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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.6 no.12 Lisboa dez. 2015

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

"Pintura Habitada" de Helena Almeida: entre um antes e um depois

"Pintura Habitada" from Helena Almeida: between before and after

 

Lara Vanessa Casal Pires*

*Portugal, investigadora e performer. Licenciatura em Artes Performativas pela Escola Superior de Tecnologias e Artes de Lisboa (ESTAL) e Mestrado em Filosofia com especialização em Estética pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa (UNL).

AFILIAÇÃO: Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Doutoranda em Artes (Artes Performativas e da Imagem em Movimento). Alameda da Universidade, 1600-214, Lisboa, Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

O objecto de análise deste artigo é a série: Pintura Habitada criada por Helena Almeida em 1975. A discussão desta série é tecida em torno da exploração do acto performativo da artista e ao mesmo tempo do observador como co-fabricante do sentido da obra. A reflexão teórica desenvolver-se-à em articulação com a Lógica da Sensação de Deleuze.

Palavras chave: Imagens, pintura, fotografia, observador e performer.

 

ABSTRACT:

The subject of this article is the series: Painting Inhabited created by Helena Almeida in 1975. The discussion in this series is woven around the exploration of the performative Act of the artist at the same time, the observer as co-manufacturer of the meaning of the work. The theoretical reflection to develop in conjunction with the logic of sense of Deleuze.

Keywords: Pictures, painting, photography, observer and performer.

 

Introdução

Em 1975 Helena Almeida cria uma série: Pintura Habitada (acrílico sobre fotografia a preto e branco). Uma série que convida o olhar e a perceção do observador através de um percurso próprio podendo ser experienciado como que uma colagem fragmentária da investigação feita pela autora.

O presente artigo irá analisar esta série atendendo ao ato performativo, dentro da obra, que permite ao observador reconhecer e construir imagens durante a sua observação através da composição. Este artigo irá descrever como a abordagem performativa da autora possibilita um papel de observador co-fabricante de sentido da obra.

Como ponto de partida, e do mesmo modo que Deleuze em Lógica da sensação, o presente artigo descreve o erro de se "acreditar que o pintor está diante de uma superfície branca (–) (onde) poderia reproduzir um objeto exterior" (Deleuze, 2011: 151) uma vez que na experimentação da criação a "superfície branca" do corpo em performance está cheia. Assim, propõe-se que o performer tal como Bacon, em Deleuze, delimita através de um "trabalho preparatório" (Deleuze, 2011: 169) o "surgimento de um outro mundo" (Deleuze, 2011: 171) feito de acidentes e de acaso a que Bacon chama de "diagrama" (Deleuze, 2011: 123), "como uma catástrofe que ocorre sobre a tela" (Deleuze, 2011: 170). Na criação em performance, dentro de uma "zona controlada", o performer articula simultaneidades em trânsito, tal como o ato de pintar é precedido por um "trabalho preparatório invisível e silencioso" (Deleuze, 2011: 169). O momento informado e marcado pela passagem, isto é, na evidência do deslocamento ocorrido entre um antes e um depois a análise do corpo do performer pode esclarecer quais as ligações estabelecidas entre a experiência do corpo e a experimentação na criação de Pintura Habitada.

 

1. Documentar um gesto e pintar sobre uma fotografia

Helena Almeida (n. 1934) cria em 1975 uma série de sete fotografias a preto e branco e pintura acrílica azul (46 x 40 cm cada) intitulada Pintura Habitada. Nesta série a artista reflecte sobre a potencialidade da pintura insistindo na relação entre quem pinta e a pintura em si, e não na apresentação de algo que revele o que é específico do "fazer" da pintura. Helena Almeida cria em Pintura Habitada uma pintura através de uma acção pictórica posterior ao registo fotográfico, compondo materialmente um documento de um gesto encenado e dirigido para o espaço de observação.

A escassa utilização de cor é posterior ao registo do gesto oferecido e (re)conhecido. É deste modo que Helena Almeida estabelece um jogo subtil, tornando possível transitar entre aquilo que é representado e o que é composto pelo observador. O tempo e a materialidade do gesto da artista pertecem à fotografia, e a suspensão dramática da acção pertence à pintura. A combinação destes instrumentos expressivos produz formas e movimentos que deslocam a percepção e introduz uma dimensão de vestígio. Ao movimento descontínuo, que não pára de oscilar, que aproxima e afasta é o impacto do que resta do tempo de contacto e do que está ausente. Uma vez que cada gesto particular do corpo sugere uma particular relação com o tempo, as relações circulam e não se fixam, as relações dão lugar à experiência que aponta para o que está ausente, aproximando aquilo que é anterior às imagens.

Em Pintura Habitada um corpo hesitante é fotografado, mas o percurso invisível do gesto não pode ser alcançado. A fotografia e a acção pictórica posterior torna visível um corpo "apanhado" entre duas temporalidades, um corpo entre um antes e um depois. Ivo Braz escreve em Pensar a Pintura: Helena Almeida (1947-1979) que: "O pintor era situado num 'antes,' limitado ao processo de criação e afastado no momento da conclusão. O espectador era diferido para um 'depois' não intervindo na obra já concluída" (Braz, 2007: 56).

Assim, a análise que se propõe tecer no presente artigo parte destas duas questões: qual o fio condutor entre o antes e o depois? e qual a relação do gesto, da pintura e da dimensão das imagens?

Na relação específica que o observador estabelece na sua experiência da pintura parece fundamental a emergência de uma outra dimensão significativa que por si só não está contida na representação. Ou como escreve Ivo Braz os "processos de antecipação e retrospecção, de velamento e desvendamento" (Braz, 2007: 101) permitem uma outra abordagem à criação.

O gesto encenado e ensaiado faz aparecer como que uma espécie de cenário para a apresentação de Helena Almeida. É deste modo que os elementos constituintes das suas criações podem ser re-pensados. Isto quer dizer, no intervalo das suas composições, derivam deslocamentos das questões que recorrentemente coloca na sua produção artística, nomeadamente: a (auto) representação. E é nessa experiência que as articulações que vão sendo estabelecidas são depuradas.

O que se propõe ao longo deste artigo é que a obra concretiza o lugar da dúvida: a obra é como que o lugar da reflexão tornada visível. E Pintura Habitada (1975) é a concretização do lugar onde é pensado aquilo que não se consegue explicar.

A criação de Helena Almeida potencia outros relacionamentos, outras ligações com a obra em si mesma. Através da descontinuidade do gesto (uma vez que como já foi referido, o gesto pertence a duas temporalidades). A reflexão em torno da noção de descontinuidade, que parece constituir a noção relacional de um antes e de um depois, permite a construção de formas de compreensão do que está sendo experimentado e a experiência em si mesma (em vez do abandono).

As questões que a artista coloca são (re)lançadas na experiência da obra, elas reverberam constituíndo formas de compreensão do esquisso do ato performativo. Assim, as imagens criadas na quietude representam, por fragmentos, a manipulação da artista e não constituem um (auto)retrato. É na experiência perceptiva encenada que o observador constrói o sentido. E é neste exercício de co-fabricação de sentido, que o ato performativo estabelece uma tensão entre performer versus a sua obra e a experiência do observador. Na tensão que o observador experimenta, ele parece deslocar-se, incluir-se na obra mas de forma descontínua. Ainda assim, o modo como se desloca em relação à criação é privilegiado, uma vez que a interrogação das possibilidades de significação tornam a experiência uma oportunidade de composição e de reflexão.

Pintura Habitada (1975) cria um espaço que pode ser partilhado, que apesar de breve e de constituir apenas um vislumbre é "uma possibilidade precária de um nós" (2007: 91) como escreve Peggy Phelan em Intus: Helena Almeida.

 

2. Começar

É um erro acreditar que o pintor se encontra perante uma superfície branca. A crença figurativa decorre desse erro: com efeito, se o pintor estivesse diante de uma superfície branca, poderia reproduzir nela um objecto exterior, que funcionaria como modelo. Mas não é assim. O pintor tem muitas coisas na cabeça, à volta dele ou no seu estúdio. Ora acontece que tudo o que tem na cabeça ou à sua volta está já na tela, mais ou menos actualização, antes de começar o seu trabalho. Tudo isso está presente na tela, enquanto imagens actuais ou virtuais. De modo que o pintor não trata de preencher uma superfície branca, mas sim esvaziar, desimpedir ou limpar uma superfície. Sendo assim, o pintor não pinta para reproduzir na tela um objeto que funcionasse como modelo; pinta por cima de imagens que já lá estão para pintar uma tela cujo funcionamento vai desmantelar as relações entre o modelo e a cópia. Resumindo, o que é preciso definir são todos esses "dados" que estão na tela antes de começar o trabalho do pintor (Deleuze, 2011: 151).

 

A "superfície branca" (Deleuze, 2011: 151) do corpo está cheia antes de começar. Em Pintura Habitada (1975) Helena Almeida estabelece um percurso criativo combinando fotografia e pintura. O ato performativo da artista é registado fotograficamente e posteriormente age sobre a fotografia.

Os gestos capturados e impressos na fotografia, parecem antever uma sensação de descontinuidade, de ruptura ou até mesmo o sentimento que uma possível catástrofe ocorra sobre a tela (Deleuze, 2011: 170). Este sentimento da fragilidade do que é percepcionado é expressão das descontinuidades operadas por Helena Almeida na composição da sua obra em série. O refluxo e a circulação são aspectos vísiveis na série Pintura Habitada, revelando a parcialidade de cada uma das fotografias.

A documentação do gesto, do corpo como médium, isto é, da simultaneidade da artista e das suas imagens, ou melhor dizendo, da artista e do seu objecto afasta a possibilidade de Helena Almeida se colocar diante uma superfície onde "poderia reproduzir um objecto exterior" (Deleuze, 2011: 151). O corpo como fonte do movimento captado fotograficamente é fruto de um "trabalho preparatório" (Deleuze, 2011: 169). Helena Almeida faz algo acontecer e o corpo é percorrido pelo gesto captado. Onde tudo pode acontecer qualquer coisa é suspenso e marcado por uma mancha azul. E é deste modo que as imagens reúnem dois momentos. Este entrelaçamento é operado pela artista antes mesmo de começar ou como escreve Deleuze: "O acto de pintar é sempre desfasado, sempre em oscilação entre um antes e um depois (–) Antes de a pintura começar, está já tudo na tela, o próprio pintor também (Deleuze, 2011: 168).

O "surgimento de um outro mundo" (Deleuze, 2011: 171), isto é, de um outro lado que está encoberto permitem a afirmação de uma existência, da potencialidade da pintura e da superação das oposições e dos limites (interior/exterior). Helena Almeida não propõe um termo intermédio, a sua criação contém em simultaneo e em potência essas dicotomias.

 

Conclusão. Um corpo no espaço e a materialização de um gesto

Helena Almeida experimenta um gesto que é tornado visível não para que o gesto em si seja compreendido, mas para que ele dê continuidade à experiência.

O discurso da artista em Pintura Habitada (1975) aborda a criação como que uma espécie de consciência do processo, que dá conta das articulações entre as imagens oferecidas.

Ao longo do artigo foi proposta que toda a análise interpretativa é flexível e o observador quando "convidado" a pensar de acordo com a sua experiência e conhecimento torna possível o aparimento de novas configurações apareçam.

Considerar a série Pintura Habitada como que um encontro, isto é, como que uma partilha entre os elementos intervenientes (artista e observador) permite (re) definir as relações de autoria e de recepção na série da artista.

 

Referências

Braz, Ivo (2007). Pensar a Pintura: Helena Almeida (1947-1979). Lisboa: Colibri/IHA-Estudos de Arte Contemporânea, FCSH.         [ Links ]

Almeida, Diana V (2011). "Helena em diálogo com Luiza Neto Jorge, para se escrever" in Ana Daniela Coelho e José Duarte (Org.). A Jangada de Ulisses: Volume dos Jovens Investigadores, Lisboa: ULICES/CEAUL, 87-97.         [ Links ]

Carlos, I. & Phelan, : (Ed.) (2005) Intus: Helena Almeida. Lisboa: CAM – Fundação Calouste Gulbenkian.

 

Artigo completo submetido a 7 de setembro de 2015 e aprovado a 23 de setembro de 2015.

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: ppires.lara@gmail.com (Lara Vanessa Casal Pires)

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