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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.7 no.13 Lisboa mar. 2016

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Ruby e a autorrepresentação: encenações de questões de identificação e de identidade em imagens codificadas

Ruby and the self-presentation: staging questions about identification and identity in codify images

 

Eduardo Vieira da Cunha*

*Brasil, artista visual, pesquisador e professor universitário. Bacharel em Artes Visuais, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), 1982; Master of Fine Arts, City University de Nova York; Doutor em Artes e Ciências da Arte, Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne).

AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (PPGAV). Rua Senhor dos Passos, 248 CEP 90020-180 – Centro – Porto Alegre, RS. Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Analisamos um filme de Luciano Sherer, "Ruby" sobre o estereótipo de um artista. Há a construção de uma "persona" pela produção de documentos de lembranças ficcionais. Mas toda a encenação é efeito crítico onde Sherer trabalha com a figura do jovem artista frente a uma série de papéis: o trágico, que busca a recuperação de uma perda, que se identifica com o escuro, que busca o invisível, e que trabalha com o oculto e a sombra. O objetivo é a criação de uma superficção, onde o estereótipo é utilizado para chegar à identificação do próprio artista com o personagem.

Palavras-chave: Identidade, identificação, sombras, superficção.

 

 

ABSTRACT:

This article analyses a movie by Luciano Sherer, "Ruby", about the artist's stereotype. There is a construction of a "persona" through the production of documents of fictional memories. But all the script has a critical effect when Sherer uses the identity of a young artist facing different roles: the tragic that seeks the recuperation of a loss, or looks for the invisible and deals with the shadow and the negative. The objective is the creation of a super fiction, where the stereotype is used to reach the identification of the artist on his own as a character.

Keywords: Identity, identification, shadow, superfiction.

 

Introdução

Há uma diferença entre identificação e identidade, assim como autorrepresentação e autorretrato. Enquanto o autorretrato nos leva a um desvelar, à revelação de condição íntima, a autorrepresentação pode apontar para um estereótipo cultural. A identificação aponta para a esfera das imagens codificadas, e não representa necessariamente identidade. Esta ultima trabalha com instâncias muito mais subjetivas.

No caminho da construção de uma persona, personagem literário onde o autor se encarna, é que o artista Luciano Sherer entra ao viver o personagem Ruby, onde ele assume também a direção e atua como personagem neste filme em HD com 17 minutos de duração, filmado em cores em 2013. Com um caráter deliberadamente assumido do próprio diretor como um pintor trágico, é projeção da imagem do autor, artista ligado ao Pós Graduação em Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil. O objetivo é o de dramatizar a representação, trazendo elementos de uma superficção no sentido utilizado por Peter Hill (Hill, 2000: 25), com parâmetros imaginários projetados sobre cenas do passado do próprio artista. Em Ruby são assumidos procedimentos miméticos com elementos de camuflagem na construção da ficção faz com que aconteça uma mise-en-abîme onde o autor trata a si mesmo como o outro. Sherer também é artista, e trabalha com elementos trágicos, em uma cenografia que inclui altares de ex-votos e imagens fotográficas onde a relação presença / ausência, o negativo, as sombras e o fracasso estão sempre presentes.

O conceito de superficção se revela quando elementos clássicos da estética de cinema documentalse apresentam na tela, onde o personagem principal, pintor outsider, trabalha com temas ligados ao sublime da natureza. Mas o projeto de Sherer ultrapassa o filme: Inclui também uma exposição, onde os trabalhos e objetos do pintor/personagem Ruby são apresentados de forma a embaralhar os limites entre arte e vida, como se realmente ele fosse um artista vivo. Ruby se aproxima e se afasta da noção de scriptor proposta por Barthes (Barthes, 1984: 2) em que o autor funciona mais como um articulador, como que tecendo uma rede, uma trama, aos moldes do escritor ao escrever o seu texto. Ele acaba se enredando na trama, a ponto de suscitar a dúvida do observador: A voz que se ouve seria a do autor, que nos entrega uma confidência, falsa em termos de ficção? Ou verdadeira em termos de superficção, quando a exposição insere-se no cotidiano e no mundo da arte, fazendo com que as obras do pintor fictício sejam colocadas no mercado, ou seja, em uma galeria.

 

1. Os estereótipos confessionais

Sherer apresenta uma série de estereótipos neste filme, que ele classifica como um pseudodocumentário, todos eles ligados às múltiplas identidades de um mesmo artista: o trágico, o que busca a recuperação de uma perda, o que se identifica com a escuridão dos tempos atuais, o que sente a morte se aproximar, e o que se identifica com o lado negativo da vida para trabalhar seus lutos, seus fantasmas. Mas apesar do elemento ficcional, há um rastro de pegadas que se transforma em confirmação de que este artista caminhou por determinados trajetos, com provas de acontecimento, como cicatrizes que atestam a ocorrência de uma ferida.

Elaboramos a hipótese que o artista expõe propositadamente sua narrativa pessoal nesta obra, se utilizando da poética da maldição e da dor para construir um relato de seu próprio martírio, como uma confissão. Desta forma, a narrativa confessional passa a constituir uma identidade, em uma fala que se perde, como uma maneira de aliviar-se do que está retido. Quem fala perde. A confissão nesse filme seria a fala do próprio artista que se perde, como uma dejeção, um abandono.

 

1.1 O trágico

A tragédia de Ruby traz a piedade, o medo. E o prazer. Se o prazer da tragédia consiste em algo intelectual, uma imitação de uma ação sensorial, o prazer trágico viria de uma participação emocional dos espectadores ao se identificarem com o protagonista do drama. Ou seja: este prazer estaria diretamente associado ao modo como o jovem pintor enfrenta situações terríveis. Uma sensação de alivio chega a ser produzida em certos momentos do filme, ao se perceber que o objeto de nosso medo é apenas uma imitação, e não poderá nos fazer mal. Em outras palavras, nessa experiência mimética, nesse jogo de identidade/identificação, decorreria o prazer trágico propriamente dito. É exatamente este tipo de prazer, de origem mimética, e que é experimentado ante uma representação também mimética, como efeito purificador sobre nossas emoções. De parte do observador, que experimenta esta katársis contemplativa, entregamo-nos ao que o artista propõe, e a partir disso, lidamos com o nosso próprio imprevisível e suas regiões mais obscuras e misteriosas. Para Aristóteles, mesmo sem a representação e sem atores, a tragédia pode manifestar seus efeitos. Além disso, "a realização de um bom espetáculo mais depende do cenógrafo do que do poeta" (Aristóteles, 1450: b25).

O documentário, rodado na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai, começa com alguns planos fixos clássicos do gênero. Mas à medida em que vai se desenvolvendo a trama, o personagem vai apresentando desvios de comportamento e estranhos hábitos- contatos espíritas, com uma espécie de altar fotográfico e de ex-votos montados na casa que serve de cenário, delírios, sonhos, resultando em um desequilíbrio psicológico. O filme apresenta uma montagem fragmentada, não linear, e um aspecto atemporal, que criaria uma sensibilidade poderosa que levaria o espectador ao pathos. Vemo-nos em um encontro com o obscuro, o misterioso e o desconhecido.

As sensações de abandono, de desconhecido, de magníficos fantasmas, são suscitadores de compaixão. Sherer trabalha através de Ruby em uma espécie de confissão pública de seus próprios males, onde meta não é a absolvição, mas sim a própria confissão do mal. Agostinho, em suas Confissões diz que o espectador anseia por sentir um sofrimento, que para ele constitui um prazer. Agostinho toca em um ponto decisivo: o prazer por se sofrer ficcionalmente. Ou, mais contemporaneamente, o prazer por se sofrer "virtualmente". O filme transforma-se, portanto, em um espetáculo solitário e interno, um laboratório, principalmente para aqueles que vivem com os inconstantes riscos da criação.

 

1.2 O negativo e as sombras

O filme trabalha em uma espécie de escultura de sombras. Os cenários são angustiantes, escuros, em uma dimensão trágica e composta de inumeráveis zonas sombrias. Desde o início, a obscuridade domina, em um clima de leitura de uma espécie de diário íntimo onde o jovem artista descobre seus fantasmas. Ao convocar a temática do negativo, Ruby abre uma dialética do negativo/positivo. A atmosfera, ao mesmo tempo em que lembra uma caixa preta, nota-se que esta é uma condição necessária da mise-em-scêne para transportar o espectador a esse labirinto.

A estrutura desarticulada do enredo descreve uma espiral narrativa que acaba engolindo em sombras a figura do jovem pintor. Ruby transforma-se em um filme noir, com uma iluminação que produz uma inquietante estranheza, com estreita relação com o estado psíquico do personagem. A técnica cinematográfica, que permite representar estados da alma em imagens, traz um elemento dramático através da profundidade das sombras.

Toda a tradição filosófica ocidental, depois de Platão, se inscreve sob o signo das luzes: luz da verdade de Platão, luz da razão de Descartes, luz do entendimento de Spinoza contra a confusão de opiniões, clareza da consciência que dissipa as brumas. Lembremos do século das luzes, do enciclopedismo se levantando contra as forças das trevas da ignorância e do obscurantismo. Mas esta concepção da verdade como luz, se oporia o pensamento oriental e outra estética própria ao Japão, como o poeta Tanisaki Junichirô em Em Louvor das Sombras. Verdadeiro hino à penumbra, este livro fala da agressão provocada pelas luzes brancas, que destroem a intimidade. Ruby aproxima-se deste sentimento quando fala de um tempo de espera e de vigilância, do reflexo à reflexão. Do espelho à especulação. Enfim, a sombra corresponde a esta parte íntima de si mesmo, do silêncio do jovem artista. A primeira sombra, no purgatório da Divina Comédia de Dante, corresponde também à primeira luz. O estágio do negativo seria uma passagem necessária para atingir o objetivo final do personagem: a ascensão divina.

 

1.3 As perdas

Perdas infinitas, restos infinitos. A perda é abordada em Ruby nesta dialética de possibilidade de recuperação, de sublimação em forma de arte. Uma espécie de biografia da perda, da experiência da perda e da dificuldade de falar sobre esta experiência. A noção da perda é reforçada no filme pela própria geografia: uma zona de fronteira onde há uma mistura de duas línguas, o português e o espanhol. O próprio personagem fala este estranho dialeto, característico da fronteira entre Brasil e Uruguai. Perda de identidade. O filme deixa claro que Ruby, neste mundo de incertezas, quer fixar a experiência pela pintura. Para isso, a pintura tem que ser sombria, pois transfere a experiência do mundo. É como se a dramaticidade das pinturas de Ruby fosse visível apenas em negativo. A emoção está nos silêncios, na contenção. Ele nos dá os contornos da perda pelo que está em volta.

 

2. Os lugares do Eu

A opção do artista de tornar a sua vida pública, através da apresentação de um filme/diário, mesmo que superficicional, expressa o caráter inconcluso da vida e revelaa mais ssobre o processo criativo do que a obra aacabada em si. Há um romantismo desse personagem que, aliada a presença de uma sensibilidade moderna associaadaa ao espetáculo, tem o desejo de conhecer o indivíduo-artista, o gênio atrás da obra. O artista se despe (Figura 1) de uma condição elevada, para mostrar-se comum, através de atos e costumes comuns. E é como se o público tivesse a ilusão de compaartilhar de seus momentos sagrados de criação. Os espectadores, cúmplices, assistem ao processo criativo em um lugar privilegiado, característico do documentário cinematográfico. A instabilidade do eu fica como pegadas na areia.

 

 

Conclusão

As sombras do filme de Sherer trazem a representação de um mundo onde o dentro e o fora se confundem constantemente (Figura 2). O dentro é projetado sobre a superfície do fora, o que provoca no espectador certa incredulidade. As inserções das obras do artista Ruby no quotidiano das galerias contribuem ainda mais para confundir e provocar um sentimento de incerteza. O termo "ficção" não é abordado por Sherer como oposto de verdade ou realidade, mas como propositor de realidade, e como maneira crítica de viver o presente. Podemos retomar aqui a frase de Lacan: "Toda a verdade tem estrutura de ficção" (Lacan, 1981: 132). O filme de Sherer fala sobre identidade e identificação, mas também fala da perda como catalisador da criação artística. Um dos pontos mais interessantes do filme é justamente permitir a observação do diretor como artista plástico. Ao fazer isso, e ao explorar a identificação de sensibilidades com personagem de uma superficção, Sherer faz o que a poesia deve fazer: mostrar que somos únicos, mas que temos uma humanidade em comum.

 

 

Referências

Agostinho (1999) Confissões. São Paulo: Nova Cultural. ISBN 98-95465-08-3        [ Links ]

Aristóteles (1992) Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: EDUSP. ISBN 85-85470-06-2         [ Links ]

Didi-Hubermann, Georges (2000) Connaissance par Le Kaleidoscope. Études Photographiques n° 7, mai 2000, pg 5. Paris: Societé Française de Photographie. ISBN 2-911961-05-6        [ Links ]

Duarte, Rodrigo (org) (2002) Katarsis: reflexôes sobre um conceito estético. Belo Horizonte: CiArte. ISBN 858707-346         [ Links ]

Hill, Peter (2000) Superfictions: the creation of fictional situations in international contemporary art Practices. Melbourne: University of Melbourne.         [ Links ]

Junishiro, Tanisaki (2007) Em louvor das sombras. São Paulo: Companhia das Letras. ISBN 97-8853-5910292        [ Links ]

Lacan, Jacques (1992) "Livro 17: o avesso da psicanálise" O Seminário. Rio de Janeiro: Zahar. ISBN 876-8877-23-9        [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 21 de agosto de 2015 e aprovado a 23 de setembro de 2015.

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: ecunha@cpovo.net (Eduardo Vieira da Cunha)

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