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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.7 no.14 Lisboa jun. 2016

 

EDITORIAL

EDITORIAL

Criação: da totalidade à hibridação

Creation: from totality to hibridation

 

João Paulo Queiroz*

*Portugal, par académico interno e editor da Revista Estúdio.

AFILIAÇÃO: Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes, Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes (CIEBA). Largo da Academia Nacional de Belas-Artes, 1249-058, Lisboa, Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

A arte estabelece uma articulação entre o pensamento e a coisa, com uma crescente emancipação face a convenções. Mas a emancipação da arte inclui a sua negação ao exigir uma dependência, escondida, da tecnologia. O suporte, antes de ser sensibilizado, já é portador de uma intenção, uma utilidade. Importa, nos contextos abordados na revista Estúdio 14, identificar propostas artísticas, identitárias, interpeladoras. Propõe-se um itinerário de ligações entre pessoas, culturas, passados e presentes, pela arte: uma ligação intermitente com os objectos, os materiais, que ora se tornam vestígios festivos, às vezes cifrados, mediatizadores de uma ligação mais profunda que radica na condição humana.

Palavras-chave: arte, criação, hibridação, emancipação, camp.

 

ABSTRACT:

Art establishes a link between mind and matter, with an emerging emancipation escaping from convention. But the art emancipation includes its denial by requiring a dependency, hidden in technology. The support, before being touched, is already filled with intention, its utility. It matters, in the contexts discussed in the "Estúdio" issue 14, to identify the different artistic proposals and their identities. We propose a route of connections between people, cultures, past and present, art: an intermittent link with objects, materials, which sometimes become festive, sometimes encrypted, media to a deeper connection that underlies in the human condition.

Keywords: art, creation, hybridization, emancipation, camp.

 

A criação pode traduzir-se como a transformação de pensamento em coisa. Quando os materiais ganham um sentido mercê de uma reorganização, uma intenção, esses materiais podem ser lidos. Primeiro dentro da intentio auctoris, depois fora dela, na intentio operis (Eco, 2004:93), agora como discursos, ou como parole (Saussure, 2006).

As "falas" emancipam-se através dos seus sistemas e apropriam-se das superfícies. As ideias projetam-se sobre coisas também outrora pensadas. Os suportes são, em grande medida, portadores de intenções anteriores, que datam da sua produção industrial (Bruno, 2014). Há um suporte na fotografia? Certamente. Mas esse suporte, mesmo antes de ser impressionado, já está portador de uma intenção, já inclui um discurso terceiro, uma utilidade (Flusser, 1985). Todos os suportes incluem uma redundância inevitável.

A arte tem uma prerrogativa sobre a utilidade: dispensa-a ontologicamente. Mas essa utilidade contraria-se na sua materialidade: qualquer peça de arte, aclamadamente inútil no seu valor facial, encontra-se ancorada na utilidade das máquinas e dos suportes que permitem a sua exibição. Na arte contemporânea costuma ser preciso ligar um aparelho. E a arte, parecendo cada vez mais livre e emancipada, exige cada vez mais cadeias de produção, divisão do trabalho, mercadorias, utilidades.

Os artigos reunidos neste número 14 da revista Estúdio abrangem as relações e as distâncias, os materiais e as pessoas, os vínculos temporários que suportam novos pensamentos.

Ilídio Salteiro (Lisboa, Portugal) apresenta, no artigo "D. João Marcos: Bispo e pintor de retábulos hoje", a obra de grande envergadura de um homem de vida consagrada ao ministério de Cristo que, tendo feito o seu percurso inicial como aluno da escola de artes que hoje edita esta revista, o prossegue e reinventa, tomando nas mãos a Arte Sacra, e procurando que o seu trabalho possa constituir "uma direção que outros eventualmente poderão seguir" (D. João Marcos, comunicação pessoal, fevereiro 2016). Nesse sentido nos inspirou a escolha da capa deste número: o olhar, e gesto, sintetizados no seu Cristo Pantocrator, presença central na Igreja da Ramada, em Loures, Portugal. Há um sinal de caminho a ser feito, de caminho a seguir, na atualização da representação, que é forma de mostrar a novidade da Encarnação.

O texto de Guilherme Tosetto (Brasil), "O diálogo nas imagens de Ayrson Heráclito" introduz imagens que estabelecem uma relação entre o Senegal e o nordeste do Brasil, tomando como elo o passado esclavagista e a permanência actual da desigualdade entre os homens.

No artigo "Narrativas Ficcionais de Tunga," Marta Martins (Santa Catarina, Brasil) revisita a 'Teresa' a corda de lençol torcido que permite a fuga de São João da Cruz, seguindo a visão de Santa Teresa. A 'teresa' é agora uma ação de resgate performativo por Tunga, que atualiza os debates da exclusão, onde pontuam os meninos de rua.

Almerinda da Silva Lopes (Espírito Santo, Brasil), em "Apropriação e ironia na instalação 'Vestidas de branco' de Nelson Leirner, "faz uma revisão sobre o percurso do "não-artista," dos anos 60 até aos dias de hoje. A série das instalações "vestidas de branco" ecoa entre o pop que consome a sua imagem, a indústria cultural (Adorno & Horkheimer, 1985), e ainda talvez outras "damas de branco" da América do Sul.

Em "Angie Bonino: Zoon politikón en Videoesfera," a autora Mihaela Radulescu de Barrio (Lima, Perú) introduz-nos no universo da criadora vídeo peruana Angie Bonino, que aborda a hibridação presente na subcultura peruana chicha explorando a desterritorialização e o confronto com a hegemonia política.

José Cirillo (Espírito Santo, Brasil) estuda, em "O redondo, o interior e o exterior: materializações do desejo na escultura monumento 'Tocar o Sol', de Quintino Sebastião," a obra deste escultor bem influente na formação artística em Lisboa (Sociedade Nacional de Belas Artes), recorrendo à metodologia hermenêutica da crítica genética (Espagne & Werner, 1990; Salles, 2008) e à consulta dos numerosos diários gráficos disponibilizados em linha pelo escultor.

O artigo "Marcos Covelo: 'painting with without paint'," de Marta López (Vigo, Espanha) aborda o percurso enquadrado nos estudos de mestrado daquele artista e das suas explorações em torno dos limites da materialidade pictórica e da sua negação (Fernández Fariña, 2011) incorporando ao mesmo tempo uma forte contextualização social e política.

Fernanda Grigolin (São Paulo, Brasil) em "'Tudo está relacionado' de André Penteado" reflete sobre as ligações entre a foto da ativista negra Angela Davis com os demais elementos do atlas warburguiano que se estende pelo espaço de uma instalação de André Penteado.

Em "Silencio en la Casa-escondite de Yolanda Ríos Coello," Ventura Alejandro Pérez (Vigo, Espanha) compara a instalação com os posicionamentos espaciais presentes na representação ocidental: o posicionamento do corpo integra um sentido.

Carmen García & Isabel Hidalgo (Lima, Perú) no artigo "Búsqueda de la identidad en las instalaciones y expresiones de Eduardo Tokeshi, artista visual peruano" abordam as "caixas" producidas pelo artista que abarcam as misturas "chichas," as hibridações andinas de cores e etnias, e que ao mesmo tempo se enquadram na busca dos vestígios coloridos de um homem – el hombre invisible.

No artigo "Fragmentación como interferencia en la obra de Salomé Nascimento," a autora Natalia García (Vigo, Espanha) aborda a obra da portuguesa Salomé Nascimento (n. 1970) que revisita os documentos da escola, alargando o suporte do livro de artista até abranger uma totalidade ampla e fragmentária.

Juan Loeck (Vigo, Espanha) em "Tiempo de dípticos: análisis del trabajo fotográfico-procesual del artista plástico Rubén Ramos Balsa" apresenta a indagação deste fotógrafo que explora os significados da "mensagem sem código" (Barthes, 2009), especificamente a sua inquietação entre a imagem e o que foi fotografado. As imagens duplas parecem querer actualizar o memento mori (Sontag, 1986:23) numa semiose conceptual de limites quase impercetíveis.

No texto "La importancia del lugar en la obra de Carlos Rodríguez-Méndez," Román Corbato (Vigo, Espanha) analisa o trabalho daquele autor galego radicado na Noruega. As suas intervenções nas casas da Galiza registadas em séries fotográficas convidam a um olhar atento e a uma análise ao desconforme, ao inadaptado, ao reapropriado, ao desviado.

Carlos Correia (Lisboa, Portugal) debruça-se sobre "A pintura reflexiva de Gil Heitor Cortesão" interrogando os seus suportes que agem como janelas por onde espreitamos a tinta. E atrás desta vemos cidades indistintas, paraísos abandonados, visões coloniais distópicas que persistem como fantasmas de concreto.

Prudência Coimbra (Porto, Portugal) no artigo "Álvaro Lapa: a imagem e o compromisso com a literatura" estuda a importância do texto e da sua integração no universo pictórico de Álvaro Lapa. Pode-se ver as letras da tinta.

Alfredo Nicolaiewsky introduz, em "Barrão e Bordallo: um diálogo" uma interessante ligação estabelecida entre o artista brasileiro Barrão e a obra do ceramista português do século XIX Rafael Bordallo Pinheiro. A terrina Noé transporta, e resgata liricamente, os seus bichos, no dilúvio pós-moderno.

No texto "A Potência transformadora do 'Caboclo de Arthur Scovino,'" Orlando Maneschy (Pará, Brasil) apresenta as performances participadas nas ruas de Salvador: levando os elepês da Gal para passear … é ao mesmo tempo uma afirmação camp e o seu contrário. O que é importante é o que é menos importante, o ritual inventado, o objeto re-semantizado, o código que procura a sua subcultura, sempre mais ou menos festivo e ostensivamente inútil.

Importa, nestes contextos abordados, nestas diferentes propostas artísticas, sempre identitárias e interpeladoras, recordar o conceito de Camp:

De facto, a essência do Camp é o seu amor pelo desnatural: pelo artifício e pelo exagero. E o Camp é esotérico – uma espécie de código privado, um distintivo de identificação até, entre as pequenas seitas urbanas. [ … ] O gosto Camp é uma espécie de amor, amor pela natureza humana. Saboreia, em vez de julgar, os pequenos triunfos e a desajeitada intensidade da "personagem" [ … ] (Sontag 2004:315; 336).

Fica patente, neste itinerário pleno de ligações entre pessoas, culturas, passados e presentes, a arte: uma ligação intermitente com os objetos, os materiais, que ora se tornam vestígios, festivos, ora cifrados, ora mediatizadores de uma ligação mais profunda que radica na condição humana.

 

Referências

Adorno, Theodor & Horkheimer, Max (1985) Dialéctica do esclarecimento. São Paulo: Zahar. Isbn: ISBN: 857110414X        [ Links ]

Barthes, Roland (2009) "A retórica da imagem", in O Óbvio e o Obtuso. Lisboa: Ed. 70.         [ Links ]

Bruno, Giuliana (2014) "The Surface Tension of Media: Texture, Canvas, Screen." In Bruno, Giuliana (2014) Surface: matters of aesthetics, materiality, and media. Chicago: The University of Chicago Press. ISBN: 9780226104942        [ Links ]

Eco, Umberto (2004) Os limites da interpretação. Lisboa: Difel. ISBN: 9789722906982        [ Links ]

Espagne, Michel & Werner, Michael (1990) "Ce que taisent les manuscrits: les fiches de Walter Benjamin et le mythe des Passages." In Didier, B. & Neefs, J. (Ed.) (1990) Penser, Classer, Ecrire. Coll. Les Manuscrits Modernes. Paris: Presses Universitaires de Vincennes, p. 105-118.         [ Links ]

Fernández Fariña, Almudena (2011) Lo que la pintura no es: la lógica de la negación como afirmación del campo expandido en la pintura. Col. Arte & Estética 28. Pontevedra: Deputación de Pontevedra. ISBN: 978-84-8457-356-2        [ Links ]

Flusser, Vilém (1985) Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Hucitec.         [ Links ]

Salles, Cecília Almeida. (2008) Crítica Genética: fundamentos dos estudos genéticos sobre o processo de criação artística. 3ª ed. revista. São Paulo: EDUC.         [ Links ]

Saussure, Ferdinand (2006) Curso de linguística geral. Lisboa: Dom Quixote. ISBN: 9789722000567        [ Links ]

Sontag, Susan (1986) Ensaios Sobre Fotografia. Lisboa: Dom Quixote.         [ Links ]

Sontag, Susan (2004) "Notas sobre o camp." In Contra a Interpretação e Outros Ensaios. Lisboa: Gótica, pp 315-36. ISBN: 9789727921027        [ Links ]

 

Enviado a 12 de janeiro de 2016 e aprovado a 13 de janeiro de 2016.

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: joao.queiroz@fba.ul.pt (João Paulo Queiroz)

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