SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.7 número14La importancia del lugar en la obra de Carlos Rodríguez-MéndezÁlvaro Lapa: A imagem e o compromisso com a literatura índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.7 no.14 Lisboa jun. 2016

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

A pintura reflexiva de Gil Heitor Cortesão

The reflective painting of Gil Heitor Cortesão

 

Carlos Correia*

*Portugal, artista visual e estudante de doutoramento. Licenciatura em Artes Plásticas, Escola Superior de Arte e Design, Caldas da Rainha (ESAD, CR). Mestrado em Artes Visuais/Intermédia, Universidade de Évora, (UE).

AFILIAÇÃO: Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes, Centro de Investigação e Estudo em Belas Artes Largo da Academia Nacional de Belas Artes 1249-058 Lisboa Portugal

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

O presente artigo pretende dar a conhecer a obra do pintor português Gil Heitor Cortesão, contextualizando-a não apenas no campo alargado da arte contemporânea, mas também no terreno específico da pintura actual. Ao debruçarmo-nos sobre o trabalho deste artista, pretendemos igualmente tecer um comentário à posição (tantas vezes polémica) ocupada pela pintura na arte dos nossos dias.

Palavras chave: pintura, reflexo, especificidade, prática

 

ABSTRACT:

This article aims to present the work of Portuguese painter Gil Heitor Cortesão, contextualizing it not only in the broad field of contemporary art, but also in the specific field of contemporary painting. By reflecting on the work of this artist, we also intend to make a comment to the position (often controversial) occupied by painting in the art of our day.

Keywords: painting, reflex, specificity, practice.

 

Introdução

O presente artigo apresenta-se com um propósito duplo: pretendemos não só dar a conhecer a obra de Gil Heitor Cortesão, mas também promover uma reflexão sobre a ideia da especificidade da pintura, tentando responder à questão: a pintura é não mais do que um dos ramos da arte contemporânea ou tem a si afecta uma especificidade que a demarca das demais manifestações artísticas?

A escolha deste artista prende-se essencialmente com dois aspectos: por um lado, a admiração que o seu trabalho nos tem vindo a merecer desde há largos anos a esta parte; por outro lado, o facto do trabalho de Gil Heitor Cortesão consistir numa investigação pictórica que se serve de uma técnica muito particular (a tinta a óleo sobre vidro ou plexiglass, Figura 1), parece-nos habilitar exemplarmente esta obra enquanto ponto de partida para a já referida reflexão acerca da especificidade da pintura contemporânea.

 

 

O pintor

Gil Heitor Cortesão nasceu em Lisboa, em 1967. Em 1990 concluiu o curso de Pintura na Faculdade de Belas Artes de Lisboa e entre 1991-92 frequentou a Academia Alberrtina di Belle Arti de Turim.

De entre as várias exposições individuais realizadas até à data, podemos destacar as que realizou na Galeria Módulo, em 1988 e 1990, com desenhos de pequeno formato, e a de 1992, na Galeria Módulo do Porto. Nesta última, o pintor apresentou caixas com vidros, textos e acetatos, num movimento que já então deixava antever uma relação muito especial com as superfícies e as transparências na pintura.

Em 1996, na exposição intitulada Rosas Azuis que teve lugar no Museu Botânico, Gil Heitor Cortesão deixou clara a sua tão particular escolha de matérias e técnica pictórica: "de forma mais ou menos cega, na face oposta à que é mostrada ao público" (Nazaré & Molder, 2004:41).

Dois anos mais tarde apresentou a exposição Dançam Lebres na Selva, na Galeria da Restauração, Porto. Com esta mostra, o pintor alcançou um acentuado acréscimo de notoriedade pública.

No ano 2000 foi um dos finalistas do Prémio EDP de Pintura e Desenho. Nesse mesmo ano participou na exposição Collector's Choice, na Galeria Exit Art, em Nova Iorque. A sua crescente notoriedade e afirmação tem feito com que as exposições individuais se sucedam a um ritmo regular, pelo que de seguida passamos apenas a enunciar algumas das mais recentes: em 2002, na Galeria Fortes Vilaça, São Paulo; em 2003, apresentou Torcicolor na Galeria Pedro Cera, Lisboa; em 2004 Mnémopolis na Fundação Calouste Gulbenkian – Centro de Arte Moderna, Galeria de Exposições Temporárias, Lisboa; em 2005, Um hóspede muito discreto, Galeria Pedro Cera, Lisboa; em 2007 voltou à Galeria Fortes Vilaça para apresentar Modelo para armar e fez também Mapa na Galeria Pedro Cera; no ano seguinte apresentou The Remote Viewer na Galeria Suzanne Tarasieve em Paris; em 2009 mostrou Atrás do vulcão e três pinturas semi-amestradas novamente na Galeria Pedro Cera e também Memories from the Future na Galeria Carbon 12m no Dubai; em 2011, Wallpaper, novamente na Galeria Pedro Cera e em 2012 Coming Home, Carbon 12, mais uma vez no Dubai; 2014 volta a expôr na Galeria Pedro Cera Lost Summer; Já este ano de 2015 expôs Second Nature, na Galeria Suzanne Tarasieve em Paris e Out of Season na Galeria Carbon 12 do Dubai.

Está representado em várias colecções públicas e privadas, em Portugal e no estrangeiro, das quais podemos destacar as seguintes: Fundação ARCO, Madrid; CAM / JAP, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa; EDP – Electricidade de Portugal. Lisboa; Banco Privado para Fundação de Serralves, Porto.

 

Um breve olhar para dentro da pintura

Talvez um ponto de partida apropriado para falar da obra de Gil Heitor Cortesão seja a questão, sempre presente no trabalho deste artista, da dualidade. Da dualidade enquanto modo de ser que, dependendo das circunstâncias circundantes (falamos de circunstâncias pictóricas, de acontecimentos feitos de e para a tinta, acções e pensamentos que se desenrolam na dúplice superfície da pintura de Gil Heitor), se reveste dos mais variados disfarces. Senão, vejamos: dualidade feita tempo, quando o pintor confronta passado e presente num mesmo plano; dualidade feita figuração versus abstracção; dualidade feita reconhecimento e estranheza. A propósito desta última faceta, citamos Jorge Molder:

Talvez esta dualidade de tempos possa ser substituída por uma outra oposição igualmente clássica: a do reconhecimento e da estranheza. Perante as pinturas de Gil Heitor Cortesão é igualmente difícil de estabelecer um balanço entre aquilo que nos é familiar e o que experimentamos como estranho e até paradoxal. Na verdade, todas as suas pinturas nos seduzem por aproximação e por estranheza (Nazaré & Molder, 2004:7).

Mas, apesar da inegável atracção que a singular e sábia combinação (montagem?) de todos os acima referidos papeis que a questão da dualidade pode assumir na obra do pintor, uma há que porventura suplantará as demais: falamos, obviamente, da duplicidade da superfície sobre a qual Gil Heitor pinta.

Ora, como se não fosse suficientemente surpreendente o facto desta obra se desenrolar sobre a escorregadia superfície do vidro (plexiglass, para sermos mais precisos), desta forma concedendo imediatamente protagonismo os dois lados do suporte pictórico, a verdade é que esta particularidade técnica instaura uma outra série de questões e, mais uma vez, duplicidades. A saber: ao proceder desta forma no que à aplicação da tinta diz respeito, o pintor confere igual nobreza aos dois lados do suporte; coloca, em simultâneo, a tinta do lado de e do lado de do espelho; ao mesmo tempo que afasta o espectador devido à frieza do material (o vidro é inegavelmente mais frio do que a mais convencional tela), rapta-o para dentro de si com uma assertividade tal, que este mais não pode fazer do que ceder à demanda do material.

Chamámos a este artigo "A pintura reflexiva de Gil Heitor Cortesão". Ora, a palavra "reflexiva", tem (também ela e mais uma vez) uma dupla função. A saber: antes de mais, ela é reflexiva não só porque promove a reflexão sobre a pintura e sobre os assuntos que nela surgem abordados, mas também porque, literalmente, ela reflecte o que à sua frente se apresenta. Devido à natureza material da superfície utilizada por Gil Heitor Cortesão, o reflexo do espectador (bem como o do ambiente no qual este se encontra inserido) são sugados para dentro da pintura. Desta mistura de universos (reais, ficcionais, bidimensionais e tridimensionais) resultam outras tantas formas da questão da duplicidade irromper na obra deste pintor. Conscientes de que a nossa análise incidiu mais sobre a questão técnica do que conceptual da obra de Gil Heitor, não queríamos deixar de fazer uma breve referência a um dos assuntos por si mais recorrentemente utilizados: a ideia de cidade ou de metrópole (Figura 2).

 

 

Quando o pintor faz uso de imagens nas quais surgem elementos que facilmente identificamos com arquitectura, com multidões, um dos véus que habitualmente fica por levantar é o respeitante à real natureza destes aglomerados de gente e casas: serão reais ou fabricados? São imagens dos nossos tempos ou de um tempo indefinido? Provavelmente de um futuro, de um tempo por vir e que, precisamente por se situar ainda em parte incerta, carece de uma série de sinais identificativos sem os quais sai gorada a nossa tentativa de localização.

Fazendo a ponte com a questão da especificidade da pintura, podemos dizer que estas cidades não são passíveis de serem encontradas no mundo exterior, pois tratam-se de cidades de pintura, feitas de pintura, por um pintor.

 

Pintura é uma pintura ou é a pintura?

Dissemos que a pintura de Gil Heitor Cortesão poderia ser, por via da sua muito particular condição técnica e material, um bom ponto de partida para abordarmos a questão da especificidade da pintura dentro do campo alargado da arte contemporânea.

Ao estabelecer semelhante termo de comparação, pretendemos sugerir que a pintura de Gil Heitor Cortesão estaria para as demais pinturas contemporâneas tal como A pintura que se faz nos nossos dias estaria para A arte contemporânea. Ora, se por um lado, o lugar particular reservado ao trabalho do pintor português dentro do campo da pintura contemporânea não levanta grandes questões (no que à sua especificidade diz respeito, queremos dizer), já a posição da pintura contemporânea dentro da restante arte actual não é assim tão pacifica.

Mas voltemos a Gil Heitor: qual é o factor decisivo que faz com que a pintura de um artista se destaque sobre as demais produzidas na mesma época e em condições socioculturais semelhantes? Poderíamos, aqui, apontar variadíssimos aspectos, tais como a actualidade das temáticas abordadas, a consistência de um percurso autoral que se vai afirmando, a consequente notoriedade pública que vai sendo conferida ao artista por via dos locais nos quais a sua obra vai sendo exposta, as colecções que vão acolhendo a sua obra, etc. Convém aqui, antes de prosseguirmos, sublinhar que apontámos dois aspectos interiores à própria obra e outros tantos que, embora advindo das qualidades intrínsecas da obra, não deixam de lhe ser exteriores e já não (pelo menos, não totalmente) controladas pelo artista.

Vindo de dentro ou com ela colidindo, todos os aspectos apontados são válidos, mas não apresentam qualquer especificidade própria da pintura. Isto é, todos eles seriam facilmente extensíveis a qualquer outro braço da arte contemporânea.

E o que dizer, então, da questão material e técnica da pintura? O que dizer sobre o que lhe é absolutamente intrínseco e não partilhável com nenhuma outra forma de arte? O que dizer sobre o modo como a tinta de óleo é aplicada e, sobretudo no caso específico do artista cuja obra aqui pretendemos abordar, o que dizer sobre o suporte utilizado para tal efeito? Estas podem, à primeira vista, parecer questões demasiado técnicas e específicas, mas é exactamente este o aspecto que pretendemos aqui realçar. De facto, julgamos ser cada vez mais importante que a reflexão sobre a pintura leve em consideração este lado material. E parece que não estamos sozinhos neste ponto, pois como diz James Elkins "Recentemente, alguns historiadores da arte têm mostrado mais interesse no que a tinta pode dizer" (Elkins, 2000:3).

Ora, sem querer de modo algum, colocar as questões de ordem técnica acima das conceptuais e afins (ou seja, sem querer insinuar que, neste caso específico, a pintura de Gil Heitor Cortesão ocupa a posição que ocupa apenas por via da sua singularidade técnica), a verdade é que são estas que lhe conferem a especificidade já referida. Senão, vejamos: tal como uma pintura, também uma escultura, um vídeo ou uma instalação podem (ou não) incorporar uma temática mais ou menos ajustada aos tempos correntes; tal como uma pintura, também uma escultura, um vídeo ou uma instalação podem (ou não) apresentar um corpo de trabalho consistente; tal como uma pintura, também uma escultura, um vídeo ou uma instalação podem (ou não) servir-se de imagens e fazer destas o seu capo operatório por excelência. Mas só a pintura pode servir-se das características técnicas e matérias que são inerentes à sua prática.

E se esta última constatação é passível de ser aplicada à generalidade da pintura produzida nos nossos dias, no caso de Gil Heitor Cortesão ela ganha contornos ainda mais evidentes, precisamente devido às particularidades técnicas pelo artista empregues.

Mais uma vez, queremos afirmativamente sublinhar que não pretendemos dizer que as questões técnicas, por si só, são garantia de uma obra singular e de qualidade; o que defendemos é que, sabiamente combinadas com todo o pensamento conceptual subjacente ao trabalho do pintor (aqui, falamos de Gil Heitor Cortesão, mas esta proposição será obviamente extensível a outros artistas do seu porte), elas são essenciais para que a sua obra se inscreva não apenas nos mais exigentes padrões da pintura contemporânea, mas também nos da arte contemporânea em sentido lato.

Não poderíamos terminar sem fazer referência a uma obra e a um artista que nos parece estabelecer uma importante ponte com os assuntos sobre os quais temos estado a falar. Se atrás falámos do crucial papel que a combinação entre as componentes técnica e conceptual desempenha na obra de Gil Heitor, não podemos agora deixar de sublinhar uma ligação que sem qualquer esforço interpretativo aqui se estabelece: a aproximação a uma das obras seminais de Marcel Duchamp, Le Grand Verre (Figura 3).

 

 

Para além das evidentes semelhanças de ordem material, também Duchamp trabalhou incansavelmente sobre a ideia de pintura, por vezes servindo-se literalmente dela, outras sem chegar a tocar-lhe. Voltando à questão da especificidade da pintura dentro do campo alrgado da arte contemporânea, podemos dizer que Duchamp será um exemplo de alguém que, sem deixar de reflectir sobre a pintura, decidiu trabalhar à margem da técnica que lhe é inerente. Assim sendo, a sua obra mais facilmente se insere noutros terrenos que não A Pintura; e isto sem deixar de lhe piscar o olho de modo permanente. Ou seja: mantendo-se o pensamento nas questões da pintura, mas retirando-lhe a componente técnica, a obra deixa de ser pintura e passa a ser arte contemporânea ou conceptual ou qualquer outro rótulo que se julgue mais apropriado.

 

Conclusão

À semelhança do que sucede com os dois lados dos vidros utilizados por Gil Heitor Cortesão na execução da sua obra, esta (necessariamente) breve reflexão vem reforçar a ideia de que dois polos aparentemente opostos podem, afinal, funcionar em profícua concertação. A saber: se as fontes imagéticas utilizadas por este artista como ponto de partida provêm de universos alheios à prática da pintura, a sua passagem ao estatuto de obra de arte implica uma necessária transformação das primeiras em pintura; se a natureza material do suporte utilizado por este pintor mais facilmente se encontra em campos industriais e usualmente alheios à prática pictórica, o seu contacto com a tinta a óleo é passível de a converter na mais dócil e adequada superfície para os devaneios do mais oficinal dos pintores.

Promovendo o contacto tão próximo quanto possível entre a tradição e a contemporaneidade, o trabalho de Gil Heitor Cortesão (e de uma parte significativa da pintura produzida nos nossos dias), simultaneamente, afirma e desmente a especificidade do médium da pintura. O reflexo produzido pelos diferentes (mas complementares) modos como a tinta é recebida e devolvida pelos dois lados dos vidros sobre os quais este artista pinta, pode ser lido como uma duplicação do reflexo desta dúplice posição.

 

Referências

Elkins, James (2000) What Painting Is, New York: Routledge. ISBN: 0-415-92113-9        [ Links ]

Nazaré, Leonor & Molder, Jorge (2004) Mnémopolis. Lisboa: Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão. ISBN: 972-635-154-5         [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 30 de dezembro de 2015 e aprovado a 10 de janeiro de 2016

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: corrcarlos@gmail.com (Carlos Correia)

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons