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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.7 no.13 Lisboa mar. 2016

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Identidade tecida: Rosana Paulino costurando os sentidos da mulher negra

Woven identity: Rosana Paulino sewing black women's senses

 

Tatiana Lee Marques* & Rafael Schultz Myczkowski**

*Brasil, Cineasta e Videasta. Bacharelado e Formação: Psicólogo, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Especialização: Cinema, Escuela Internacional de Cine y TV (EICTV), Cuba e National Film and Television School (NFTS), UK. Mestrado Artes Visuais, Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Brasil.

AFILIAÇÃO: Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Centro de Artes, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais. Av. Madre Benvenuta, 2007, Itacorubi Florianópolis – SC. CEP: 88035-001 Brasil.

**Brasil, Artista Plástico. Bacharel em Pintura pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP). 2006-2009. Licenciatura em Desenho, EMBAP. 2007-2010. Mestrado em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).

AFILIAÇÃO: Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Centro de Artes, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais. Av. Madre Benvenuta, 2007, Itacorubi Florianópolis – SC. CEP: 88035-001 Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

O presente artigo analisa a obra de Rosana Paulino (São Paulo, 1967) que, com o uso de fios e linhas de sua herança-memória autobiográfica, traz à tona a discussão da identidade simbólica, do estigma da mulher negra e da sujeição do corpo, marcando uma ranhura na historiografia hegemônica, fazendo emergir a questão de gênero e raça na arte hoje.

Palavras chave: arte, estigma, sujeição, gênero.

 

ABSTRACT:

This article presents the work of Rosana Paulino (São Paulo, 1967) that , with the use of threads of her own autobiographical memories and heritage brings up the discussion of symbolic identity , the stigma of black women and subjection of the body , marking a slot in the hegemonic historiography and giving rise to the question of gender and race in art today.

Keywords: art, stigma, subjection, gender.

 

Introdução

Sobre os objetos que circundam nossa existência são projetados imaginários quanto ao seu uso, as inserções culturais, de classe, entre outras categorizações. Podemos, neste caso, também pensar os objetos como símbolos de estigma, diferenciação, agrupamento e categorização. Fios de costura, tecidos, agulhas, argila, pequenas bonecas de plástico, bastidores de bordados são alguns elementos com os quais Rosana Paulino (São Paulo, 1967), enquanto artista brasileira contemporânea, cria sua obra a partir da herança-memória autobiográfica. Se, por um lado, a sociedade tende a convencionar qualidades e descréditos a tais objetos, por outro, porém, a arte permite interrogar o significado atribuído a tais convenções, subvertendo-as. É o que nos propõe Paulino que, através de suas obras, agrega novas possibilidades de leitura para esses elementos transformando-os em genuínos depositórios da história da mulher negra no Brasil. Assim, os objetos banalizados dos aspectos do cotidiano dito feminino adquirem a densidade das memórias veladas e da trajetória silenciada da mulher na história e na arte. A carreira artística de Paulino, ao revelar a busca por uma subjetivação e reivindicação de sua identidade social enquanto mulher, negra e artista no Brasil, traz à tona a discussão da identidade simbólica e marca uma ranhura na historiografia hegemônica, fazendo emergir a questão de gênero e raça na arte hoje.

 

1. Tessituras e transgressões

A característica marcante das obras de Rosana Paulino é certamente a tessitura de uma identidade simbólica a partir das vivências autobiográficas e da memória da história da mulher negra no Brasil que impregna, de modo velado, o tecido social do país.

No ato de tecer vida e arte, Paulino se define como uma "Penélope contemporânea ou uma enorme aranha" (Paulino, 2011: 25) que usa os elementos do "feminino", como tecidos e linhas, para tornar visível sua própria existência. Esse processo representa uma maneira concreta de se colocar no mundo ao mesmo tempo em que desvela vestígios de um universo recôndito, de uma memória emotiva arquivada no corpo pessoal e social.

A sua investigação dos aspectos autobiográficos partem do fato de não se reconhecer e, a partir daí, questionar a prática artística atual:

Onde se situa a artista que subia em pés de fruta, que assistiu a diversas festas religiosas quando criança, que teve em sua criação um mundo mágico relacionado à cultura popular e que, depois de crescida, não se reconhece no universo da arte contemporânea que a circunda? (Paulino, 2011: 23)

Paulino encontrou nos fios a resposta para sua pergunta. A escolha das linhas como material expressivo para sua arte partiu de reminiscências de infância:

A minha mãe bordava... bordou durante muito tempo pra ajudar no sustento da casa... então eu aprendi a bordar, cheguei a ajudar minha mãe fazendo uns pontinhos simples de bordado e eu gostava disso. (...) isso faz parte da minha história (Rosana Paulino, entrevista concedida a Rafael Schultz e Tatiana Lee, Florianópolis, 13 de ago. de 2015).

Os fios e tecidos, contudo, são ferramentas que Paulino utiliza para questionar os imaginários sobre o feminino, para criar uma digressão onde tais objetos geram a ressignificação dos locais simbólicos e sociais alocados ainda hoje às mulheres, sobretudo as negras, que ainda carregam a sombra e a herança do estigma da escravidão. A costura, em suas obras, toma o sentido de repressão e violência velada.

Na sua série mais conhecida, intitulada "Bastidores" (1997), partes do rosto de mulheres negras são costuradas de maneira grosseira, convertendo o bordado em transgressão (Figura 1). Aqui os fios não são delicados, formando desenhos que deleitam os olhos como se espera dos bordados. Ao contrário, os rostos com partes brutalmente bordadas evidenciam a violência sobre os sentidos das mulheres, impedidas de falar, olhar, pensar e, ao mesmo tempo, escancarando o corpo domesticado e as relações de poder veladas.

 

 

Bamonte (2008) ressalta o quanto a linha "fere" a imagem para criar a obra de Paulino (2008, p. 295). Simioni (2010) vai ainda mais adiante ao mencionar como a violência da linha sobre a imagem revela a memória da experiência não resolvida da escravidão, onde as negras podiam ser impunemente amordaçadas. De fato, a figura com a boca selada pelos fios (Figura 2), remete imediatamente à mordaça utilizada como castigo infligido aos escravos (Figura 3). Essa tortura, conforme nos esclarece Simioni (2010), era utilizada visando condenar ao silêncio, mas também para impedir que bebessem álcool, comessem terra em tentativas desesperadas de suicídio ou, ainda, para que não engolissem pepitas de ouro durante o trabalho nas minas.

 

 

 

 

A imagem do Castigo de Escravos é citada posteriormente por Paulino em sua tese doutoral como uma imagem síntese da situação da mulher negra que se perpetua até os dias de hoje. A artista é consciente da situação de estigma social a que está submetida essa parcela da população brasileira:

É sabido que, mesmo quando possuidora de elevado nível educacional, a mulher negra é quase sempre vista como não apta a executar trabalhos que requeiram elevada qualificação profissional. Esta visão, fruto de claro preconceito racial e de gênero, tem marcado nossa sociedade até os dias atuais (Paulino, 2011: 49).

Paulino parte da representação da mulher estigmatizada, dentro do conceito de Goffman (1988) de indivíduo inabilitado socialmente para a aceitação plena, e utiliza os fios como uma tentativa de costurar o lugar da mulher negra na história, transparecendo o silenciamento velado exercido sobre essas mulheres ainda na contemporaneidade.

Para Jaremtchuk (2007) as imagens da série Bastidores remexem nos resquícios daquela condição de controle e silenciamento a que as escravas eram submetidas chegando até a violência doméstica dos dias de hoje, de modo que essas costuras "parecem agir sobre cortes profundos." (Jaremtchuk, 2007: 95)

Os bordados de Rosana Paulino representam suturas desesperadas sobre feridas ainda abertas. É nesse sentido que podemos perceber o corpo na obra de Paulino como arquivo, depositário de uma história ainda em construção, aberta e pedindo que a revisitem.

Na obra Ainda a Lamentar (Figura 4) temos outro exemplo da sujeição da mulher: os fios envolvem o corpo mutilado de uma figura feminina, curvado sob o esforço físico a que está sujeito. As linhas claras contrastam com a superfície escura da peça de cerâmica fria, envolvendo-a, pressionando sua cintura e pescoço. A figura, sem braços, inclina o corpo para frente sugerindo o forte empuxo dos fios que a aprisionam, cujos emaranhados a prendem a um tronco de madeira. Sobre a madeira encontram-se elementos de força simbólica: um pequeno bebê de plástico, uma aliança dourada, uma pequena estatueta branca que é a imagem de uma homem ereto. Tais elementos, juntos, conferem potência à obra e sugerem uma leitura que transcende a análise isolada neles mesmos. E novamente falam da violência velada a partir do cotidiano.

 

 

O procedimento de sujeição faz parte de uma "economia política do corpo" (Foucault, 1987), que visa a docilidade e a utilidade do corpo-sujeito. É exatamente o que vemos nesta obra de Paulino, onde a mulher é colocada em situação de onde se extraem suas forças vitais em uma relação utilitária, parte de uma ideologia de submissão, em um sistema lógico onde a mulher é responsável pela casa, pela família, pelo serviço ao marido, como simbolizado pelos elementos que constituem o fardo carregado. Nesta obra de Paulino ainda temos a presença do pequeno homem branco ereto, mostrando como a força da mulher negra subjaz a potência do poder patriarcal e branco. Significativa, nesse sentido, é também a obra Ama de Leite (Figura 5), onde um torso de mulher, sem rosto, portanto sem identidade, amamenta bebês brancos.

 

 

As obras e reflexões propostas pela artista são partes inerentes a sua existência social, como mulher e como negra, unida pelas tramas e fios da prática criadora.

 

Conclusão

Rosana Paulino busca, com seus fios e tramas, mostrar que as feridas, escondidas sob a aparente docilização naturalizada do corpo, são profundas fissuras no tecido social, político e histórico, da qual a história da arte não sai incólume. Ao lançar a reflexão sobre essa realidade, a artista propõe abrir o debate sobre a condição e alteridade necessárias para a convivência e dissolução de estigmas.

A adaptação dos materiais empregados por Rosana em suas obras e sua própria experiência enquanto mulher e sujeitada aos preconceitos, são uma constante em seu processo criativo.

O resultado é uma obra intimista, gerando uma poética onde noções de corpo domesticado, estranhamento, desterritorialidade, violência velada e corpo enquanto arquivo são articulados ao redor da discussão da identidade simbólica marcada pelo estigma da marginalidade a que está restrita a arte de gênero e raça perante a historiografia hegemônica.

 

Referências

Bamonte, Joedy Luciana Barros Marins (2008). A Identidade da Mulher Negra na Obra de Rosana Paulino. Florianópolis: ANPAP, 17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas. [Consult. 2015-08-18] Disponível em URL: http://anpap.org.br/anais/2008/artigos/028.pdf        [ Links ]

Foucault, Michel (2009). Vigiar e Punir. ISSN 36. ed. Petrópolis, RJ: Vozes.         [ Links ]

Goffman, Erving (2012). Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. ISSN 9788521612551. 4. ed. Rio de Janeiro: LTC.         [ Links ]

Jaremtchuk, Dária Gorete (2007). "Ações políticas na arte contemporânea brasileira". Concinnitas (UERJ), v. 01, p. 87-95.         [ Links ]

Paulino, Rosana (1997). "Entrevista de Rosana Paulino". In Panorama de arte atual brasileira/97. Catálogo.(Texto crítico Tadeu Chiarelli). São Paulo : MAM.         [ Links ]

Paulino, Rosana (2011) Imagens de sombras. São Paulo: Tese Doutorado, Escola de Comunicações e Artes / Universidade de São Paulo. 98 pp. [Consult. 2015-08-18] Disponível em URL: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27159/tde-05072011-125442/publico/tese.pdf        [ Links ]

Simioni, A. P. C (2010). Bordado e transgressão: questões de gênero na arte de Rosana Paulino e Rosana Palazyan. IN: Proa – Revista de Antropologia e Arte [on-line]. Ano 02, vol.01, n. 02, nov. 2010. [Consult. 2015-08-10] Disponível em:http://www.ifch.unicamp.br/proa/ArtigosII/anasimioni.html ,         [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 07 de setembro de 2015 e aprovado a 23 de setembro de 2015.

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: tatianalee@yahoo.com (Tatiana Lee Marques)

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