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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.7 no.13 Lisboa mar. 2016

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Nuno Gama e a identidade que se veste

Nuno Gama and the identity that one puts on

 

Ana Sofia Ré de Oliveira Palmela*

*Portugal, professora e artista visual. Licenciatura em Artes Plásticas – Pintura pela Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes (FBAUL); Pós-graduação em Educação Artística, FBAUL; mestranda em Ensino das Artes Visuais Universidade de Lisboa, Instituto de Educação (IEUL).

AFILIAÇÃO: Aluna do Mestrado em Ensino das Artes Visuais, Universidade de Lisboa (UL). Alameda da Universidade,1649-013, Lisboa, Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Nuno Gama é um estilista português, cujas criações se popularizaram pela característica portugalidade. Através de uma abordagem que relaciona a roupa com modos de pensar, analisa-se a forma como o estilista reflete, nas suas criações, aspetos de três níveis da sua identidade: pessoal, familiar e nacional. Apesar de não podermos despir a identidade, a aderência às roupas de Nuno Gama comprova que a identidade é também algo que se veste.

Palavras chave: moda, self, níveis de identidade.

 

ABSTRACT:

Nuno Gama is a Portuguese fashion designer, who is known for the portugality of his works. Based on an approach that links clothes to ways of thinking, Gama's creations are analyzed in how they reflect aspects of his three levels of identity: personal, familiar and national. Although identity isn´t something that we can undress, Nuno Gama's clothes seem to suit us well enough to say that identity is also something we put on.

Keywords: fashion, self, levels of identity.

 

Introdução

O criador que me proponho abordar desenvolve o seu trabalho na área da moda, cuja visibilidade passa por um circuito diferente do mundo das artes plásticas. Nuno Gama, natural de Azeitão, tendo residido no Porto desde o início da carreira até 2012, e vivendo atualmente em Lisboa, é um estilista e designer de moda que não se resume apenas vestir o seu cliente. O seu trabalho passa também por uma incontornável reflexão sobre si a identidade cultural portuguesa, ao repensar o ser português nas suas criações. Testemunho disso é a recorrente utilização de símbolos nacionais, bem como materiais e técnicas tradicionalmente portuguesas.

A sua dedicação a projetar a portugalidade, dentro e fora de portas, nas peças e nos desfiles que cria valeu-lhe, no passado 10 de Junho, a condecoração por mérito civil da Ordem do Infante D. Henrique.

 

1. Chapéus e modos de pensar

É comum a associação entre a nossa identidade e o que vestimos ou calçamos, que mais não é do que um reflexo do que somos e do que pensamos. A expressão da língua inglesa put yourself in my shoes explicita esta utilização do calçado como metáfora para o próprio modo de pensar de cada um – o ser capaz de se abstrair do seu mundo, para pensar pelo ponto de vista do outro.

É a partir dessa necessidade que Edward Bono (2000) criou o método dos seis chapéus do pensamento: como forma de superar a confusão e a desorganização do pensamento entre diversas pessoas, criando uma alternativa para a dialética socrática. Através da utilização consecutiva dos chapéus coloridos procura-se focar o olhar de todos, simultaneamente e em determinada direção, para que nesse modo de pensar sejam lançadas as considerações ou opiniões de cada uma das pessoas. Convém reter esta noção de layout na apresentação destas propostas, pois ninguém as deve rebater ou julgar, por mais ridículas ou desajustadas que sejam. A cada chapéu correspondem diferentes enfoques na forma de pensar. No final, depois de todos terem colocado os diversos chapéus, a solução deverá ser óbvia para todos, sendo que nos impasses é a decisão emocional que prevalece, com o uso do chapéu vermelho (Bono, 2000: 175).

O que pretendo reter desta metáfora dos chapéus do pensamento é que identidades diferentes (criador de moda e espetador), pensando de modo diferente, podem concluir o encontro que é um desfile de moda, olhando todos na mesma direção.

 

2. Os outros do Eu

As criações de Nuno Gama refletem inevitavelmente aspetos da sua identidade e do seu modo de pensar sobre si, sobre os outros e sobre o mundo. Quando falamos de identidade imaginamos que a ela corresponde um único par de sapatos, um único ponto de vista que se "calça", e esquecemos que a nossa individualidade se constrói por níveis que, tal como as roupas, vestimos por camadas.

É genericamente aceite que "different self-construals may also coexist within the same individual, available to be activated at different times or in different contexts." (Brewer & Gardner, 1996: 83) Há uma distinção que é traçada na generalidade das teorias do self que distingue o self pessoal do self social. O primeiro diz respeito às nossas características mais próprias, às nossas idiossincrasias, no fundo, tudo o que nos distingue dos demais, enquanto que o segundo revela aspetos que colocam o individuo em concordância com outros indivíduos, ou com outros grupos sociais (Brewer & Gardner, 1996: 83).

O self social constrói-se por relação a outros grupos sociais, e essa construção processa-se a vários níveis, consoante o grupo social. Nas relações interpessoais com outros significativos ou grupos que interagem proximamente (de que é exemplo a relação com o parceiro, os familiares ou o grupo de amigos), forma-se o self interpessoal, que tende a identificar-se com esses outros com quem convive cara-a-cara. Nas relações com outros grupos sociais mais impessoais, a identificação faz-se por meio de um traço comum, como é o caso de grupos profissionais, ou a partir de uma identidade coletiva como a identidade nacional (Prentice, Miller & Lightdale, 1994, cit. por Brewer & Gardner, 1996: 83).

É a partir destes três níveis de identidade, baseados respetivamente no self pessoal, interpessoal e coletivo, que proponho a minha abordagem às criações do estilista Nuno Gama, por considerar que este criador ativa em diferentes momentos a expressão destes selves nas roupas e nos desfiles que cria.

 

3. A identidade que se veste

As peças de Nuno Gama servem de suporte a uma plataforma de expressão / comunicação, onde o estilista joga visual e conceptualmente com diversos aspetos de três níveis da sua identidade, que eu distingui com as designações de individual, familiar e nacional.

O self individual não se pode dissociar do self familiar, nem do self nacional. Estes três níveis estão intimamente conectados. Como Brewer refere: "when collective identities are activated, the most salient features of self-concept become those that are shared with other members of de in-group" (1991, cit. por Brewer & Gardner, 1996: 84).

Podemos assim falar de uma lente que, ao focar com uma determinada aproximação sobre um nível de identidade, faz ressaltar do self pessoal apenas as características identitárias que respeitam a um determinado nível. Por essa razão, irei abordar esta questão numa perspetiva construída em zoom, a partir do nível individual, passando pelo familiar, até ao nacional.

 

3.1 A identidade individual e os jogos de palavras

Em Dezembro de 2008 a loja que o estilista tinha no Porto foi assaltada. Na coleção seguinte (Outono / Inverno 2009), Nuno Gama, com a sua capacidade de brincar consigo próprio, deu expressão a esta violenta subtração do seu trabalho. Jogando com o duplo sentido do seu apelido, criou uns cachecóis (Figura 1) onde se lia a expressão "GAMADO" (em linguagem popular "roubado"). Era uma exteriorização de um acontecimento pessoal, mas quando Nuno Gama afirma que "tu és aquilo [as suas criações] e perder isso é perder tudo" denota que a sua identidade é, em grande parte, sustentada pelo seu trabalho. Na realidade, ao perder o seu trabalho, perdeu-se, mas ironicamente, mesmo quando foi "gamado" reteve o seu nome.

 

 

3.2 A identidade familiar e as referências geográficas e poéticas

Este segundo nível de identidade foi por mim designado por familiar, porque é relativo à esfera do criador que representa o lar e as relações familiares. É em Azeitão e na Arrábida (concelho de Setúbal) que Nuno encontra o seu lar geográfico, da mesma forma que encontra na família o lar emocional. Por essa razão, quando ele identifica, em entrevista ao/à autor(a) em 2013, "o primeiro fascículo" da sua vida, Nuno Gama relaciona simultaneamente estes locais com todas as referências familiares e de infância que o estruturaram como pessoa. Há um pleno reconhecimento disso quando ele reforça, noutra entrevista, a propósito da sua infância:

Quando fiz 20 anos de marca, fiz uma grande introspecção que me fez perceber o que era essencial nisto tudo. E o essencial sou eu e a minha marca. Quando percebi isto, achei que fazia sentido fazer uma colecção com este tema. A Arrábida tem uma presença fortíssima na minha pessoa e no meu carácter, tal como a minha família, que é o meu pilar. Para mim, o símbolo disso é a Arrábida (em entrevista a Carrilho, 2015).

Da mesma forma existe outra referência cultural conterrânea que é incontornável: o pedagogo e poeta, seu familiar, Sebastião da Gama.

( … ) perante a minha família eu tenho um exemplo familiar de que a poesia, de que o sonho, de que a forma diferente de estar não é crime. Antes pelo contrário, é um motivo de orgulho para todos nós ( … )(em entrevista à autora em 2013).

Na coleção de Primavera/Verão de 2015 o estilista homenageou a Arrábida (Figura 2) que era mais do que uma localização geográfica, era parte de "uma suculenta memória de infância", como descreveu pelas suas palavras (Correio da Manhã, 2014, 12 de outubro). O desfile foi pontuado com a declamação de poemas de Sebastião da Gama e as propostas remetiam para a experiência da Arrábida na dupla faceta de serra e praia: por um lado, os grilos que se ouviam sobre a música de fundo; por outro, os elementos marítimos e as riscas que aludiam aos toldos na praia. Vivências e referências que eram familiares ao estilista.

 

 

3.3 A identidade nacional, os símbolos e a crise

O nome do estilista já está intimamente ligado à nossa história, pois partilha o seu apelido com o grande navegador Vasco da Gama. É, pois, com naturalidade que associa no seu logótipo a cruz de Cristo ao nome Nuno Gama (Figura 3). Em entrevista ao/à autor(a), e como ele próprio descreve, "a cruz está assente sobre o O do Nuno, e o O do Nuno não é mais do que globo terrestre", o que é claramente assumido como uma intenção de deixar, à semelhança do seu antepassado, "a marca do Nuno Gama no mundo". O discurso do estilista funciona muito neste registo de "querer provar ao mundo que nós somos bons". Este "nós" é um self coletivo que ele assume e que se confunde com o seu self pessoal. Por um lado, afirma a sua marca, mas por outro desenvolve um papel quase de curador, no sentido daquele que cuida e que gere as potencialidades criativas, do património simbólico da cultura portuguesa.

 

 

Neste terceiro nível de identidade o estilista também não se furta à necessária e consciente reflexão crítica sobre a atualidade do seu país. Há uma consciência muito clara de que é importante estar atento aos outros e ao mundo para comunicar a sua mensagem criativa com eficácia.

Um exemplo magistral desta comunicação bem-sucedida foi o final do desfile da coleção Primavera/Verão 2013, na ModaLisboa, em Outubro 2012. A emoção da reação do público foi notória. Os manequins surgiram, em grupo, lembrando as manifestações que assolavam o país, envergando t-shirts com a frase "Eu quero é ser feliz" ao peito, amordaçados com um sorriso triste (Figura 4). O sentimento que Nuno Gama confessou ser um grito seu, bebia muito de motivações pessoais e profissionais, como justificou:

Eu quero ser feliz! Eu vim para Lisboa porque queria ser feliz, eu queria estar com a minha família, eu queria ter a minha vida, eu queria abrir as minhas asas (em entrevista à autora em 2013).

 

O país atravessava então um momento crítico de crise económica e reagia à vaga de austeridade que havia sido imposta pelo governo. Na expressão da sua mais íntima identidade, confessando que não era sua intenção dar voz a mais ninguém que não a si próprio, o grito do Nuno Gama foi também o grito de todos os presentes.

A manifestação que se encenara na passerelle por um desejo tão simples e puro, funcionou para todos como um mecanismo catártico das angústias provocadas pela crise, ou por qualquer outro motivo opressor dos mais básicos direitos, quanto mais não seja o direito a sonhar.

 

Conclusão

Nuno Gama iniciou a sua carreira a criar roupa para si próprio, mas nos 27 anos que completou de carreira na moda, teve também de dar resposta às necessidades dos seus clientes. Nunca se despiu de quem é, nem das identidades que o vestem, das mais íntimas às mais globais, e nunca deixou de o transparecer nas suas criações. É, por isso, curioso que a constante portugalidade de Nuno Gama encontre tanta aceitação no estrangeiro, já que é fora do país que reúne a maior parte dos seus clientes. Em Portugal, onde as referências simbólicas e culturais produziriam mais eco, encontra muitas vezes o preconceito e a desconfiança, que em nada se prende com a qualidade, dedicação e perfecionismo do seu trabalho. É apenas um sintoma que Portugal não está bem na sua pele, que os portugueses têm dificuldade em vestir a sua própria identidade, em aceitá-la e assumi-la.

Se tantas vezes Nuno Gama conseguiu pôr a nu esta conclusão, continuará decerto a apresentar propostas das suas visões de si e dos seus mundos, onde criador e público, olham na mesma direção e "vestem a [mesma] camisola".

 

Referências

Bono, E. (2000). Six thinking hats. London: Penguin Books.         [ Links ]

Brewer, M & Gardner, W. (1996). "Who is this "We"? Levels of collective identity and self representations". Journal of Personality and Social Psychology. 71 (1), 83-93.         [ Links ]

Carrilho, R. (2015, Março 15). "Nuno Gama: 'Quero que os homens que desfilem para mim incendeiem tudo à sua volta'." Sol. Disponível em: http://www.sol.pt/noticia/127041#close        [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 7 de Setembro de 2015 e aprovado a 23 de setembro de 2015.

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: menina.re@gmail.com (Sofia Ré Palmela)

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