ferran Adriá, criatividade, processo de design.

 

ABSTRACT:

What's the role of creativity in Catalan chef Ferran Adrià's creative dynamics? Can his creative process offer a vision built by design and design methods? This article tries to understand Adrià's creative approach which started a revolution in haute cuisine, fuelled by the creative process (concerning the conception, execution and consumption of his work), which combines scientific thinking with a strong artistic dimension in the creation of dishes and the whole experience's planning.

Keywords: Ferran Adriá, creativity, design process.

 

Introdução

A abordagem intelectual e filosófica de Ferran Adrià (1962-) faz uso de estratégias criativas idênticas às utilizadas pelos designers e a criatividade é colocada no centro da dinâmica produtiva do restaurante el Bulli (1961-2011), detentor de três estrelas Michelin e considerado o melhor restaurante do mundo no Top 50 da revista Restaurant (2002, 2006-2009). O desenho como meio para desenvolver o pensamento criativo é indicativo de um entendimento da criatividade como fluxo, formalizada como um exercício alargado e em constante mutação. Para o chef, o seu processo criativo serve um propósito duplo; por um lado funciona como uma ferramenta, usada para produzir e transmitir conhecimento e, por outro lado, traduz-se em resultados materiais, que sintetizam o seu olhar inovador na alta cozinha (Jouary, 2013).

Ferran Adrià forjou uma linguagem própria que deu corpo à última grande revolução no campo da gastronomia. A denominada cozinha tecno-emocional, um termo cunhado pelo jornalista gastronómico Pau Arenós, resultou de uma convergência entre conhecimentos científicos (de onde provem a sua componente 'molecular'), os campos da arte e do design (que contribuem com vocabulários e processos criativos) e a dimensão sensorial. Essa aproximação aos meios artísticos ditou a participação na exposição D Day – le design aujourd'hui em Paris, no Georges Pompidou (2005), o Lucky Strike Designer Award, um importante galardão de design atribuído pela Raymond Loewy Foundation (2006) e o convite para integrar a Documenta 12, em Kassel (2007). Para o seu processo criativo convergem contribuições de diferentes áreas disciplinares, com a criatividade a funcionar duplamente como ponto de partida (i.e., suscitando a procura de abordagens inovadoras) e de chegada. A cozinha assume-se como uma linguagem artística, trazendo a actividade quotidiana de comer para um nível intelectual e sensorial e aproximando a gastronomia da arte. Pela ponderação colocada também no pensamento científico e tecnológico, no 'saber fazer' e na interdisciplinaridade característica do seu trabalho, Ferran Adrià produz uma união proveitosa entre artesanato, arte e tecnologia, suscitando um paralelo com a metodologia projectual do design. Este artigo procura explorar o entendimento muito particular da criatividade trabalhado por Adrià e as semelhanças entre a sua abordagem metodológica e as idiossincrasias do processo criativo do design.

 

1. A criatividade como fluxo

Entende-se criatividade como a capacidade de gerar ideias novas e identificar possibilidades alternativas na resolução de problemas ou na procura de respostas para uma questão (Sternberg, 2006). Ao longo do tempo, a natureza obscura da emergência das ideias é perceptível no entendimento corrente da inspiração artística como algo divino, apanágio apenas de alguns "escolhidos" e impossível de explicar. Com o aparecimento de abordagens como a perspectiva sistémica da criatividade muda-se o foco do indivíduo criativo para um conjunto de condições necessárias ao surgimento de novas ideias, sua concretização e validação (Csikszentmihalyi, 1999). Nesta perspectiva, a criatividade é vista como um conceito alargado que resulta da interacção entre aquilo que é criado, o indivíduo criador e o contexto sociocultural em que o processo tem lugar. A criatividade implica assim a conjugação por vezes difícil de vários elementos: a vontade de fazer algo novo e a capacidade de realizá-lo, a aceitação do público e o reconhecimento de valor pelo campo específico em que a criatividade acontece.

No universo de Ferran Adrià esta noção global de todo o sistema criativo está muito presente, assim como uma ideia-chave, frequentemente repetida no seu discurso e na sua produção literária, é que para criar é necessário não copiar (Táscon, 2015). Esta ideia orientadora de todo o trabalho no el Bulli terá partido de uma frase proferida pelo chef francês Jacques Maximin numa conferência a que Adrià assistiu em 1987. Apesar disso, é sua convicção que quem cria, inevitavelmente copia, quer seja da própria natureza, de construções humanas ou de algo criado por outros. A diferença está entre incorporar contribuições técnicas ou ideias de outros no seu próprio discurso ou simplesmente reproduzir de forma automática as criações de outros sem admitir a cópia.

Na sua proposta para compreender a criatividade e o modo como esta é aplicada, Ferran Adriá utiliza uma pirâmide criativa (Figura 1) como esquemática para enunciar os diversos níveis em que a criação acontece: na base dá-se a reprodução directa das receitas (i.e. a evolução das receitas já criadas), num nível intermédio acontece uma criatividade combinatória, capaz de integrar conhecimento existente e combiná-lo em novas receitas (e.g. substituindo os ingredientes ou a técnica utilizada) e no vértice da pirâmide encontra-se a criatividade técnico-conceptual (i.e. que aplica uma técnica e um conceito novo com vista a um resultado inovador).

 

 

No topo encontra-se o nível criativo máximo, onde se desenvolvem as receitas a partir do zero, com a criação de técnicas e conceitos novos. É aqui que Ferran Adrià coloca o seu exercício criativo, considerando que no vértice da pirâmide criativa se encontram apenas um número muito reduzido de chefs. A pirâmide criativa permite estabelecer uma escala para a criatividade e estabelecer os pressupostos necessários para que cada estádio criativo tenha lugar.

Ao enunciar a sua ideia de criatividade na cozinha, Adrià explana o papel desta dimensão na criação, mas é o modo como tal se verifica, a criatividade aplicada, que determina a forma como o trabalho é executado segundo um método pré-definido. Assim, é através do processo criativo (que assenta na definição de um conjunto de passos, cumpridos metodicamente) que o chef concebe, desenvolve e implementa um resultado final e tem a garantia que este segue os princípios e valores da sua cozinha.

 

2. O processo criativo como veículo

No modelo de processo criativo desenvolvido no el Bulli (Figura 2), as ideias 'procuram-se' (através de métodos de pesquisa) e/ou 'têm-se' (por via de dinâmicas intuitivas). Após o aparecimento da ideia, é necessário testá-la e experimentar diferentes possibilidades, um passo importante que conduz à análise e reflexão, essenciais a todo o processo. Quando se copia obtém-se uma réplica enquanto que para inovar é preciso explorar e questionar cada aspecto do que o restaurante é para chegar ao conceito do que o prato deve ser (Hamilton & Todolí, 2009).

 

 

Neste modelo de processo criativo do el Bulli verifica-se um paralelo com o processo de design, já que este surge explanado em esquemas compostos por um conjunto de fases elementares: problema – análise – síntese – execução – produção – avaliação (Swann, 2002). Tal como no processo criativo do el Bulli, que começa com uma ideia que é testada, analisada, prototipada e implementada, também no processo criativo do design se verifica um encadeamento de etapas semelhante.

À semelhança da gastronomia, que considera o cliente ou consumidor, o design é uma actividade orientada para o cliente ou utilizador pelo que o resultado do seu processo criativo tem que seguir uma função ou satisfazer as expectativas criadas. A metodologia projectual põe em prática um conjunto de princípios e práticas, traduzidos em etapas (i.e. as dinâmicas e os procedimentos específicos que compõem o processo de design), procurando a melhor solução para cada situação (Cross, 1993) e configura um processo criativo muito próprio. Ao reconhecer a natureza única do processo de design tal permite que diferentes campos disciplinares possam ser explorados a partir de uma perspectiva de design, como é o caso da gastronomia (Raymond, 2009).

Os suportes e vocabulários utilizados para desenvolver as ideias e colocar em marcha o processo criativo no design passam frequentemente por meios de representação visual capazes de descrever e explicitar a ideia. Esta visualização confere à ideia uma dimensão "material" essencial para que esta possa ser comunicada a outros mas igualmente importante para o desenvolvimento e incremento do próprio processo criativo.

 

3. O desenho e a representação visual como discurso

Ferran Adrià iniciou uma revolução na cozinha, não apenas na utilização de ingredientes novos e alimentos diferentes, mas sobretudo na concepção do prato, na construção do menu e no planeamento da experiência global vivida pelo cliente. Estas dinâmicas inovadoras foram sendo produzidas através da utilização massiva de desenhos, diagramas e outras experiências, funcionando como uma forma de traduzir o vocabulário da cozinha para o domínio visual (Figura 3).

 

 

Com o intuito de optimizar o processo criativo, Adrià adopta linguagens características das disciplinas artísticas, apropriando-se dos seus códigos, meios e suportes, o que juntamente com o carácter "técnico-conceptual" do seu processo criativo e a dimensão projectual do seu trabalho tornam possível compreender uma proximidade às artes. Ao discutir as contribuições entre as áreas disciplinares artísticas e gastronómicas podem encontrar-se diversas sobreposições: 1) o processo criativo assume-se como meio para organizar e transmitir conhecimento, significado e significação (e.g. através de dinâmicas de pensamento convergente/divergente, análise/síntese conducentes a um resultado final); 2) o papel da dimensão visual permite explicar a criatividade como um processo de trabalho que sustenta o resultado final (e.g. nos desenhos utilizados pelo chef); e 3) a utilização de "alfabetos" próprios das artes (e.g. a cor e a composição) oferece um contributo para uma linguagem própria da gastronomia.

 

4. Gastronomia e design

Os processos de preparação de alimentos e a prática do design têm muitos aspectos em comum, sendo que nalguns projectos conjuntos o papel de um chef e o de um designer se confundem (Cf. Guixé, 2010; Adrià, 2010). Pode dizer-se que os processos criativos são idênticos e que a dimensão projectual que caracteriza o design e a gastronomia (e.g. a alta cozinha) explicam a aproximação entre ambos.

De igual forma, a estrutura, hierarquia e valores associados ao processo criativo de ambos apresentam similitudes, com designers e chefs a integrar procedimentos alicerçados na experimentação e a adoptar uma postura reflexiva face ao seu trabalho. A experimentação das opções possíveisestabelece uma dinâmica criativa (i.e., uma tentativa consciente de encontrar uma resposta para um problema formulado previamente) que muitas vezes obriga à criação de protótipos, tanto no design como na gastronomia. Ao longo do processo, a utilização destes protótipos permite que as ideias se tornem tangíveis e, portanto, mais fáceis de apreender por todos os intervenientes.

No seu trabalho, designers e chefs têm de considerar factores semelhantes (contexto e público são condicionantes que influenciam o resultado) e as escolhas que vão sendo feitas privilegiam sempre umas opções em detrimento de outras, o que é determinante para o restante processo. Assim, pode afirmar-se que no design e na gastronomia, os processos criativos são análogos sendo possível traçar um paralelo entre os passos sequenciais efectuados ao projectar num domínio ou noutro.

 

Conclusão

Não obstante as especificidades próprias de cada disciplina, gastronomia e design estão ambas presentes nas actividades do dia-a-dia (sendo transversais à sociedade, cultura e economia) e muitas vezes resultam na criação de algo concreto a partir da existência de um projecto. A relação estabelecida entre as dimensões tecnológica, científica e artística da cozinha de Adrià encontra na criatividade um gerador de todo o processo de criação, fornecendo um meio para a formalização de um contexto de trabalho particular. A abordagem a partir da ciência combinada com contribuições do campo da arte, com vista à concepção, execução e implementação de um resultado concreto apresenta uma configuração análoga ao design.

No el Bulli cada prato resulta de uma abordagem fortemente marcada pelos conhecimentos científicos e pela evolução tecnológica mas é igualmente resultado das emoções (i.e. dá-se especial relevância à dimensão sensorial associada aos alimentos). A criatividade assume um papel preponderante no processo ao disponibilizar um meio capaz de reunir e organizar as dimensões científica, tecnológica e artística da alta cozinha de Ferran Adrià. Coloca-se a ênfase nos processos criativos como capazes de criar um contexto de trabalho onde a ciência e arte se encontram e convergem para um resultado concreto, à semelhança do design.

 

Referências

Adrià, Ferran (2010) "Cooking and Science Go Hand in Hand". In Vicenç Altaió (Ed.) Cooking Science, Condensed Matter, Barcelona: Actar. ISBN: 978-84-92861-44-6.         [ Links ]

Cross, Nigel (1993) "A history of design methodology." In Marc J. de Vries, Nigel Cross e D. P. Grant (Eds.) Design Methodology and Relationships with Science. Dordrecht: Kluwer Academic Press. ISBN 978-94-015-8220-9. pp. 15-27.         [ Links ]

Csikszentmihalyi, Mihaly (1999) "Implications of a systems perspective for the study of creativity." In Robert J. Sternberg (Ed.) Handbook of Creativity. Cambridge, NY: Cambridge University Press. ISBN: 978-521-57604-8. pp. 313–335.         [ Links ]

Guixé, Martí (2010) Food Designing. Milão: Corraini Edizioni. ISBN: 978-88-7570-249-6.         [ Links ]

Hamilton, Richard & Todolí, Vicente (Ed.) (2009) Food for thought, thought for food. Barcelona / New York: Actar. ISBN: 978-84-96954-68-7.         [ Links ]

Jouary, Jean-Paul (com Ferran Adrià) (2013) Ferran Adria and El Bulli: The Art, the Philosophy, the Gastronomy. Londres: Andre Deutsch Ltd. ISBN: 978-0-233-00383-2.         [ Links ]

Sternberg, Robert J. (2006) "The nature of creativity." Creativity Research Journal. ISSN 1040-0419 e-ISSN 1532-6934. Vol. 18 (1): 87-98.         [ Links ]

Swann, Cal (2002) "Research and the Practice of Design." Design Issues. Vol. 18, No. 1 (Winter 2002). ISSN 0747-9360 e-ISSN 1531-4790. pp. 49-61.         [ Links ]

Táscon, Mario (2015) "9 secretos creativos de Ferran Adrià." Ferran Adrià, Auditando el proceso creativo. Espanha: Fundación Telefónica. [Consult. 2015-12-29] Disponível em URL: http://ferranadria.fundaciontelefonica.com/9-secretos-creativos-de-ferran-adria-que-puedes-aplicar-en-tu-empresa/        [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 30 de dezembro de 2015 e aprovado a 10 de janeiro de 2016

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: suzanaaparreira@gmail.com (Suzana Parreira)

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