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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.7 no.15 Lisboa set. 2016

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Rui Macedo. Da sugestão e do seu poder imagético

Rui Macedo: on suggestion and its imagistic power

 

Margarida Prieto*

*Par académico da Estúdio. Artista visual e coordenadora da licenciatura em Artes Plásticas da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. Membro do CIEBA.

AFILIAÇÃO: Portugal, Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes, Centro de Investigação e Estudos de Belas-Artes.1249-058 Lisboa, Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

A instalação de pinturas e textos que compõem a obra Gabinete de Curiosidades é uma proposta do artista Rui Macedo que actualiza o exercício de hipotipose, ou seja, que permite estimular a formação de imagens mentais (e o imaginário) por via da sugestão literária, plasmando estas imagens nas de uma pintura que enquadra o vazio.

Palavra-chave: Rui Macedo, hipotipose, instalação, pintura, site-specific

 

ABSTRACT:

The installation of paintings and texts intituled Cabinet of Curiosities is a proposal by the artist Rui Macedo updating hypotyposis as an exercise. The text stimulates the formation of mental images (and imaginary) through literary suggestion, affecting these images into the apparent emptiness of paintings.

Keywords: Rui Macedo, hypotyposis, installation, painting, site-specific

 

Introdução

Rui Macedo é um artista português que nasceu em Évora em 1975. O seu percurso de pintor tem vindo a focar-se na especificidade das montagens do objecto pictórico em contextos arquitectónicos diversos questionando o conceito site-specific de um modo absolutamente pertinente. Este artigo debruça-se sobre a sua mais recente exposição em território nacional: um Gabinete de Curiosidades para o Centro de Artes e Cultura de Ponte de Sor que se constitui como uma instalação de pintura composta por 47 telas a óleo e acrílico e 4 textos escritos em Garamond que ocupam uma sala com 20 metros de comprimento, 8 metros de largura e 4 metros de altura. Patente ao público entre 9 de Janeiro e 27 de Fevereiro de 2016.

 

1. Gabinete de Curiosidades

Gabinete de Curiosidades é uma instalação pictórica que ocupa integralmente uma das salas de exposições temporárias do CAC-Centro de Artes e Cultura de Ponte de Sor. O modo como as telas e os textos se colocam no espaço expositivo é fundamental para a constituição de uma totalidade que põe em operação os conceitos próprios de uma exposição pictórica onde todas as obras são determinadas pelo lugar que ocupam dentro do espaço de exposição.

Realizadas especificamente para este evento e para este lugar, as pinturas demonstram, através do seu instalar crítico e pela exploração site-specific da morfologia arquitectónica do Centro de Artes e Cultura, o rigor do trabalho de Rui Macedo.

As 47 pinturas estão organizadas por quatro linhas horizontais que percorrem o perímetro da sala (as três paredes disponíveis). 70 cm separam, em altura, cada linha de pinturas, propondo uma equidistância horizontal. A alimentar esta distinção, cada linha ostenta pinturas similares, separando-se das restantes por afinidade e diferença (Figura 1).

 

 

A linha mais alta mostra sete pinturas, cada uma com 40 x 150 cm, posicionadas rente ao tecto para iludir que a representação de um corte horizontal na tela e na composição é uma interrupção provocada pela arquitectura. No final desta linha, no lugar de uma oitava e última pintura, e a ocupar exactamente a mesma área, está colocado o seguinte texto em vinil preto autocolante:

(...) a escala desta série de mapas permite um rigor na representação como nunca antes foi possível. O detalhe, o pormenor, a minúcia, a precisão e o modo singular do desenho, na expressão, na capacidade de verosimilhança e na adequação caracterizam estes mapas destacando-os de outros da mesma época e elevando a arte da cartografia a um nível excepcional. (Macedo, 2016, Gabinete de Curiosidades)

A segunda linha a contar de cima é composta por treze pinturas, cada uma com 90 x 90 cm. A sua particularidade são as shaped canvas que se ajustam a duas portas e que tomam a forma dos cantos, adossando-se à parede. Ao fundo da sala, a ocupar uma posição central, surge o seguinte texto, igualmente em vinil preto autocolante:

Datadas do final do séc. XIX foram pintadas pelo mesmo artista que retratou Dorian Grey. Está comprovado que as obras deste pintor têm características singulares, nomeadamente a vivacidade e a (a)temporalidade. Neste caso, os modelos para cada uma destas treze pinturas são treze pássaros voadores. É preciso chamá-los com assobios específicos para que voem até ao centro da tela e se tornem visíveis ao nosso olhar.

A terceira linha é constituída por vinte pinturas, com 50 x 40 cm cada. Colocada exactamente ao nível do olhar do observador/visitante, este alinhamento inicia-se com o seguinte texto:

Estas vinte pinturas estão hoje integralmente reunidas depois de terem sido alienadas pelos herdeiros do primeiro proprietário. O trabalho de pesquisa e aquisição comprova-se pelo documento visível em cada uma delas. Datadas do período helénico, foram executadas por um mestre pintor anónimo cuja verosimilhança das representações dos cachos de uva iludiam os pássaros. Contudo, e à semelhança de outras obras de artistas engenhosos, a luz e outros elementos da natureza absorveram uns pigmentos enquanto outros emigraram, deixando a possibilidade da sua contemplação em aberto ou, como opção, o uso imprescindível de um mecanismo ocular ainda por inventar.

A quarta linha de pinturas, rente ao rodapé, obedece a uma lógica de corte e incompletude semelhante à da primeira linha, mas com referência ao chão. Constitui-se por oito pinturas com 25 x 220 cm, e o seguinte texto ocupa uma posição intermédia, sugerindo que se trata de um ciclo de pinturas:

Cerca de 1327, ano em que Francesco Petrarca descreve a experiência da sua subida ao topo do Mont Ventoux, a representação paisagística pertencia aos longes e, inserida na lógica forma/fundo, estava destinada ao último plano da composição pictórica.
Este alinhamento de nove paisagens pintadas no estilo flamengo é único nas suas características: tratam-se de representações onde a vegetação luxuriante toma integralmente o primeiro plano elidindo outros temas e (...)

A peculiaridade dos dois textos integrados nos alinhamentos mais acima e mais abaixo é a sua incompletude por via de duas estratégias: 1) no modo agramatical do texto que inicia e termina cada texto, sugerindo que se trata de um fragmento; 2) no corte parcial de linha de texto superior e inferior, respectivamente, num acordo com a arquitectura (Figura 2, Figura 3).

 

 

 

 

Este corte das letras nas linhas de texto (junto ao chão e rente ao tecto) é também conivente com a representação das pinturas de cada uma das séries e serve, por isso, a mesma ilusão que é a de uma certa incompletude, fragmentação referente a um corte arquitectónico. Parece que o espaço (em altura) não é suficiente para comportar quer as pinturas quer os textos no seu formato integral e, por isso, justificando o seu corte; ambos (a)parecem incompletos para caber dentro dele.

O título, Gabinete de Curiosidades, remete paraa estratégia de acumulação de pinturas que está patente na montagem, se bem que a sua organização no espaço obedeça a critérios de simetria, em vez de encaixe, o que sublinha a instalação como um todo.

Excepto a linha junto ao chão onde as pinturas ostentam paisagens, a representação em todas as restantes telas resume-se a molduras, passe-partout, fios e pregos que prendem os suportes à parede, sombras próprias e projectadas, papéis colados e suspensos com pedaços de fita-cola (Figura 4). Nestas representações pictóricas o artista recorre a técnicas que garantem uma sensação de verosimilhança no observador – uma sensação que é inquietante, justamente pelo vazio proposto por uma moldura que, aparentemente, nada enquadra. Contudo, a natureza descritiva dos textos concebidos por Rui Macedo permite sugestionar a imaginação do visitante e colocar a imagem pictórica como potência.

 

 

2. Da sugestão e do seu poder imagético.

Toda a argúcia [...] está aqui em entender a imagem como fundadora do olhar, na força presentificadora que ela possui. É portanto à visibilidade que a imagem faz apelo, que não se confunde com o visto mas com a sua possibilidade e, nessa medida, toca o invisível como potência, como virtualidade da imagem. (Marin, 1993:11)

Todos os textos parecem ocupar o lugar de uma pintura, dentro do alinhamento a que respeitam, pois mantêm exactamente as mesmas dimensões em altura e em comprimento. Aquilo a que fazem referência, mesmo os que estão formal e literalmente incompletos, enquadra-se nos temas que constituíram os Cabinet d'Amateur primitivos: elementos do reino mineral, animal e vegetal.

Numa referência ao reino mineral, estão os mapas. O registo cartográfico do terra e dos mares constitui uma actividade significativa no tempo das Descobertas, e no século XVI estes desenhos incorporam colecções importantes quer pela sua qualidade plástica e científica quer pela sua utilidade. A linha de pinturas que se refere a estes documentos (rente ao tecto) distingue-se também pela representação de um passe-partout que sublinha o papel como suporte para o desenho cartográfico (em vez da tela). O detalhe, o pormenor, a minúcia, a precisão e o modo singular do desenho são adjectivos que estimulam o imaginário em direcção a imagens extraordinárias e deslumbrantes.

Do reino animal vem a sugestão de "animais voadores" aos quais se assobia. Rui Macedo opta por pássaros em vez de insectos ou dragões, e propõe um exercício performativo: assobiar para ver mais. Deste modo, põe em articulação os ouvidos e os olhos, o audível e o visível, o som e a imagem, a música e a pintura. É a melodia do assobio que atrai até ao centro da tela e, neste movimento, pode-se imaginar o voo de cada pássaro.

Do reino vegetal podem-se imaginar as paisagens pintadas no estilo flamengo ampliando a sugestão de céu, de nuvem e de árvore, como se cada pintura fosse, simultaneamente, o registo directo e a (nossa) memória da experiência de uma viagem pela Natureza.

Ainda dentro deste reino, está o conjunto de representações de espécies distintas de uvas, tão semelhantes à fruta (ao modelo) que enganam as aves. Esta verosimilhança é impossível de aferir pois, numa ironia com a ciência aplicada à arte, Rui Macedo informa-nos da migração dos pigmentos, da volatilidade das matérias e coloca-nos perante o invisível da pintura, literalmente. Mas a ironia vai mais longe e lança o desafio à ciência: criar um dispositivo que permita ver o invisível das coisas.

Efectivamente, estes textos potenciam o imaginário, e é através dele que um exercício de hipotipose acontece, garantindo ao visitante uma imensa satisfação ao "ver" pintura.

Hypotyposis paints things in such a lively and energetic way that it places them before our eyes, in a sense, and turns a narrative or description into an image, a painting, or even a living scene. (Fontanier, 1968: 390)

Também a composição da instalação, organizada por simetrias e espelhamentos garante uma unidade entre pinturas e textos e uma harmonia visual. A horizontalidade destes alinhamentos, que é obediente a um regime de equidistâncias, sugere, num exercício de livre associação, um ritmo e remete sobretudo para a escrita musical: assumindo a parede como uma gigante folha de papel pontuada por quatro sequências, ora lentas, ora rápidas, as figuras rítmicas podem fazer-se corresponder às áreas de cada pinturas e as (equi)distâncias podem assumir as pausas, os silêncios ou, ainda, ecos por afinidade ao vazio, ao espaço entre pinturas (Figura 5).

 

 

Conclusão

Gabinete de Curiosidades é uma instalação pictórica peculiar pois recorre ao exercício da hipotipose para garantir a imagem pictórica como potência, estimulando o imaginário e as imagens mentais através da sugestão literária e da alusão a um vazio pictórico enquadrado por molduras de época que sustentam as imagens da percepção nesta exposição. É justamente este vazio que permite, aos observadores, plasmar as imagens mentais criadas pela imaginação estimulada por histórias de pássaros, mapas e paisagens. Os textos são tão eficazes quanto mais esvaziadas nos (a)parecem as pinturas: o seu espaço vazio é preenchido pelo imaginário e pela ficção.

A natureza múltipla da imagem como virtus – no sentido de uma força, de uma potência – convoca tanto o visível presencial (real) na concretude de uma presença ou de uma representação, como o invisível (mas não menos real) das imagens mentais. (Prieto, 2012:27)

O objectivo deste Gabinetes de Curiosidades é surpreender o horizonte de expectativa do visitante, surpresa alimentada pela representação pictórica que ilude a percepção visual, dando a ver o que escapa ao olhar, o que é da ordem do (in)visível, numa aliança profunda das imagens mentais com as da percepção.

 

Referências

Fontanier, Pierre (1968), Les Figures du discours, Paris, Flammarion, p. 390.         [ Links ]

Marin, Louis, (2001) On representation. Trad. inglesa Catherine Porter. California: Stanford University Press/Stanford Califórnia.         [ Links ]

Marin, Louis (1993) Des pouvoirs de l'image: Gloses. Paris: Éditions du Seuil, col. L'ordre philosophique.         [ Links ]

Prieto, Margarida (2013), A Pintura que retem a palavra. [Consult. 2015-12-30] http://repositorio.ul.pt/handle/10451/8627        [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 30 de dezembro de 2015 e aprovado a 10 de janeiro de 2016

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: emam.margaridaprieto@gmail.com (Margarida Prieto)

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