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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.7 no.13 Lisboa mar. 2016

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Lucia Castanho e o mito do coração como lugar dos sentimentos

Lucia Castanho and the heart myth as a place of the feelings

 

Marcos Rizolli*

*Brasil, artista visual. Licenciatura em Educação Artística (Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC Campinas); Mestrado e Doutorado em Comunicação e Semiótica: Artes (PUC São Paulo, 1993; 1999).

AFILIAÇÃO: Universidade Presbiteriana Mackenzie; Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura (Coordenador); Grupo de Pesquisa Arte e Linguagens Contemporâneas – CNPq (Líder). Rua da Consolação, 930 – Prédio 16. São Paulo (SP) CEP 01302-907, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

A artista brasileira Lucia Castanho vem desenvolvendo uma série expressiva inspirada na personagem Ofélia, originalmente apresentada por William Shakespeare, em Hamlet. A série, ao mesmo tempo que aborda uma configuração única – o coração – transborda em multidimensionalidade – em diferentes modalidades artísticas, através de diversificadas materialidades. Do uno ao multi, a artista determina a potência da linguagem – em imagens do feminino.

Palavras chave: linguagem e sentimento, Ofélia, Lucia Castanho.

 

ABSTRACT:

The Brazilian artist Lucia Castanho has developed an impressive series inspired by Ophelia character, originally presented by William Shakespeare in Hamlet. The series, as the same time that emphasizes a unique configuration – the heart – overflows into multidimensional – in different artistic forms through diverse materiality. From the uno to the multi, the artist determines the potency of language – through images of the feminine.

Keywords: language and feeling, Ophelia, Lucia Castanho.

 

Introdução

Lucia Castanho é uma artista brasileira contemporânea, com formação doutoral e experiente em docência nos campos da arte e do design. Vive e mantém ateliê em Sorocaba, cidade próxima a São Paulo. Em sua cidade, ocupa espaço de liderança cultural, sempre envolvida em ações públicas para o desenvolvimento da comunidade artística local – em especial, à frente da Associação de Educação, Cultura e Arte – AECA, com o objetivo de criar o Museu de Arte Contemporânea de Sorocaba – MACS, cujo processo de implantação reconhece estágio bem avançado.

Na esfera produtiva, a artista expõe desde 1986 e está representada em acervos de importantes instituições de arte e cultura: Museu de Arte de São Paulo – MASP; Museu de Arte Moderna de São Paulo – MAM; Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo – MAC-USP. Sua obra é também representada por importantes Galerias de Arte – citemos duas: Monica Filgueiras, em São Paulo; Art Office Roberta Karam, em Porto Alegre.

Na esfera criativa, Lucia Castanho sempre esteve interessada em expressões viscerais. Primeiro, o desenho – de contundentes grafias – reconheceu gestos vigorosos, em registros difusos, entre a linha e a mancha. Depois, a pintura – de cromias intensas – reconheceu figuralidades densas, entre pinceladas vertiginosas e insinuações anatômicas. E, mais recentemente, novos meios e outras materialidades – objetos, fotografias, performances – em atitude expressiva multidimensional. Assim, surge a Série Coração de Ofélia.

 

1. A Série Coração de Ofélia

Ao afirmar que o coração é o primeiro órgão formado no útero, Lucia Castanho vem definindo um percurso expressivo que pretende apresentar, através do não-verbal, os papéis da mulher na sociedade contemporânea (Figura 1). Para tanto – baseada em seus estudos doutorais em Artes – irradia seu discurso plástico a partir da imagem de Ofélia (personagem de Shakespeare, em Hamlet, que enlouquece de tanta paixão e morre afogada, num provável suicídio).

 

 

Assim, entre a consciência e a prática de linguagem, a artista transporta Ofélia, ainda que simbolicamente, para o século XXI – justamente para provar novas representações visuais e colocar outras questões sobre a identidade feminina, o desejo, a vida e a morte.

As maneiras como a artista opera sua expressão revelam um propósito intensificador: a imagem recorrente é a forma coronária – percebida e revelada nas mais diversificadas materialidades e plasticidades. Todas, contudo, nascem como desejo de forma e bem poderiam ser consideradas e(s)(n)tranhezas do coração.

O coração – o orgão coronário em sua constituição anatômica é configuração fixa, tão estática quanto o corpo da Ofélia morta. Contudo, nem tanto fixo ou estático. Vejamos, senão: O coração, conforme descrito nos atlas de anatomia, é um órgão oco, capacitado ao bombeamento do sangue para o corpo através do contínuo fluxo de contração e relaxamento. Toda essa dinâmica se dá por intermédio de um órgão que tem – mais ou menos – a dimensão de nossa mão fechada em punho – posição manual que é, inclusive, considerada como gesto e atitude de luta e resistência. Não por acaso, o batimento cardíaco é revelado pelas veias do pulso. Seria Ofélia, organicamente revelada? Certamente, organicamente configurada! Uma forma oca, revestida por uma membrana. Algo como: um saco fechado, fibroso, envolto por uma película. Bem assim, conforme a artista tão anatomicamente configura, o coração de Ofélia. A vida, elternadamente, distribuida em sangue e oxigênio. E, aqui, transmutada em vazio, arames e tecidos (Figura 2).

 

 

Então, o coração de Ofélia, atualizado pela expressão contemporânea se estrutura a partir do tramado do arame de cobre, cujos nós e filmentos se referem ao conjunto vascular, garantindo a oca tridimensionalidade do objeto, devidamente configurado pelo tecido, que lhe serve de membrana.

Estaria, desta maneira, definida a forma com a qual a artista se manifesta, exercendo um processo de intensificação de sentidos. Se, em dimensão orgãnica, o coração é o orgão mediador do percurso do sangue, nas manifestações da linguagem artística proposta, se tornará os atributos da vida – em dinâmico ir e vir (Figura 3, Figura 4).

 

 

 

 

Pela potência da arte, transformar o organismo em mito!

 

2. O mito do coração como lugar dos sentimentos

Mitos são narrativas utilizadas em todos os tempos, por todas as culturas, para explicar a riqueza dos fenômenos da natureza e a complexidade da existência humana. Enquanto nos servem para especular acerca da origem do mundo e do homem, num sentido universal, artistas são sujeitos habilitados à construção de suas próprias mito-poéticas. Esse é o caso fulcral da Série Coração de Ofélia.

Ofélia, em Hamlet, é personagem que prova, intensamente, as adversidades de seu tempo afetivo. Em dicotomia: é muito jovem, inocente, frágil e ingênua, disposta ao amor e, desprotegida, compreende a realidade da vida; é mulher resistente, mentalmente prostituta de seu pai, emocionalmente dura, incorformada com sua condição feminina que não lhe permite decidir o próprio destino.

Ofélia, na dramaturgia Shakespeariana, é uma heroina trágica, um mito que divaga entre corrupção dos homens, as canções obscenas que entoa como forma de resistência e os cenários sombrios de seu entorno – para tornar-se, no universo da visualidade, lembrança imagética recorrente, desde Millais (1851-52) até a contemporaneidade.

Contudo, sob a guarda expressiva de Lucia Castanho, Ofélia deixa de ser potencialmente a heroína trágica. Ofélia, em sua identidade unidimensional, torna-se, então, argumento expressivo multidimensional. Imagem-argumento, transcrita em múltiplas modalidades artísticas e em diversificadas materialidades.

Bidimensionalmente: se desenho, a anatomia; se pintura, as cromáticas pulsações; se incisão, quase sempre em troncos de árvore, conceito! Tridimensionalmente: se escultura, a modelagem densa ou as estruturas aramadas leves; se objetos (quase ready made), os tecidos aveludados, as veladuras do tule, os bordados e as flores alfinetadas em múltiplas superfícies. E ainda, se performance, manifesto! Tudo sensorial e tatilmente sensual.

 

3. Coração de Ofélia, as plasticidades dos sentimentos

As experimentações materiais e procedimentais com as quais a artista se envolve são de tal ordem proliferantes que parecem ser signos de uma obsessiva expressão (Figura 5). Uma linguagem algo entre a densidade e a liquidez. Uma linguagem um tanto etérea, suspensa ou flutuante. Assim, o corpo de Ofélia, configurado em coração, revela-se denso, em sua musculatura... vazio, em sua cavidade... e líquido, entre o sangue, como lugar do corpo e da vida, e a água, como lugar da paisagem e da morte.

 

 

Vejamos, então:

Esculturas em arame, na leveza das figuras [...] todas as técnicas experimentadas por Lucia Castanho ganham uma expressividade ímpar, pelos movimentos circulares, memórias do infinito, continuidade, [...] da água.... São volutas femininas. Casulos... Há ainda o puro vermelho, princípio e fim da vida... vermelho de intensidade apaixonada, devoradora, febril, quase insana (Silva, 2015).

As obras de Lucia Castanho parecem repercutir:

...amor e dor (e qual amor não dói?), contenção e liberdade em conflito. Ainda insistência é o que se percebe em suas sequências de obras, variantes sobre o mesmo tema, com pinturas, desenhos... Com a repetição ela parece buscar a forma exata para expressar uma ideia, um sentir... Em seu fazer poético, com a eterna angústia da representação: o signo, ao tentar apreender o objeto, destrói definitivamente o real, tranformando-se em múltiplas e sucessivas possiblidades (Silva, 2015).

A Série Coração de Ofélia, ao mesmo tempo em que pretende discutir a existência afetiva e emocional da mulher nas sociedades e na cultura, parece buscar o questionamento das estruturas da linguagem visual e dos materiais que seleciona para produzir desenhos, pinturas, esculturas, objetos, fotografias, performances – sobretudo, para discutir e questionar a essência da vida e da morte.

Como podemos observar:

A artista nos impõe uma sucessão de experiências sensoriais – sensual – míticas. Tanto corporais quanto sígnicas, em apreensões visuais que, intensamente sentidas, nos arremessam ao etéreo. Uma identidade expressiva que dialoga com a materialidade das imagens – em sugestões abstratizantes... do formal ao linear.
Linhas, aliás, parecem ser as estruturas gerativas da artisticidade proposta. Permanecem em nossa percepção apenas as qualidades
[...]: ritmos – movimentos... pulsares em veias de arame. Dos objetos, desprende-se algo superficial, vago, fragmentar ou, talvez, arqueológico. São objetos clássicos! Estruturas de beleza... (Rizolli, 2015).

Entre a Ofélia, de Shakespeare – em Hamlet, e a série Coração de Ofélia podemos encontrar percepções de convergência. Desse modo:

É a água sonhada em sua vida habitual, é a água do lago que por si mesma "se ofeliza", se cobre naturalmente de seres dormentes, de seres que se abandonam e flutuam, de seres que morrem docemente (Bachelard, 2013: 85).

Conclusão

Tomemos, de impréstimo, um agudo pensamento: "Corre-se o risco de morte por amor, por êxtase, por vaidade, por masoquismo, por loucura, por felicidade" (Morin, 1987: 72).

Enquanto Ofélia surge originalmente como ficção, depois de ser vista flutuando em tantas águas, em tantos tempos e em tantas culturas, seu mito foi se desvelando em outras realidades – através das inúmeras figuras femininas que encarnou. Sua imagem, multiplicada e atualizada. foi se confundindo com aquelas de mulheres que morreram por amor, por loucura, por paixão ou por desespero.

Então, invadindo o seu coração, a artista estabelece um diálogo de aproximação com o mito. Das identificações histórias e sociais do feminino, Ofélia vai se incorporando à anatomia expressiva da artista – em experiências de vida e morte – em diversificadas formas de artisticidade.

E, assim, metonimicamente, Lúcia Castanho elabora uma nova semântica – o mito do coração feminino como o lugar dos sentimentos, tanto ancestrais quanto emergentes. Afinal, nos acostumamos a pensar que o coração é mais um órgão de inteligência do que (meramente) a estação principal de bombeamento do sangue pelo corpo.

Potencialmente, o Coração de Ofélia, de tão feminino, transmuta-se em expressão contemporânea, para compreender um sentimento universal. Uma imagem-conceito recorrente: jovialmente implicada no amor e desesperadamente impregnada de loucura, contudo, resultará diluída nas águas da morte – justamente para provar novas dimensões expressivas e colocar outras questões sobre a(s) identidade(s) da arte.

E, para finalizar, damos voz à própria artista: "somos ninfas, somos Ofélias, somos tantas vezes imagens" (Castanho, 2011: 168).

 

Referências

Bachelard, Gaston (2013) A Água e os Sonhos. São Paulo: Martins Fontes. ISBN: 978-85-782-7635-5.         [ Links ]

Castanho, Lucia (2011). Ofélia: Percurso íntimo de uma imagem idealizada. Tese de Doutorado em Educação, Arte e História da Cultura.São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie.         [ Links ]

Morin, Edgar (1997) O Homem e a Morte. Rio de Janeiro: Imago. ISBN: 978-85-312-0540-8.         [ Links ]

Rizolli, Marcos (2015) "Texto de Apresentação." [Consult. 2015-09-01] Disponível em http://www.luciacastanho.com.br        [ Links ]

Silva, Mirian Cristina Carlos (2015) "Texto de Apresentação." [Consult. 2015-09-01] Disponível em http://www.luciacastanho.com.br        [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 06 de setembro de 2015 e aprovado a 23 de setembro de 2015.

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: marcos.rizolli@mackenzie.br (Marcos Rizolli)

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