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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.7 no.14 Lisboa jun. 2016

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Apropriação e ironia na instalação 'Vestidas de branco' de Nelson Leirner

Appropriation and irony in installation 'White Dressed`of Nelson Leirner

 

Almerinda da Silva Lopes*

Brasil, curadora, crítica de arte, artista Visual. Bacharelado em Artes Plásticas, pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Licenciatura em Artes Visuais, UNESP. Mestrado em Artes Plásticas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Doutora em Artes Visuais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).

AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Centro de Artes (CAR), Departamento de Teoria da Arte e Música. Av. Fernando Ferrari, 514, Goiabeiras, Vitória, ES. CEP 29075-910, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Ao instigar o júri formado por reconhecidos críticos a esclarecerem os critérios adotados para aceitarem o porco empalhado enviado por ele ao IV Salão de Arte Contemporânea de Brasília (DF), em 1967, o paulista Nelson Leirner tornou-se conhecido pela irreverência e senso crítico. Dialogando com o conceito de ready-made e de objet-trouvé, passaria a se apropriar de objetos banais industrializados, em gesso ou plástico, adquiridos no comércio popular, formatando inusitados trabalhos com os quais ironiza a exploração da fé, a alienação do futebol, as mazelas políticas e a espetacularização dos ritos sociais, como ocorre na instalação: "Vestidas de branco", na qual articulou uma narrativa paródica sobre um casamento de faz-de-conta, objeto principal deste texto.

Palavras-chave: Apropriação, paródia, Imagens ready-made, Nelson Leirner.

 

ABSTRACT:

By instigating the jury of critics recognized to clarify the criteria adopted to accept the pork sent by him to the IV Hall of Contemporary Art of Brasília (DF), in 1967, the paulista Nelson Leirner became known for irreverence and critical thinking. Dialoguing with the concept of ready-made and objet-trouvé, would take ownership of industrialized banal objects, plaster or plastic, acquired the popular trade, formatting unusual works with which mocks the exploration of faith, alienation of football, political ills and turn on show the social rituals, as occurs in installation: " Dressed in white,"in which articulates a parodic narrative about a wedding make- account, the main object of this text.

Keywords: Appropriation, parody, ready-made images, Nelson Leirner.

 

Introdução

O artista e professor Nelson Leirner (nascido em São Paulo em 1932, desde a década de 1990 reside e trabalha no Rio de Janeiro), foi enviado pala família aos Estados Unidos para cursar engenharia têxtil, mas logo desistiu do curso para investir na carreira artística. Desde os anos de 1960, engendra processos expressivos inusitados recorrendo a variados suportes, processos e temas, e apropriar-se de ampla gama de objetos e materiais: ordinários e sofisticados, congruentes e dissonantes. Criaria, ainda, subsequentemente, instalações bem humoradas, que parodiam os ritos sociais, as aspirações humanas, o capitalismo, a idolatria aos ícones da música pop, a exploração da fé, a alienação do futebol, o fetiche pelo colecionismo, o sistema artístico e as estratégias do mercado de arte, angariando notoriedade pela maneira transgressiva, irreverente e crítica de criar, expor e comercializar suas obras.

Respaldando-se no cinismo duchampeano, Leirner organizou em São Paulo mostras em que vendeu os trabalhos a preço de custo, conforme planilha de gastos exibida. Pelo boletim Rex Time, anunciou que o público poderia levar gratuitamente as obras expostas na Exposição Não Exposição (1967), que marcou o encerramento das atividades da Rex Gallery & Sons, criada e gerida pelos integrantes do Grupo Rex, cooperativa de artistas da qual ele fazia parte. A multidão que acorreu ao local encontrou os trabalhos chumbados nas paredes da galeria, mas em poucos minutos arrancou todas as obras a golpes de machado, martelo e serrote, destruindo inteiramente o espaço expositivo. Ao término desse inusitado happening o público tentaria vender as obras angariadas na porta da galeria.

O objetivo desde texto é discorrer sobre narrativa irônica articulada em Vestidas de branco, instalação que Leirner apresentou no Museu Vale no Espírito Santo (2008), mas se retrocede à década de 1960, para situar a origem do viés crítico e a irreverência do artista, quando enviou inusitada proposta ao IV Salão de Brasília. Salvaguardadas as devidas especificidades temáticas, materiais e poéticas, podem ser entendidas como divisores de águas da ousadia e do processo criativo do artista.

 

Da apropriação irônica de objetos e imagens à criação de instalações heteróclitas e paradoxais

Se antes de enviar Porco com presunto ao IV Salão Nacional de Arte Contemporânea de Brasília (dezembro 1967/fevereiro 1968) (Figura 1) Leirner já era artista reconhecido, a inusitada e irreverente proposta, e o posicionamento crítico que ao questionar a comissão de seleção, tornaram-no um dos principais representantes da vanguarda no país.

 

 

Os ilustres críticos: Mario Pedrosa, Frederico Morais, Mário Barata, Clarival do Prado Valadares e Walter Zanini, após discussões e embates decidiram acatar a insólita e desafiadora proposta enviada ao Salão: um avantajado suíno empalhado com um presunto amarrado ao pescoço, dentro de engradado de madeira.

O aval concedido à proposta enviada ao Salão de Brasília, não foi motivo de regozijo do artista, mas pretexto para desafiar o poder legitimador e judicativo da crítica. Em carta aberta enviada ao Jornal da Tarde: Qual o critério? (1967) Leirner solicitava esclarecimentos ao júri sobre os critérios adotados para avalizar o porco como obra de arte. Ressaltava na carta não ser ele sequer o autor da proposta, pois adquiriu o animal de um conhecido taxidermista da capital paulista, sendo que sua ação resumiu-se à apropriação e deslocamento do porco para outro contexto.

Questionar o aceite de seu próprio trabalho no Salão era fato inédito e correspondia a ironizar o caráter legitimador e judicativo do discurso da crítica, mas também o modelo conservador das instituições culturais e os regulamentos dos eventos oficiais de arte e suas propostas anacrônicas, em assimetria com o processo de desmaterialização e os novos paradigmas artísticos.

Surpresos com o ineditismo da indagação, os membros do júri não ocultariam o constrangimento. Clarival do Prado Valladares não se pronunciou sobre a provocação do artista, e os demais membros da comissão encarregaram o presidente Mario Pedrosa, de responder à aporia estética formulada por Nelson Leirner. Walter Zanini por sua vez, parecia não endossar a resposta didática que o colega enviou à imprensa, ao enviar carta ao artista se dispondo a prestar-lhe os devidos esclarecimentos.

O encerramento do Salão não arrefeceu o debate, pois ao constatar que o porco foi-lhe devolvido sem o presunto, o artista reforçaria a carga, indagando sobre o paradeiro da peça que integrava o trabalho enviado. A continuidade da provocação transformou-se em uma espécie de desdobramento do trabalho, que Leirner denominou de Happening da crítica. Instaurava assim um debate sem precedentes na história da arte brasileira, que se arrastou por vários meses, mobilizando a imprensa e outros membros da crítica de arte atuantes no eixo Rio/São Paulo, que formularam diferentes opiniões sobre a proposta do artista e sobre problemas da estética.

O artista iria ampliar e diversificar nas décadas seguintes o leque de proposições, formalizando insólitas propostas em que mesclava ou hibridizava exercícios gráficos, pintura, colagem e decalques e figurinhas autocolantes sobre sequências de cartões-postais. Dialogou e interferiu sobre reproduções de obras de alguns ícones da pintura universal e sobre mapas, com o propósito de modificar a divisão geográfica do mundo ou criticar a exploração e a dominação do poder econômico dos países ricos sobre os mais pobres. Na década de 1990 o artista passaria a criar inusitadas instalações reunindo verdadeiros pastichos de objetos industriais produzidos em série, com os quais pleiteia ironizar fatos sociais e recuperar o sentido crítico da arte. Recria, amplia e recodifica alguns desses objetos, e se apropria de imagens banais de santos católicos, entidades do candomblé e macumba, personalidades do folclore, bichos, brinquedos e heróis infantis, moldados em gesso, plástico ou borracha, atribuindo-lhes novos significados ao alocá-los em contextos paradoxais e bem humorados (Figura 2).

 

 

Ao visitar o Museu Vale, em Vila Velha (ES), 2007, para conhecer o espaço onde realizaria uma mostra retrospectiva de suas obras, Nelson Leirner encontrou vários casais de noivos paramentados com as vestes nupciais, realizando sessões fotográficas nos jardins da instituição, para os tradicionais álbuns de casamento.

Observador atento do comportamento humano e da realidade que o cerca, o artista iria afirmar que aquelas cenas insólitas dos casais transitando de um lado para o outro, sob um sol abrasador, em que os noivos tentavam ajudar as companheiras a suspenderem os véus para acompanharem o fotógrafo a encontrar o melhor ângulo para bater as fotos, não lhe sairiam mais da memória. Nelson Leirner comunicou, então, ao diretor do Museu que desista da retrospectiva por preferir criar uma proposta inédita, especificamente para aquele espaço.

Acatada a solicitação, meses depois o artista apresentava ali uma de suas mais grandiosas e emblemáticas instalações, que ocupou inteiramente o imenso galpão do Museu Vale. Denominada Vestidas de Branco (2008), versava sobre um hipotético casamento, cuja narrativa se desenrolava em doze situações ou cenas interligadas, repletas de humor e irreverência. Tinha início com a cerimônia nupcial, passava pela festa, a viagem do casal e a lua-de-mel no Caribe, ao consumismo desenfreado de bens de gosto duvidoso, e terminavam com o nascimento dos filhos na maternidade.

Abrindo a instalação, o casal de noivos aparecia em destaque posicionado em pé, de frente para a porta de entrada do Museu. Elegantemente paramentados exibem os trajes nupciais – ele um fraque preto e ela véu e grinalda imaculados –, o casal era representado por dois manequins de loja em escala humana. Mantinha uma distância de 15 metros da porta de entrada, e situava-se um de cada lado de uma passadeira vermelha sobre o piso, com cerca de dois metros de largura, estendida na área central de todo o espaço da primeira sala expositiva. Ladeando o tapete vermelho, o artista reuniu e enfileirou, sem hierarquia ou pretensão classificatória, uma massa compacta de convidados. Estes eram representados por centenas de estatuetas de gesso pintado, de variadas dimensões: santos de culto católico, entidades do candomblé e macumba (imagens de iemanjá, personagens do folclore, índios, pretos velhos, pombas giras, exus), budas, cangaceiros, anões de jardim, miniaturas de esculturas clássicas. À frente do cortejo agrupou pequenos bichos de plástico e borracha. Enfileiras ou apinhadas essas imagens posicionavam-se de frente para os noivos, e de costas para o espectador que adentrasse o Museu. Este convidado especial encontraria os recém-casados, caminhando pelo tapete vermelho. Porém, ao se aproximar dos noivos o espectador confirmava o caráter paródico da cena, a burla irônica ou a blague do artista, ao constatar que em vez de rostos com traços humanos usavam máscaras de macacos, e o buquê da noiva em lugar de flores exibia pencas de bananas (Figura 3).

 

 

Atrás dos noivos, pelo vão que os separava, correspondente à largura da passadeira vermelha, avistava-se na sala seguinte do Museu, o "bolo do casamento": redondo, confeccionado em madeira pintada de branco – como o vestido da noiva-, e escalonado em camadas formando uma pirâmide truncada, como manda a tradição. Apoiado no centro de uma enorme mesa, o bolo era ladeado por uma centena de pratos de porcelana branca, em que seria servido aos convivas (Figura 4). Cada uma das camadas do bolo era contornada por imagens simbolizando distintas religiões ou crenças. No topo do bolo Leirner posicionava-se a imagem maior, representando Padre Cícero (milagreiro nordestino que brevemente será coroado santo brasileiro pelo Papa), rodeado por uma sequência de gessos pintados de Santa Rita de Cássia, considerada pelos crentes como a padroeira dos casos de difícil solução. As demais bordas do bolo foram preenchidas por pequenas estatuetas pintadas de branco ou preto, respectivamente marinheiros, bailarinas, pretos velhos e sacis-pererês.

 

 

A festa foi representada por estantes de ferro, similares às usadas nas orquestras como suporte das partituras musicais, mas no lugar destas o artista inseriu máscaras de borracha de macacos, representando os músicos que tocarão a balsa dos noivos.

Continuando esse jogo de faz-de-conta o artista representou a viagem de lua-de-mel por um automóvel preto, de madeira, que lembra um carro fúnebre (referência à efemeridade ou à morte dos matrimônios). Presas à traseira do carro dos noivos – confirmando que nem os elementos da cultura local escaparam à percepção e à ironia do artista – vão algumas panelas de barro (artefato símbolo do estado do Espírito Santo). A lua-de-mel ao Caribe termina com estandes destinados à venda de diferentes produtos de cores e gosto duvidoso para o deleite do casal.

Uma banca de revistas oferecia o jornal do não artista, com notícias fictícias de casamento e outros casos irônicos. Por último, a maternidade com as camas hospitalares em que se deitam as mamães macacas e o berçário com macaquinhos de pelúcia. Em um espaço destinado ao lazer da família, o artista utiliza-se de módulos de madeira de várias cores cobertos de brinquedos, além de se apropriar e deslocar para esse novo contexto de uma réplica de um berço (Figura 5), de madeira pintada de branco, similar ao reproduzido no ready-made assistido, Apolinaire Enameled (1916), de Marcel Duchamp.

 

 

Em Vestidas de Branco Leirner ultrapassava a referência, e através da apropriação de imagens de diferentes extratos e significados formalizou um "conhecimento patético, que ao contrário do conhecimento racional possibilita o acesso ao essencial, e tomando como referência as manifestações elementares da afetividade (...) atinge e formula a imagem da condição humana e suas tragédias" (Grenier, 2008: 15).

 

Conclusão

Dialogando com o conceito de ready-made e de objet-trouvé Leirner recolhe ou adquire uma gama diversificada de objetos industrializados e banais em lojas populares de bricabraque, bancas de revistas e no camelódromo do Rio de Janeiro. Destitui tais objetos de sua função original, ao reuni-los e comprimi-los em inusitadas cenas e cenários paródicos, confirmando que não visa formular nenhum tipo de hierarquia ou classificação, mas atribuindo-lhes novos significados em contextos irônicos que remetem a procissões, paradas militares, campos de futebol, combates...

Na instalação Vestidas de branco (Figura 1) formulou uma narrativa paródica propondo ao espectador refletir sobre questões que envolvem sua própria vivência ou existência: aspirações, hábitos, costumes, ritos, crenças. Realocando imagens e materiais de trabalhos anteriores formulou uma blague que pode ser entendida como estratégia cínica que remete à espetacularização e à ostentação das cerimônias matrimoniais contemporâneas. Assim, talvez se possa afirmar que, através dessa "potência patética", Leirner formula uma "retórica artística que atua como uma força de interpelação e agente de desestabilização" de conceitos e valores sociais (Grenier, 2008: 22).

 

Referências

Grenier, Catherine (2008). La revanche des émotions: esai sur l´art contemporain. Paris: Seuil.         [ Links ]

Leirner, Nelson (1967). "Qual o critério?", Jornal da Tarde (SP), 21 dez.         [ Links ]

Leirner, Nelson (2008). Vestidas de Branco/Nelson Leirner (Curadoria Moacir dos Anjos). Vila Velha (ES): Museu Vale.         [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 30 de dezembro de 2015 e aprovado a 10 de janeiro de 2016.

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: dtam.ufes@gmail.com (Almerinda da Silva Lopes)

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