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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.7 no.14 Lisboa jun. 2016

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

D. João Marcos: Bispo e pintor de retábulos hoje

D. João Marcos: Bishop and painter of altarpieces today

 

Ilídio Salteiro*

*Portugal, artista plástico / pintor. Membro do conselho editorial da revista. Licenciatura em Artes-Plásticas / Pintura, Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa (ESBAL). Mestrado em Historia da Arte, Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Doutoramento em Belas-Artes Pintura, Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes (FBAUL).

AFILIAÇÃO: Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes, Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes (CIEBA). Largo da Academia Nacional de Belas-Artes, 1249-058, Lisboa, Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Dom João Marcos (n. 1944), Bispo coadjutor da diocese de Beja, com formação artística em Artes Plásticas Pintura, possui uma obra retabular notável. Os seus modos de operar privilegiam acima de tudo os momentos sublimes do fazer em franca sintonia com a dimensão espiritual do homem e da vida. No âmbito de uma cultura ocidental, de matriz eminentemente cristã, a sua pintura é integrável na estética do Caminho Neocatecumenal, um ramo consequente do Concílio do Vaticano II.

Palavras chave: João Marcos, bispo pintor, retábulo, arte contemporânea, religião, cristianismo.

 

ABSTRACT:

Dom João Marcos (b. 1944), coadjutor Bishop of the Diocese of Beja, with artistic training in Fine Arts Painting, has been making many notable altarpieces. Above all, his way of operating privileges the sublime moments of open mind in harmony with the spiritual dimension of man and life. As part of a Western culture eminently Christian, the matrix of his painting is integrated in the aesthetic of a Neocatechumenal Way, a sizeable branch of the Vatican Council II.

Keywords: João Marcos, bishop painter, altarpiece, contemporary art, religion, Christianism.

 

Introdução

D. João Marcos nasceu em 1949, na aldeia de Monteperobolso, em Almeida no distrito da Guarda em Portugal. Fez a formação religiosa nos seminários de Santarém, de Almada, dos Olivais e no Instituto Superior de Estudos Teológicos de Lisboa. Paralelamente realizou entre 1972 e 1976 a formação artística em Artes-Plásticas Pintura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa (ESBAL), atual Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL).

Ordenado sacerdote em 1974, foi pároco no Milharado, em Camarate e na Apelação entre 1985 e 2002, foi diretor espiritual no Seminário dos Olivais desde 1995 e no Seminário Redemptoris Mater desde 2001 até 2014. Foi membro do Conselho Presbiteral do Patriarcado de Lisboa desde 2001 e cónego do Cabido da Sé Patriarcal de Lisboa de 2003 a 2014. Em 10 de novembro de 2014 foi nomeado Bispo Coadjutor da Diocese de Beja. Nestes lugares e em todos estes cargos a sua atividade artística deixou marcas. Deixou Obra enquanto Arte nascida da profundidade da sua Fé.

Os anos 70 foram uma década pulverizada por diversos fatores como a guerra colonial, para a qual todos tinham uma participação anunciada, as consequências de um Concílio Ecuménico, as ramificações culturais do Maio de 68 e uma revolução transformadora dos modos de estar, ver e compreender o mundo. Neste contexto, o tempo decorrido entre 1972 e 1976 correspondeu a anos conturbados, em Portugal e no mundo, tanto antes de 1974 como depois, com reformas e adaptações aos novos tempos. Nesta onda de mudanças, coube a João Marcos ser padre e ser artista, apesar de como artista se colocar num patamar muito especial: "Eu sou apenas o pincel ou a tinta que Cristo usa, mas é sempre Ele o artista" (apud A Voz da Verdade, 2014).

A opção pela vida religiosa antecedeu a formação artística. A aproximação à Pintura é uma consequência natural de as igrejas também serem espaços de Arte, lugares de beleza, lugares diferenciados, lugares-tempo. Espaços plenos de coisas deslumbrantes aos olhos, ao pensamento e ao espírito. Em todas as igrejas os retábulos são objetos de destaque, livros abertos, momentos de visualidades, obras que louvam Deus e demonstram a fé dos homens. Não será isto o mais relevante da coisa artística?

 

1. Contexto histórico

Em Portugal, a Igreja de Nossa Senhora de Fátima em Lisboa, projetada pelo arquiteto Pardal Monteiro, integrando obras de vários artistas, nomeadamente Almada Negreiros, marcou em 1933-38 o início da modernidade nos espaços religiosos. Posteriormente, nos anos 50, foi decisivo o papel Movimento de Renovação da Arte Religiosa (MRAR), fundado por Nuno Teotónio Pereira (Pereira, 2000) em vésperas do Concílio Vaticano II.

Este Concílio, que se prolongou entre 1962 e 1965, convocado por João XXIII e concluído por Paulo VI, foi posto em prática por João Paulo II, Bento XVI e ainda hoje pelo Papa Francisco. Nele sopraram os ventos do Espírito que vão reformulando a vida da Igreja e tendo consequências diretas ou indiretas no desenho do mundo.

Em 1964 o pintor Kiko Argüello, nascido em Leon em 1939, fundou um movimento religioso muito dinâmico, imbuído de uma estética muito característica. Este movimento, designado por Caminho Neocatecumenal, tem como objetivo suscitar nos cristãos uma fé adulta cultivada em pequenas comunidades, na sua vertente evangelizadora e batismal. Um movimento ao qual a prática pastoral de João Marcos se encontra ligada, com consequências visíveis e evidentes na sua obra pictórica.

 

2. Obra pictórica

Ordenado sacerdote em 23 de junho de 1974, João Marcos também tem tido como missão providenciar a presença da arte do seu tempo no espaço religioso cristão. Reconhece que

as pinturas e esculturas que admiramos nos nossos museus são maioritariamente obras de arte cristã, e as igrejas são, quase sempre, os edifícios mais belos das nossas cidades, vilas e aldeias ( … ) Para nós cristãos, a beleza não é um luxo que possamos dispensar; é própria da nossa condição de filhos de Deus. Não basta que a fé nos ilumine a inteligência e que a vontade aprenda a obedecer, não nos bastam a doutrina e a moral para darmos ao mundo sinais de que o Reino de Deus já está presente. É necessária a beleza (Marcos, 2015).

João Marcos possui uma obra de pintura notável simultaneamente pela qualidade e pela discrição. A qualidade advém de um saber adquirido e de uma prática continuada e persistente, desde os anos 80, com a responsabilidade da intervenção estética nos espaços religiosos cristãos ao serviço da Fé e das comunidades. A discrição advém da satisfação sentida no ato do fazer, como momento de oração ou reflexão, onde a intimidade se confronta consigo própria. Mas em ambas as situações se verificam opções que deixam antever uma profunda consciência sobre quais os modos que deve assumir o objeto artístico nas igrejas, de acordo com uma estética cristã.

Nos seus retábulos procura cruzar a tradição iconográfica cristã com a expressão do pensamento atual sobre a necessidade na beleza nos espaços das liturgias (Marcos, 2005). A sua obra artística encontra-se no centro do país, entre Lisboa e Merceana, a região que o acolheu e onde exerceu a maior parte do seu sacerdócio. Mas esta produção artística não se trata do exercício de dois ministérios em paralelo, o sacerdote e o pintor. Muito menos se trata de uma delas servir para sustentabilidade da outra. E ainda menos se trata de uma mera ocupação de tempo. Os modos de operar de João Marcos correspondem ao de um artista totalmente ao serviço da Igreja, privilegiando acima de tudo o momento sublime do fazer em franca sintonia com a dimensão espiritual do homem convicto da sua Fé e crente numa atividade artística como momento de oração. Os seus retábulos acabam por ser o resultado da sua missão. A missão de edificar, de construir e de oferecer uma abertura para o mistério de Cristo e da Igreja. Neles acontece o recuperar da tradição iconográfica cristã apresentada em linguagem própria dos tempos de hoje (Silva, 2001), mas porventura com alguma densidade critica em relação a outras soluções estéticas contemporâneas ocorridas no espaço religioso cristão, mais próximas dos valores profanos do mundo da arte.

Da vasta produção de João Marcos destacam-se a tapeçaria Ressurreição (1985) na igreja de Rio Maior, O Mistério do Pentecostes (1986) na igreja de Casais Brancos da freguesia de Aldeia Galega da Merceana, Anástasis (1989) na igreja da Sagrada Família no Bairro da Tabaqueira em Rio de Mouro, Em Nome do Pai do Filho e do Espírito Santo (1991) na igreja de Casais da Serra na freguesia do Milharado, concelho de Mafra, O Mistério da Igreja (1992)naigreja da Benedita concelho de Alcobaça, O Túmulo Aberto (1992) na igreja do Seminário de Penafirme concelho de Torres Vedras (Figura 1), O Mistério da Cruz (2003) na igreja de Roussada, Mafra (Figura 2), A Dormição da Virgem (2004) na capela de Calvos, freguesia do Milharado, Mafra, A Vida Manifestou-se (2005) na igreja da Apelação, Loures. Servir (2008) na Cúria Diocesana de Setúbal, Cristo Pantocrator (2005) na igreja da Ramada, Odivelas. (Figura 3), A Páscoa do Senhor (2009) na igreja de Alfornelos, Amadora. (Figura 4), O Batismo de Jesus (2013) na igreja de Ribamar da Lourinhã (Figura 5), O Mistério da Virgem Maria (2013) na igreja de Nossa Senhora de Fátima do Jeromelo, Milharado, Mafra, A Deésis (2013) na igreja da Póvoa da Galega, Milharado, Mafra, e Deus é Amor (2014) na igreja da Brandoa, Amadora.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Nas últimas décadas foram construídas inúmeras igrejas onde as imagens se encontram remetidas à condição de mobiliário acessório ou dispensável ao culto, enquanto nas igrejas de épocas passadas por vezes são utilizadas como fatores de legitimação (Blanchy, 2004). Tais entendimentos não se encontram nos retábulos de João Marcos porque são obras autónomas, incutidas de uma dimensão espiritual centrada na sua própria delimitação geométrica, harmonizadas por simetrias formais e cromáticas.

 

3. Símbolo, drama, doxologia

Na paisagem rural portuguesa dos anos 50 e 60, pontuada por mosteiros, conventos, capelas, igrejas e catedrais, é possível uma aproximação ao mundo das coisas belas, da memória e do sublime. O deslumbramento por essas coisas, diferentes do mundo comum, pode ser experimentado nas igrejas, como museus repletos de dádivas, de arte, nem armazenada nem exposta, apenas como suporte de diálogos e orações.

O desfrute estético que esses espaços propiciam através de imagens perenes aliadas a acontecimentos cénicos transitórios, fascina e aproxima o homem do divino e do artístico simultaneamente. Umas vezes reconhecemo-nos no templo, outras vezes reconhecemo-nos no museu (Pousseur, 1999).

No 41º Encontro Nacional de Pastoral Litúrgica João Marcos refere que … "vivemos hoje um tempo de graça em que é possível recuperarmos as raízes da iconografia cristã, superar o divórcio secular entre a Estética e a Teologia e deixar para trás os equívocos e desencontros que os nossos antepassados tiveram de suportar" … .Esta matéria – arte, estética e cristianismo – foi objeto de estudo para Hans Urs von Balthasar (1905-1988), um importante teólogo que estará na base conceptual de notáveis realizações artísticas, de artistas como Rupnik (1954), Sieger Köder (1925-2015) ou Kiko Argüello (Marcos, 2015), e também João Marcos.

Uma recuperação das raízes da iconografia cristã feita pela palavra e pela imagem. Uma obra artística com um implícito sentido de dádiva e de louvor, e com uma grande sensibilidade estética organizada por um entendimento simbólico da vida cristã, onde espetacularidades barrocas não servirão. A propósito do retábulo O Túmulo Aberto, na igreja do Seminário de Penafirme (Figura 1), escreve

( … ) Quem, habituado a outras formas de arte religiosa, se aproximar desta pintura buscando representações historicistas e alegorias moralizadoras, certamente se dará conta de que não passa por aí o discurso nem o percurso aqui apresentado. Estas imagens são símbolos que condensam a catequese da Igreja (Marcos, 1993).

Pode dizer-se que João Marcos "recria uma iconografia de raiz intemporal e essencialista, na tradição iconológica protocristã, com passagens eletivas pela iconologia bizantina, por Giotto e por Cimabue" (Silva, 2001), ao mesmo tempo que se reconhece que

o aspeto mais interessante do trabalho deste autor consiste na sua linguagem pictórica que se baseia nos ícones ortodoxos. Trata-se de uma atitude estética que merece reflexão, por ser uma tentativa de unir a tradição artística cristã, no que ela tem de mais espiritual, com uma expressão contemporânea (Menéres, 2000).

Na sua obra não se abordam as questões da representação, da espetacularidade e da genialidade, fatores enfatizados desde o século XV até à atualidade. Escrevem-se e pintam-se as palavras e as imagens como metáforas e parábolas em livros abertos. Estes retábulos deixam-nos claramente perceber um processo de feitura essencial, onde o artista se encontra num estado de plena franqueza, de reflexão e de oração.

Admitindo não existir um estilo cristão, porque o cristianismo sempre aceitou e soube expressar-se nos estilos de todas as épocas, João Marcos refere-se a uma Ontologia da Beleza e a uma Estética Cristã caracterizada por três palavras: símbolo, drama e doxologia (Marcos, 2015). Efetivamente estas categorias encontram-se tanto na obra de João Marcos, como na estética do Caminho Neocatecumenal, o movimento fundado em 1964 por Kiko Argüello, e definido por João Paulo II como "um itinerário de formação católica, válida para a sociedade e para os tempos de hoje". Este movimento pretende renovar a Igreja, através de uma Iniciação Cristã num tempo em que o conceito de aldeia global se generaliza, recuperando e reatualizando uma estética radicada nas decisões do II Concílio de Niceia em 787.

 

Conclusão

O entendimento da igreja como lugar do sublime e do excecional na condição humana, entendida tanto como palavra tanto como imagem, está expresso nas palavras de João Marcos quando afirma que "tudo surgiu pela via estética ( … ) Sempre gostei do que é bonito... toda a gente gosta ( … ) Na minha terra, numa aldeia pobre, o que há de bonito e de diferente? A Igreja, com imagens dos santos, as talhas douradas, os cânticos" (apud A Voz da Verdade, 2014).

No âmbito de uma cultura ocidental, de matriz eminentemente cristã, herdeira e integradora de tradições culturais anteriores, os retábulos de João Marcos são fé celebrada, catequese pintada e vida manifestada, com uma evidente dimensão simbólica, dramática e doxológica. São expressão de uma estética cristã atual em que a Beleza é sinónimo de Glória divina, esplendor do encontro da Verdade e do Bem, e em que a subjetividade do artista está aberta para a comunidade que serve, oferecendo aos seus olhos uma expressão do mistério escutado e celebrado.

 

Referências

A Voz da Verdade (2014) "D. João Marcos nomeado Bispo Coadjutor de Beja: 'É sempre Ele o artista.'"[em linha] jornal, Patriarcado de Lisboa. [Consult. 2015-12-12] Disponível em http://www.vozdaverdade.org/mobile/link1.php?id=4249        [ Links ]

Blanchy, L. (2004). Les Expositions d'art contemporain dans les lieux de culte. Grignan: Les Éditions Cumplicités.         [ Links ]

Figueiredo, Pe. Ricardo (Ed.) (2015) D. João Marcos: Imagens da fé, percursos iconográficos, teológicos e pastorais, Lisboa: Paulus.         [ Links ]

João Marcos, E. N. (1993). O Retábulo da Igreja do Seminário de Penafirme. Pró-Manuscrito.         [ Links ]

Marcos, D. J. (2015). "As Artes ao Serviço da Liturgia." 41º Encontro Nacional de Pastoral Litúrgica. Fátima: Boletim da Pastoral Litúrgica.         [ Links ]

Marcos, D. J. (2015, 26 de Fevereiro). A Palavra e o Pão. [Consult. 2015-11-29], de Diocese de Beja: http://www.diocese-beja.pt/site/modules.php?op=modload&name=News&file=article&sid=1382        [ Links ]

Marcos, D. J. (março de 2005). "A Estética na Celebração da Eucaristica". Novellae Olivarum, O Ano da Eucaristia, IV, nº 30, pp. 21-38.         [ Links ]

Menéres, C. (2000). "Artes Plásticas de Temática Religiosa". In M. B. Cruz, & N. Guedes, A Igreja e a Cultura Contemporânea em Portugal (pp. 43-72). Porto: Universidade Católica Editora.         [ Links ]

Pereira, J. C. (2000). "O Movimento de Renovação da Arte Religiosa". Arte e Teoria nº 1, pp. 111-131.         [ Links ]

Pousseur, R. (1999). Les Églises seront-elles des musées. Paris: Les Édition de l'Atelier.         [ Links ]

Silva, J. A. (2001). "Pintura." In C. Azevedo, Dicionário da História Religiosa de Portugal. Rio de Mouro: Círculo de Leitores.         [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 30 de dezembro de 2015 e aprovado a 10 de janeiro de 2016.

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: ilidio.salteiro@gmail.com (Ilídio Salteiro)

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