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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.7 no.14 Lisboa jun. 2016

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Barrão e Bordallo: um diálogo

Barrão and Bordallo: a dialogue

 

Alfredo Nicolaiewsky*

*Brasil, artista visual e professor. Bacharel em Arquitetura, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestrado em Artes Visuais – Poéticas Visuais (UFRGS). Doutorado em Artes Visuais – Poéticas Visuais (UFRGS)

AFILIAÇÃO: Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes, Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes (CIEBA). Largo da Academia Nacional de Belas Artes, 1249-058 Lisboa, Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Esta comunicação é sobre a obra chamada Terrina Noé, feita por Barrão, artista plástico contemporâneo brasileiro, a partir das peças criadas por Rafael Bordallo Pinheiro, caricaturista e ceramista português do final do século XIX. Esta peça foi criada no âmbito do projeto 20 Bordalianos do Brasil, que partiu da premissa de articular a herança do grande artista com seus admiradores contemporâneos. A peça é analisada no contexto da obra de Barrão e das suas estratégias de instauração

Palavras chave: Barrão, Rafael Bordallo Pinheiro, instauração.

 

ABSTRACT:

This communication is about the work entitled Terrina Noé, made by Barrão, Brazilian contemporary artist, from pieces created by Rafael Bordallo Pinheiro, Portuguese cartoonist and ceramist of the late nineteenth century. This piece was created under the project 20 Bordalianos of Brazil, which started from the premise articulate the legacy of the great artist with his contemporary admirers. The piece is analyzed in the context of Barrão works and his creation strategies.

Keywords: Barrão, Rafael Bordallo Pinheiro, creation strategies.

 

Esta comunicação é sobre uma obra que une dois artistas de épocas diferentes, que nunca se conheceram, mas que resultou em um trabalho que conserva as características de ambos. Refiro-me a Terrina Noé, obra do artista contemporâneo brasileiro Barrão, feita a partir dos moldes de Rafael Bordallo Pinheiro, artista português da segunda metade do século XIX, dentro do projeto 20 Bordalianos do Brasil, organizada pela Fabrica de Faianças das Caldas da Rainha, em Portugal.

Barrão é o nome artístico de Jorge Velloso Borges Leão Teixeira (n. Rio de Janeiro-RJ, 1959). Começou sua trajetória artística no final dos anos 70, atuando em diversas frentes. Fez esculturas reunindo e fazendo montagens com equipamentos eletro-eletrônicos domésticos descartados, como televisores, fogões, refrigeradores, interferindo sobre eles e, ao mesmo tempo, fez performances, participou de vídeos e atuou em artes gráficas. Sempre ligado a trabalhos coletivos formou, em 1983, o grupo Seis Mãos (com Ricardo Basbaum e Alexandre Dacosta) e, em 1995, criou o grupo musical-performático Chelpa Ferro (com Luiz Zerbini e Sergio Mekler), que continua atuante até os dias de hoje. A partir de 2000, começou a utilizar novos materiais em suas esculturas-objetos: em vez dos equipamentos eletrônicos, passou a utilizar objetos cerâmicos: bibelôs, imagens votivas, esculturas representando animais (cachorros, elefantes), objetos decorativos ou utilitários (xícaras, bules, canecas), todos marcados por um gosto popular e, na maior parte das vezes kitsch. Esta produção continua até a atualidade e é dentro deste espírito que foi criada a Terrina Noé.

O nosso segundo artista, envolvido involuntariamente neste projeto, é Rafael Augusto Prostes Bordallo Pinheiro (n. Lisboa, Portugal, 1846-1905). É um nome reconhecido como caricaturista político e social e principalmente como ceramista, mas também foi desenhista, ilustrador, decorador, jornalista e professor. Teve grande destaque atuando no campo da caricatura em Portugal, com seu estilo muito particular, tendo criado o personagem Zé Povinho, que se tornou, em sua época, um símbolo do povo português. A partir de 1860 começa a estudar artes, primeiro no Conservatório e a seguir na Academia de Belas Artes de Lisboa. A partir de 1885 começa a trabalhar com cerâmica, dirigindo então a Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha, na cidade do mesmo nome.

Em Caldas da Rainha, além da produção de utilitários – pratos, jarras, travessas –, dedicou-se a criar peças decorativas e esculturas, estas representando os personagens que havia criado em suas caricaturas, mas também criando muitas representações de animais, como sapos, gatos, lagartos, peixes entre outros. Apesar da originalidade das peças, ou talvez por isso mesmo, a fabrica acabou fechando. Felizmente, seu trabalho foi preservado e um imenso número de suas formas também. Há alguns anos a importante Fábrica da Vista Alegre (criada no século XIX), adquiriu este material e recomeçou a produzir as peças de Bordallo Pinheiro, promovendo assim uma verdadeira "redescoberta" deste importante artista.

Em sua página institucional (www.bordallianosdobrasil.com) o projeto 20 Bordallianos do Brasil informa que:

Honrando o espírito do fundador, tem sido uma prioridade da empresa a aposta em projetos criativos com artistas plásticos e designers contemporâneos. As obras dos criadores que integram o projeto 20 Bordallianos do Brasil estarão sempre associadas à história da sua concepção, ao sentido que mobilizou cada artista a efetuar uma residência artística na Fábrica Bordallo Pinheiro, ao encontro com a obra do Mestre, ao discurso interno do próprio artista e ao diálogo com os materiais cerâmicos. Do sincronismo de idéias e profunda admiração pela obra de Rafael Bordallo Pinheiro nasceram estas obras. Com as suas matrizes naturalistas como suporte, vinte artistas brasileiros trabalham questões conceituais e formais da contemporaneidade, com uma poética própria. (BB: Bordallianos do Brasil, s/d).

A Terrina Noé (Figura 1) foi concebida a partir de modelos de cerâmicas utilitárias e de partes de objetos decorativos, os seis animais (galo, rã, papagaio, carneiro, gato e porca), todas peças que já existiam e que originalmente haviam sido criadas por Bordallo. Acredito que alguns dos objetos podem ser identificados a partir do catálogo da fábrica: aparentemente a base é formada pela sobreposição de uma terrina e de uma saladeira, ambas da série dos utilitários do modelo "couve". O outro utilitário utilizado é a porca, que penso ser um dos modelos de paliteiro. As cabeças de carneiro e de gato são objetos de parede, enquanto a rã, me parece ser a "rã grande deitada", um objeto de mesa. Quanto ao papagaio e o galo, são peças que não constam atualmente no catálogo on-line da fábrica (http://pt.bordallopinheiro.com), mas podem ser encontrados em alguns pontos comerciais.

 

 

Dentre os diversos aspectos que podem ser comentados sobre esta peça vou me deter em apenas dois: como este trabalho se aproxima, formal e conceitualmente, do restante da produção de Barrão e, em oposição, como tecnicamente ele se distancia desta mesma produção.

A partir de 2000, quando Barrão começa a trabalhar com os objetos cerâmicos, pode-se dizer que o seu processo de criação das peças inicia quando ele parte em busca destes. Esta busca é feita em feiras e lojas populares, mas também em antiquários e ferros-velho. O artista declarou, em entrevista feita para o recente livro sobre sua obra (Mello & Mello, 2015:107-49), que muitas vezes sai apenas olhando até que algo lhe chame a atenção. Em outras ocasiões, ele sai à procura de algo específico, pois já tem a idéia da peça que quer executar. Assim ele vai formando um grande "acervo" de peças a serem utilizadas. Estes objetos são classificados em seu ateliê seguindo regras muito particulares, estabelecidas pelo artista: podem ser organizados por tamanho, por cor ou por tipologia (xícaras, cachorros, vasos, Budas, etc.). (Figura 2)

 

 

No início de seus trabalhos com estes objetos cerâmicos, ele quebrava, com martelo, aquelas que utilizaria, para obter os fragmentos que após seriam remontados para construir suas esculturas. Posteriormente ele adquiriu uma máquina para fazer os cortes de forma mais precisa, ocasionando menos perda de material e tendo um controle maior sobre os resultados. Estas partes remontadas, unindo pedaços de diversas origens, resultam nas suas esculturas. A obra de Barrão, segundo Felipe Scovino, é um mundo híbrido que transita entre a tecnologia e a artesania, e ele "como um inventor, [...] artesanalmente desconstrói e rearranja novas peças e componentes, construindo um objeto híbrido, que torna visível seu interesse em reconfigurar o que está diante de nós, mas que consideramos como excesso ou observamos com desdém [...]." (Scovino apud Mello & Mello, 2015: 25)

Há dois aspectos técnicos bastante importantes e que são significativamente diferentes na peça ora em estudo. Nos seus trabalhos usuais Barrão constrói uma estrutura de ferro interna às peças. Estas estruturas permanecem invisíveis, mas são fundamentais para dar-lhes a resistência necessária. Outro aspecto é que as emendas dos diversos pedaços são deixadas aparentes. A cola, que une as diversas partes, fica perfeitamente visível. Este aspecto é intencional do artista, pois entende que deve deixar visível ao espectador, como a peça foi articulada, construída (Figura 3 e Figura 4).

 

 

 

 

No trabalho em estudo o processo de criação precisou ser alterado. Os elementos que fariam parte da obra deveriam ser escolhidos dentro de um conjunto fechado, apesar de ser muito grande, isto é, as obras de Bordallo que a fabrica tem as fôrmas. Em segundo lugar ele tinha que produzir uma peça que fosse reproduzível, já que seria feita uma tiragem de 250 exemplares, todos evidentemente iguais. O artista falou sobre este processo na entrevista, acima citada:

Eu nunca tinha feito um trabalho com barro mole, antes de ser cozido. Primeiro eu escolhi as peças da produção da fábrica, do universo do Bordallo e depois, com elas ainda frescas, com o barro mole, comecei a montar. Só que vários trabalhos que eu faço têm uma questão da estrutura, de criar um desequilíbrio, de fragilidade: como uma parte pequena sustenta um volume tão grande? Como aquilo pode estar pendurado por uma peça tão frágil? Não podia usar as estruturas internas para reforçar as peças. As minhas primeiras tentativas não deram muito certo, mas depois foi muito produtivo; quando eu entendi como trabalhar com o barro ainda mole, o trabalho fluiu. (Barrão apud Mello & Mello, 2015:121)

E complementa dizendo que:

Fui sentindo o esquema, às vezes tem que escorar para a peça ir secando antes de ir ao forno. Tinha o problema do molde também, porque a peça ia ser produzida industrialmente. Mas nessa temporada trabalhamos bastante, todos os dias, fiz seis trabalhos. Foi ótimo, no final você engrena no trabalho e vai acontecendo. Tive uma experiência com a cor, porque eles iam ser pintados depois, aí comecei a pensar na possibilidade de pintar a escultura. (Barrão apud Mello & Mello, 2015:123)

Temos assim como resultado esta magnífica obra onde reconhecemos de imediato o trabalho de Bordallo, em seus elementos realistas, de colorido intenso e muitas vezes com humor, mas também reconhecemos a obra de Barrão, na qual o humor é parte relevante.

Sobre este aspecto, temos o comentário de Monica Ramirez Montagut, curadora e diretora da Newcomb Art Museum da Universidade de Tulane, em New Orleans (USA), que escreve:

As justaposições não são tão aleatórias ou irracionais: elas são extremamente acessíveis. E são tais as semelhanças, qualidades, atributos, significados, símbolos e metáforas que as conectam que conseguimos começar a entendê-las e a nos identificar; e algumas dessas identificações são surpreendentes, inesperadas, excêntricas e geralmente provocam risos. (Montagut apud Mello & Mello, 2015: 59)

Neste caso, específicamente, poderíamos ter um trabalho desagradável: um prato cheio de cabeças de animais. Porém o resultado é, ao contrário, algo divertido, em parte pelo colorido vibrante, em parte pelo desrespeito com a escala, entre os objetos e, finalmente, fechando com chave de ouro, com o título – Terrina Nóe, que nos abre para outras leituras e percepções do trabalho.

 

Referências:

BB: Bordallianos do Brasil (s/d) [Consult. 2015-12-28] Disponível em: http://www.bordallianosdobrasil.com/?l=PT        [ Links ]

Mello, Luiza & Mello, Marisa (Org.) (2015) Arte Bra: Barrão. 1. ed. Rio de Janeiro: Automática,. ISBN 978-85-64919-15-0 [Consult. 2015-12-28] Disponível em: http://automatica.art.br/livros/artebra_barrao.pdf        [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 30 de dezembro de 2015 e aprovado a 10 de janeiro de 2016

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: alfredo.nicolaiewsky@gmail.com (Alfredo Nicolaiewsky)

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