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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.7 no.14 Lisboa jun. 2016

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

O diálogo nas imagens de Ayrson Heráclito

The dialogue at Ayrson Heráclito's images

 

Guilherme Marcondes Tosetto*

*Brasil, Fotógrafo. Estudante do Doutoramento em Belas-Artes, Arte Multimédia, Fotografia. Bacharelado em Comunicação Social pela Universidade de Londrina (UEL), Pós-Graduação em Fotografia pela UEL e Mestrado em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

AFILIAÇÃO: Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes, Largo da Academia Nacional de Belas Artes 1249-058 Lisboa Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Este artigo faz uma reflexão sobre o trabalho do artista plástico Ayrson Heráclito exibido em 2015 na exposição do prêmio Novo Banco Photo, em Lisboa. Ao fazer uso da fotografia e do vídeo para apresentar visualmente a relação de dois continentes com a questão histórica da escravidão, o artista estabelece um diálogo em diferentes níveis, entre mídias e culturas. Busca-se pensar o conceito de diálogo nesta obra a partir das proposições do pensador russo Mikhail Bakhtin.

Palavras-chave: diálogo, multimídia, imagens

 

ABSTRACT:

This article reflects on the artist Ayrson Heráclito's work displayed in 2015 at the exhibition of the Novo Banco Photo award in Lisbon. Using photography and video he visually present the relationship of two continents with the historical question of slavery, the artist also establishes a dialogue at different levels between medias and cultures. The concept of dialogue described by Mikhail Bakhtin is recovered to think this work.

Keywords: dialogue, multimedia, images

 

Introdução

A problemática da escravidão que envolve diretamente Brasil e África, e que deixou profundas marcas sociais em ambos os continentes, já serviu de tema para diversas obras de arte ao longo da história, e volta à tona no trabalho de Ayrson Heráclito, finalista do prêmio Novo Banco Photo 2015, em Portugal. O artista plástico baiano revisita e atualiza o diálogo entre os dois continentes a partir de suas relações com o tráfico de escravos. Além da temática, o interessante no trabalho é que a noção de diálogo aparece tanto nos vídeos que mostram performances similares realizadas em dois locais diferentes, como nas fotografias expostas em dípticos e também na montagem da exposição: Brasil e África foram posicionados em paredes opostas, em uma das salas do Museu Coleção Berardo, em Lisboa.

Quando as pensei, as performances, perguntava-me como poderia retomar critica- mente o passado colonial e o escravismo para refletir sobre as condições históricas e sociais do presente nas duas margens atlânticas, ou seja, quais as consequências duradouras da colonização e do escravismo para a África e para o Brasil. Esse questionamento que eu me fazia tinha, no entanto, de ser proposto e efetuado por meio de linguagens artísticas, como a performance, a linguagem fílmica e a fotografia. (Novo Banco Photo 2015:60)

A partir de um questionamento histórico-social, o autor assume a necessidade de transformá-lo em performances e conteúdos visuais que refletissem as relações entre as duas margens do atlântico, envolvidas profundamente com as questões coloniais e escravismo. Mais do que uma simples ligação ou analogia, Heráclito mostra com suas performances que ainda há uma herança social, de certo modo negativa, presente nesses dois continentes e que deve ser sacudida, revelada e discutida, para que não fique escondida nas entrelinhas da história.

 

1. Exposição

A montagem do trabalho consiste em dois vídeos projetados simultaneamente em paredes opostas, onde são apresentadas as performances em grandes telas que tomam conta do espaço expositivo, ao lado um díptico com fotografias feitas durante a realização da performance. Uma das ações acontece na Bahia, e a outra na costa do Senegal. Cada uma apresenta um 'sacudimento', espécie de exorcismo de espíritos para o povo de santo da Bahia. No Brasil o local escolhido para o trabalho foi a Casa da Torre, edifício em ruínas que pertenceu a uma família escravocrata no nordeste do Brasil. Ali três homens usam ramos de folhas para bater nas antigas paredes do local, o som que embala a exposição é dos ruídos destes sacudimentos, dos ramos batendo nas estruturas de pedra escura das ruínas (Figura 1).

 

 

Do outro lado do Atlântico a mesma performance foi filmada na Maison des Enclaves na ilha de Goreé, na costa do Senegal, um dos maiores centros de comércio de escravos do continente africano no passado. Da mesma forma três homens percorrem cada cômodo e cada parede batendo com ramos nas janelas e batentes de portas. Ao final da ação as plantas são trituradas com as mãos por dois homens e jogadas no mar (Figura 2).

 

 

O trabalho, portanto, coloca frente a frente um mesmo ritual que parece querer limpar as impurezas históricas daqueles locais, edifícios que testemunham a escravidão que deixou marcas profundas nas duas populações, ou ainda espantar os espíritos que ali ainda rondam mesmo depois de séculos inabitados. O diálogo entre as imagens destes rituais também é marcado pelo sincronismo das ações no vídeo e nas tomadas quase semelhantes: começam com um close em árvores típicas dos dois continentes e terminam com o descarte das plantas, posicionando a natureza como catalizadora desta ação, ao mesmo tempo artística e histórica.

a montagem dos vídeos e das fotos em espelho é metáfora das margens atlânticas, que se elucidam pelo fulgor do sacudimento, que, pelo calor, pelo faiscar das folhas, fulgura pontos da história, permitindo a superação do seu legado. (Novo Banco Photo 2015: 68)

Ao lado de cada projeção há um díptico impresso em grande formato, são imagens que estão no vídeo e que ganham uma outra dramaticidade ao figurarem em um novo suporte. A vizinhança dessas imagens no espaço expositivo confunde o espectador e não há como distinguir quem veio antes, se as fotografias ou o vídeo. Assim como não é possível, e de certo modo não é preciso, distinguir qual das performances foi realizada primeiro pelo artista, se no Brasil ou no Senegal (Figura 3).

 

 

2. Diálogo

Para o pensador russo Mikhail Bakhtin, dois enunciados confrontados, mesmo que toquem levemente o mesmo tema ou ideia entram inevitavelmente em relações dialógicas entre si, "eles se tocam no território do tema comum, do pensamento comum" (Bakhtin, 1992:320).

No trabalho de Ayrson Heráclito o tema comum de partida é a escravidão, o que coloca as imagens feitas em cada continente em relações dialógicas. Através das escolhas estéticas, reveladas na montagem da obra, estabelece-se um diálogo entre as próprias mídias, no caso o vídeo e a fotografia. O território comum passa então a compreender tanto a temática quanto a linguagem artística.

Bakhtin não menciona em seus principais textos a fotografia, tampouco outros tipos de imagem técnica quando desenvolveu suas ideias em meados do século XX, mas fez importantes observações sobre a obra de arte, o papel do autor e a as relações dialógicas entre textos como forma de conhecimento. O diálogo e seus variados processos são elementos centrais em toda a obra de Bakhtin.

A partir do momento em que consideram-se as imagens do trabalho de Ayrson como textos, isto é, 'um conjunto coerente de signos' – neste caso obras visuais com características multimídias – pode-se tentar compreendê-las por meio do conceito de dialogia. Dentro dessa perspectiva, é a partir do diálogo que podemos revelar identidades inerentes a cada texto cultural, e "é na relação com a alteridade que os indivíduos se constituem, em um processo que não surge de suas próprias consciências, mas de relações sócio-historicamente situadas" (Magalhães & Oliveira, 2011:105).

No trabalho de Ayrson Heráclito, tendo estabelecido um movimento de diálogo entre estes 'textos', é possível apontar onde eles se afastam ou se aproximam, tanto na execução das performances quanto nas imagens que elas resultam.

No início do vídeo há uma tomada em close de árvores típicas de cada continente: no Brasil, uma gameleira ou figueira-brava, em Gorée, um baobá ou imbondeiro, diferentes, mas sagradas e com significado específico para o povo de santo. Outro momento de diferenciação são os lugares definidos para a realização da performance – dois edifícios com finalidades distintas, um de partida dos escravos e outro de recepção destas pessoas, mas que compartilham de um mesmo período cronológico da história. A participação do artista em ambas as ações, acompanhado de dois homens negros vestidos de branco, e o próprio ritual de sacudimento, se apresentam como o ápice da obra e promovem o estreitamento dessas duas margens.

No primeiro momento, identificamos o diálogo por meio da montagem visual criada pelo artista utilizando vídeo e foto como suportes da obra. As imagens não são idênticas, como descrito, mas a própria linguagem de cada mídia estabelece o diálogo entre duas partes. Para Bakhtin não existe relações dialógicas entre objetos, por isso, é necessário entendermos estes suportes midiáticos como linguagem e não como simples superfícies físicas de criação, como telas em branco.

Em um segundo momento, a partir da apresentação imagética oriunda das escolhas estéticas da obra, é que estabelece-se um diálogo mais aprofundado, e de certo modo simbólico, em torno da temática principal: a escravidão.

as casas em que fiz as minhas performances são ambas casas em que os seres humanos perdem a sua humanidade por violência de vária natureza, física, sobretudo, mas também simbólica. Isso, sem sombra de dúvida, une-as. (Novo Banco Photo: 67)

Ayrson Heráclito, ao revelar sua intenção de unir duas partes utilizando a arte e todas as escolhas que envolvem este tipo de trabalho (técnica e linguagem), assume sua busca criativa dentro de um tema, que, pelo distanciamento histórico, poderia ser considerado esgotado.

Nesse sentido, o artista constrói um diálogo visual complexo e se afasta do que Bakhtin considera como um dos problemas das relações dialógicas. Para o autor, essas relações devem ser profundamente originais e não podem reduzir-se a relações lógicas (1992:330)

É justamente na originalidade que se posiciona o trabalho aqui descrito, ao propor um diálogo a partir de uma temática assentado na linguagem das mídias. Uma obra que coloca o espectador, ou entendedor na definição de Bakhtin, como participante do diálogo. Uma terceira parte que não fica alheia, pois tem função interpretativa, um tipo de destinatário que absorve o conteúdo e busca compreendê-lo. "A própria compreensão integra o sistema dialógico como elemento dialógico e de certo modo lhe modifica o sentido total" (Bakhtin, 1992: 332).

O significado desta obra reside no entendimento dos espectadores em revisitar a herança histórica da escravidão. Mesmo que não se conheça previamente o ritual afro-brasileiro que embala a performance, é possível visualizar o diálogo entre dois continentes através das mídias que constituem a obra. Assim, aproxima-se e atinge-se o cerne da questão social abordada no trabalho pelo artista.

O que exige o imediato sacudimento da Casa da Torre e da Maison des Esclaves é a persistência histórica da desigualdade, que vitima incontáveis homens na Bahia e na África nos dias de hoje (Novo Banco Photo 2015:55)

O diálogo nesta obra de Ayrson Heráclito aproxima duas margens, Brasil e África, que compartilham história e cultura, e extrapola a temática da escravidão ao propor como forma visual a interlocução entre mídias, linguagens e culturas.

 

Referências

Bakhtin, M. (1992) Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Bakhtin, M. (1987) The dialogic imagination: four essays. Austin: University of Texas Press.         [ Links ]

Magalhães, M. C. C.; Oliveira, (2011) "W.Vygotsky e Bakhtin/Volochinov: dialogia e alteridade" Bakhtiniana, São Paulo, v. 1, n.5, p.103-115, 1º semestre.         [ Links ]

Novo Banco Photo 2015 (2015). Lisboa: Museu Coleção Berardo. Catálogo.         [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 30 de dezembro de 2015 e aprovado a 10 de janeiro de 2016.

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: guilhermetosetto@gmail.com (Guilherme Marcondes Tosetto)

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