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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.7 no.14 Lisboa jun. 2016

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

'Tudo está relacionado'de André Penteado, ou o momento em que Angela Davis habitou uma sala comercial na avenida Sumaré

'Everything is related' by André Penteado, or the moment when Angela Davis occupied a commercial area on Avenida Sumaré

 

Fernanda Grigolin Moraes*

*Brasil, artista visual. Bacharel em Comunicação Social (Universidade Metodista de São Paulo, UMESP). Mestre em Artes Visuais Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

AFILIAÇÃO: Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes. R. Elis Regina, 50, Cidade Universitária Zeferino Vaz, Campinas, CEP 13083-854, São Paulo, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

O presente artigo conta um trajeto no interior da mostra Tudo está relacionado, do artista brasileiro André Penteado. Montada em um andar de um edifício comercial em uma importante avenida da cidade, a exposição pode ser lida como um atlas que une três séculos de imagens da família de Penteado conjuntamente com seus projetos artísticos. Livros de artista convivem com arquivo familiar e fotos avulsas, bem como negativos preto e branco, fotografados por uma tia, chamada Gilda, quando morou nos Estados Unidos nos anos 1970, e entre essas imagens uma fotografia de Angela Davis, filósofa e ativista do movimento Pantera Negra.

Palavras-chave: arte contemporânea, memória, fotografia.

 

ABSTRACT:

This paper tells the trajectory of the exhibition "Everything is related", by Brazilian artist André Penteado. Assembled on a floor of a commercial building on an important avenue of the city, the show can be understood as an atlas that unifies three centuries of images of Penteado's family put together with his artistic projects. Artist books are together with the family archive. There are also separate photographs, besides black and white, 35mm negatives shot by Gilda, an aunt when she lived in the United States in the 1970's; among these photos, one of Angela Davis, philosopher and activist of the Black Panther's Movement.

Keywords: contemporary art, memory, photography

 

Introdução

Entro na exposição Tudo está relacionado. André Penteado me recepciona, ele recebe todos os visitantes. Já no hall de entrada quatro vídeos são projetados ao mesmo tempo em loop. Aparecem combinados filmes 16 mm feitos pelo avô de Penteado nos anos 40; super 8 dos anos 70 da sua tia Gilda; trechos do filme A Moreninha, estrelado por sua tia Tony, e pequenos vídeos digitais de autoria do artista. No corredor que dá acesso às salas, imagens fotográficas postas na parede; depois trafego pelas divisórias de vidro, que dão passagem às demais salas. Uma das salas contém ampliações divididas por paletas de cor, por exemplo. Em outras veem-se ampliações e contatos de várias épocas da família de Penteado, convivendo com mesas sobre as quais há livros de artista, fotografias dos primórdios fotográficos, álbuns de família e negativos preto e branco, 35 mm, fotografados por uma tia fotógrafa, chamada Gilda, do tempo em que morou nos Estados Unidos nos anos 1970. E na sala 3, numeração dada pelo fotógrafo, é a em que fico mais tempo: ela tem duas divisórias de vidro, uma frontal e outra lateral. Logo na entrada pode-se ver o verso das imagens postas (Figura 1). Olho para a parede oposta à divisória, e entre os versos das fotografias vejo a imagem de Rebecca, uma jovem que participou de um projeto de André sobre famílias de suicidas. (O projeto teve início depois de uma tragédia pessoal: o pai de André se matou. O primeiro livro de Penteado, publicado em 2014, foi sobre o tema: Suicídio de meu pai.) A imagem me chama a atenção e me aproximo. Aquele olhar me intriga. Depois, ao entrar na sala, do lado esquerdo de Rebecca encontro Angela Davis e, à esquerda de Davis, a tia de André, Gilda, a autora da imagem de Davis.

 

 

A exposição pode ser lida como um atlas que une três séculos de imagens. Volto para Davis várias vezes; outras mulheres negras estão retratadas naquela sala, mas é Davis que me desperta a atenção: ela é ativista e está em um momento simbólico e bom para pensar.

A imagem de Angela Davis está na quina (Figura 2). Ela está em um momento combativo no meio da multidão, seguramente a falar de direitos civis. A imagem é o trecho da lâmina do atlas em que eu paro.

 

 

Eu me afasto da sala, tento retomar as demais salas da exposição. Mas é a imagem de Davis que segue comigo ao longo do trajeto. Talvez seja o grande labirinto das questões raciais unidas às questões das mulheres, que ainda não resolvemos e segue entre as lâminas do atlas. O atlas, para Didi-Huberman, é como uma mina. Ele é uma forma visual de conhecimento, uma maneira sábia de ver: "Contra toda a pureza estética, introduz o múltiplo, o diverso, todo o hibridismo da montagem" (Didi-Huberman, 2010: 15).

O lugar de Davis na montagem do artista é momento gatilho para mim. É a partir dela que faço a leitura do atlas (da exposição). A partir da imagem de Davis, eu realizo o percurso na exposição; porém, antes de falar de Davis, contarei um pouco de Tudo está relacionado.

 

1. Um pouco sobre a exposição

André Penteado é um artista brasileiro de família quatrocentona, termo que usamos para aqueles que estão no Brasil desde os tempos coloniais. Pessoas que ocuparam no passado, e muitos ainda ocupam, um espaço de privilégio social e cultural em nossa sociedade.

Ao ser questionado por mim quanto aos motivos pelos quais realizou o projeto, Penteado me contou que Tudo está relacionado surgiu de uma vontade de ver o que já estava presente desde o começo no seu trabalho e como isso se relacionava com as imagens de sua família. A ancestralidade é o que move Tudo está relacionado, e seguramente por isso os objetivos da exposição, para o autor, foram integrar e relacionar quatro arquivos distintos, um herdado pela família e três gerados por ele (Figura 3).

 

 

O lugar da exposição foi essencial para Penteado, um andar comercial – uma antiga oficina de telefones celulares –, localizado no bairro de Perdizes em São Paulo.

Após meses olhando todos os arquivos e fazendo a pré-seleção das fotografias, concluí que este trabalho deveria ser mais do que um estudo sobre memória e afetos familiares. Ele deveria, também, enfatizar questões relacionadas à própria natureza da imagem fotográfica. [ … ] a oficina ajudaria a complexificar o seu entendimento. Esta decisão trouxe para a superfície do projeto a questão do arquivo, de onde e como são guardadas as memórias – qualquer memória, não somente as familiares – e a relação da imagem fotográfica com elas (Penteado, comunicação pessoal, 2015).

A oficina, com suas paredes brancas e divisórias de vidro, permitiu que mais de uma sala fosse vista de cada vez e também que se tivesse acesso ao verso de algumas fotografias. Estas sobreposições de imagens, além de enriquecerem a exposição, criam as camadas e camadas de ancestralidade entregues nas imagens.

 

2. O atlas

Como reler o que produzimos e o que herdamos? Como prever o porvir, a última imagem a se realizar? Essas perguntas são essenciais ao projeto de André Penteado e elas fazem parte da sua busca por compreender as conexões entre as milhares de fotografias da exposição.

Tudo está relacionado é o atlas da ancestralidade de Penteado, porém não segue nenhuma lógica cronológica, é uma exposição completamente anacrônica. O processo de ocupação das paredes, segundo o autor, foi também intuitivo. Ele afirma que fez um mapeamento, entretanto o destino final é o desconhecido.

Todavia, o encontro com o desconhecido é o encontro com a diversidade. A comparação com o Atlas (Mnemosyne) de Aby Warburg é fecunda para se pensar, já que a forma de montagem realizada por Warburg é muito usual entre artistas contemporâneos. De acordo Cristina Tartás Ruiz e Rafael Guridi Gardia (2013), cada uma das fotografias do Atlas de Aby Warburg constituía uma lâmina do atlas. O processo permite o reposicionamento de imagens ou a introdução parcial de novos elementos, para estabelecer novas relações, um processo aberto e infinito (Ruiz & Garcia, 2013: 4).

Parto da ideia de que, por ser aberto o processo, a leitura por meio da imagem de Angela Davis se mostra essencial, já que é o atlas uma máquina de ativação de ideias e relações (Ruiz & Garcia, 2013). É no atlas que a ancestralidade do autor (André Penteado) se encontra com um fato histórico e importante: a luta pelos direitos civis. O fato é incorporado no ativismo de Angela Davis, uma das mulheres mais importantes dos anos 1970.

 

3. O trajeto, o encontro com Angela Davis, a imagem gatilho

 

They gave you sunshine
They gave you sea
They gave you everything but
the jailhouse key.
They gave you coffee
They gave you tea
They gave you everything
but equality

"Angela", Yoko Ono e John Lennon

 

A imagem de Angela Davis está na quina de uma parede da sala 3, a sala de paredes e vidros expostos. Ela está num comício, seguramente são os duros anos 1970. Atrás dela as iniciais da Cia trazem três palavras chaves: conspiração, imperialismo e agressão (Figura 4). Naquela época, Angela Davis era a mulher mais perseguida do país do capital, os Estados Unidos da América. Filósofa e escritora, Davis era temida pelo fato de ser negra, ativista e comunista. Logo depois, foi presa. E lá o mundo clamou por sua liberdade. A ela, eles deram tudo menos a igualdade. Assim diz trecho da música de Yoko Ono e John Lennon.

 

 

Hoje Angela Davis segue viva, com 71 anos, seus escritos feministas são lidos por milhares de mulheres negras, na maioria jovens de todas as Américas e da África. Entre as socializadas como brancas, como eu, pouco lemos o que Davis escreveu (cf. Davis, 1981). Ainda seguimos a crer que a luta pelos direitos das mulheres teve início com as sufragistas. Ledo engano.

Mulheres negras sempre trabalharam. O trabalho precário segue com elas até os dias de hoje. Seguramente, falar de liberdade e direitos das mulheres – e, por consequência, feminismo – só é potente quando agregado às questões raciais e de classe social.

Busco nos escritos de Davis o que ela diz sobre os afrodescendentes daquele país:

Através do forçado sistema de arrendamento, o povo negro foi obrigado a realizar os mesmos papéis executados por eles próprios na escravatura. Homens e mulheres foram detidos ou presos, ao menor pretexto, a fim de serem alugados pelas autoridades como trabalhadores condenados. Enquanto os donos de escravos reconheceram os limites da crueldade com a qual eles exploravam a sua "valiosa" propriedade humana, essas cautelas não eram necessárias para os plantadores do pós-guerra que alugavam os negros condenados por relativamente pequenos prazos (Davis, 2013: 68).

Ao lado de Davis, tanto esquerdo quanto direto, duas mulheres brancas. À esquerda, Gilda, numa foto arrancada de um álbum de família onde está escrito "Berkeley 1975". Seguramente, anos depois de ter se encontrado com Angela no comício, Gilda se casou e teve um filho. À direita, Rebecca, antes mencionada. Certamente, as duas mulheres – Gilda e Rebecca – já deviam ter encontrado mulheres negras trabalhando em situações de trabalho doméstico. A voz de Angela Davis volta a falar:

Se as mulheres brancas aceitavam o trabalho doméstico, apenas se não encontrassem nada melhor, as mulheres negras estavam aprisionadas nessa ocupação até ao advento da Segunda Guerra Mundial (Davis, 2013: 71).

A desigualdade entre mulheres é latente até hoje. Na própria exposição de André Penteado há uma imagem de uma mulher negra prestando serviços domésticos com um pano branco na mão, por exemplo. Até hoje mulheres negras seguem a receber salários inferiores às mulheres brancas. Os anos 1970 foram importantes para a luta racial e feminista tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. Na América Latina, as mulheres de esquerda pegavam em armas. As feministas negras são categóricas ao falar de feminismo:

As mulheres brancas que dominam o discurso feminista – as quais, na maior parte, fazem e formulam a teoria feminista – têm pouca ou nenhuma compreensão da supremacia branca como estratégia, do impacto psicológico da classe, de sua condição política dentro de um Estado racista, sexista e capitalista (Hooks, 2015: 196).

As questões raciais são aprofundadas e tornam-se complexas quando unidas às de gênero e classe social, pontua Bell Hooks, outra teórica feminista afro-americana. Volto à Davis, que fala das mesmas questões, e, por meio de Davis e Hooks, reencontro Sueli Carneiro, uma das mais importantes pensadoras brasileiras:

Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente a proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos falando? Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito, porque nunca fomos tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas... Mulheres que não entenderam nada quando as feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar! (Carneiro, 2003: 1).

A voz da brasileira se soma a todas as outras e também às imagens que compõem o projeto de Penteado. "As imagens são atos, memórias, questionamentos (...) visões e prefigurações" (Samain, 2011: 40).

Depois do encontro de tantas vozes falantes em um único trecho da lâmina do atlas, volto ao projeto de André Penteado como um todo, volto às suas perguntas primordiais e me indago: Como reconstruir o porvir ou mesmo falar das imagens que herdamos, incluindo o questionamento de nossos lugares de privilégios como mulheres e homens brancos?

 

Referências

Carneiro, Sueli (2003) "Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero." In ASHOKA, Empreendedores Sociais e TAKANO Cidadania (org). Racismos Contemporâneos. Rio de Janeiro: Takano [Consult. 2015-11-22] Disponível em: http://www.unifem.org.br/sites/700/710/00000690.pdf        [ Links ]

Davis, Angela (1981). Mulher, raça e classe. Tradução Livre. Plataforma Gueto_2013.         [ Links ]

Didi-Huberman, Georges (2010). Atlas. ¿Cómo llevar el mundo a cuestas? Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, Madrid. 26 noviembre 2010 – 28 marzo 2011.         [ Links ]

Hooks, Bell (2015, jan.-abr.). "Mulheres negras: moldando a teoria feminista." Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 16: 193-210. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0103-335220151608.         [ Links ]

Ruiz, Cristina Tartás & Garcia, Rafael Guridi (2013). "Cartografías de la Memoria. Aby Warburg y el Atlas Mnemosyne.": Revista de Expresión Gráfica Arquitectónica, n. 21: 226-35. [Consult. 2015-11-22] Disponível em: http://dialnet.unirioja.es/ejemplar/335370        [ Links ]

Russo, Felipe (2015 nov.). Tudo está relacionado, André Penteado e o outro. Jornal de Borda 02.         [ Links ]

Samain, Etienne (2011 jul.). "As 'Mnemosyne(s)' de Aby Warburg: Entre antropologia, imagens e arte." Revista Poiesis, Niterói, n. 17: 29-51. [Consult. 2015-11-19] Disponível em: http://www.poiesis.uff.br/        [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 26 de dezembro de 2015 e aprovado a 10 de janeiro de 2016.

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: fernanda.grigolin@gmail.com (Fernanda Grigolin)

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