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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.6 no.12 Lisboa dez. 2015

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Ceci n'est pas un autoportrait: o elidir diagramático da identidade em Helena Almeida

Ceci n'est pas un autoportrait: the elusiveness of the diagrammatic identity in Helena Almeida

 

Joana Tomé*

*Portugal, Escultora e Ilustradora. Licenciatura em Escultura, Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes (FBAUL). Mestrado em Ciências da Arte, FBAUL.

AFILIAÇÃO: Faculdade de Belas-Artes; Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes (CIEBA), Secção de Investigação e de Estudos em Ciências da Arte e do Património – Francisco de Holanda. Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Largo da Academia Nacional de Belas-Artes. 1249-058 Lisboa Portugal

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Perscrutam-se os processos de construção e desconstrução de identidade convocados na obra de Helena Almeida, à luz de um entendimento deleuzeano de "diagrama". Reconhecem-se, na obra da artista, três práticas diagramáticas ligadas ao emprego da linha, da mancha e à materialização daquela. Aí se desarticula o clássico entendimento de auto-retrato – no qual se veicularia a identidade do autor – em favor de um transgressivo convocar do espectador num devir-mulher.

Palavras chave: Helena Almeida, diagrama, auto-retrato, devir-mulher, identidade, Deleuze.

 

ABSTRACT:

This article looks into the process of construction and deconstruction of identity in Helena Almeida's work, in light of Deleuze's understanding of "diagram". The artist appears to make use of three diagrammatic practices related to her use of line, stain and materialization of that line. The classic paradigm of self-portrait – through which the author's identity is known – is dismantled in favor of a transgressive becoming-woman of the spectator.

Keywords: Helena Almeida, diagram, self-portrait, becoming-woman, identity, Deleuze.

 

Introdução

Helena Almeida nasce em 1934, estuda Pintura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa e torna-se bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian, em Paris, em 1959. Caracterizando-se, continuamente, por um rizomático estar entre, a obra da artista passeia pela fotografia, performance, vídeo, pintura, escultura e desenho, e a não raras vezes ténue linha que os separa dilui-se ao ponto da quase inexistência. É neste contexto que se propõe, o presente artigo, perscrutar os processos de construção e desconstrução de identidade convocados na obra de Helena Almeida, à luz de um entendimento deleuzeano de diagrama por forma a desarticular um clássico entendimento de auto-retrato no qual se veicularia a identidade do autor.

 

1. Helena Almeida e o trabalho diagramático

Em Deleuze (2011) se buscam as directivas a orientar uma pintura empenhada na libertação do modelo a representar e estória a contar, estendendo-as à prática artística de Almeida. Através da extracção e isolamento, em direcção à "figura" de exponente lyotardiano (Lyotard: 1972), e no contexto da sensação, se planeia resolvida fuga ao figurativo: Deleuze elege a sensação em detrimento da acção do cérebro a ter lugar no âmbito da abstracção. Opondo-se diametralmente ao figurativo que se procura extinguir, a figura, de deliberada maiúscula, distingue-se de um figurativo que, pressupondo representação, se faz da relação da imagem com o objecto que ilustra e com imagens outras, num conjunto composto que lhes imputa, a cada uma, um objecto. Com o intuito de extinguir o carácter figurativo, de narração e ilustração, que a figura necessariamente apresenta, defende-se um isolamento da mesma. Tomando o diagrama por zona informal de turbulência e de não-estratificação, será a prática diagramática a fazer surgir a figura. O diagrama, sobreposição de cartas de forças de densidade e intensidade, destaca e sugere, repartindo poderes de afectar e ser afectado e produzindo, flutuante e instável, complexas mutações. A par de um ponto de conexão, incorpora igualmente pontos relativamente livres e desligados, de criatividade e mutação – de resistência –, formando, deste, um conjunto operatório de linhas e zonas (traços de sensação), de manchas a-significantes e não-representativas que traçam um plano de consistência ou de composição – diagramatizando-o (Deleuze, 2011: 172).

Por meio da prática diagramática, deverá a figura surgir na vez do cliché (dados figurativos, virtuais ou actuais) a habitar a cabeça do pintor e a ficção da tela em branco pois estes se encontram já virtualmente investidos de imagens, dados figurativos, que esperam apenas por ser inscritos – pensar a tela enquanto superfície virgem, em branco, permite o empenho em nela reproduzir um objecto exterior que se mostraria modelo. Este pintar enquanto empenho diagramático a que Deleuze atribui a nomenclatura de trabalho preparatório é devolução da tela a um estado de candura que jamais existiu; seguindo-se o abraçar do acaso e acidente no acto de fazer marcas, traços e linhas, dedicando todo o corpo a actos quais varrer, esfregar, raspar, amarrotar zonas já manchadas e voltar a cobri-las. Os dados figurativos são apagados, esfregados, passados a escova ou pano, recobertos de tinta: surge o Diagrama e consubstancia-se o momento do facto pictórico – a captura de forças e consequente oferecer destas aos sentidos. Neste contexto se propõe a leitura de Almeida, reconhecendo-se o obstinado esforço por extinção do carácter de identificação, identidade e autoridade autoral.

 

2. Linha, mancha e fio de crina: o desfazer do rosto

Assim se tomam por estratégias diagramáticas três elementos essenciais na obra da artista: a linha que cobre parte da imagem; a mancha azul não-representativa; e a materialização daquela linha em fio de crina.

A primeira é, em Helena Almeida, linha diagramática. Afirmando-se multiplicidades de um plano, as linhas diagramáticas, flutuando e oscilando, múltiplas e imanentes, são elementos constituintes das coisas e dos acontecimentos – todas as vidas se constituem por pluralidades de linhas; elas compõem sensações e tudo atravessam, oferecendo a cada coisa uma cartografia, um diagrama (o corpo inteiro e o mundo nelas se lêem qual itinerário nómada permite ler o deserto). Pensar a linha na presente acepção é, em última análise, pensá-la liberta do propósito de representar, interpretar ou simbolizar, e devolvê-la à tarefa primeira de construir cartas, diagramatizar e proceder a trabalho preparatório. Neste sentido se pensam obras quais A Casa, 1981 (Figura 1). Aí, somente a fracção inferior da face da artista se exibe; no restante da imagem, na porção obliterada da face, linhas negras rasgam o vazio branco em que havia sido deixada a parte superior do rosto da artista. A linha expande-se e escorre-lhe pela face, numa passagem da folha branca – espaço do desenho – à fotografia, convocando reflexão acerca da linha que separa abstracção e figuração – uma linha por demais simplificada.

 

 

De modo análogo, também a mancha azul que acompanha a artista ao longo de toda a obra, é instrumento para um desmanchar da imagem, defraudando as expectativas do espectador num frustrar de uma narrativa logicamente organizada na qual a identidade da artista lhe seria oferecida. Em Pintura Habitada, série de 1975 (Figura 2), a pintura reaparece sobre a limpidez do preto e branco da fotografia, num quase-grafismo, quase-cartaz e, simultaneamente, rasto, vestígio. Reconhecem-se, aí, marcas diagramáticas, testemunho da intrusão de um mundo outro no mundo visual da figuração, formulando a proposta última de desmoronamento absoluto das coordenadas visuais e das relações entre modelo e cópia, abrindo caminho à sensação. Em obras quais a referida série de 1975 (Figura 2) ou "Sem Título" da série Pintura Habitada, 1975 (Figura 3), a mancha azul, marca diagramática não-representativa, nada exprime relativamente a uma imagem visual, reportando-se, em exclusivo, à mão da autora. A mão ganha autonomia e passa a estar ao serviço de forças outras, traçando marcas que não mais dependem da vontade ou olhar e que derrubam a soberania da organização óptica que orientava o quadro e o entregava, desde logo, à figuração: no caos, na catástrofe-génese de marcas (fim último do diagrama), não mais se vê.

 

 

 

A terceira estratégia diagramática que se descobre na obra da artista evidencia-se, por sua vez, em obras quais Desenho Habitado de 1976 (Figura 4), na qual o fio de crina conduz o traço à tridimensionalidade – ainda que uma tridimensionalidade em diferido pois a fotografia tudo aplana. Almeida densifica, ao longo de grande parte da sua produção artística, a linha, a ponto da sua transmutação em fisicalidade, em fio de crina. E é quando a linha ganha existência material que a imagem/presença da artista é definitivamente arrastada para as margens, veja-se Desenho Habitado de 1975 (Figura 5) – em detrimento do centro da composição que abraçaria um auto-retrato informador de identidade, conduzindo o desenho/a pintura ao primeiro plano. A linha prolifera e o fio de crina questiona a distinção entre espaço ficcional, de representação, e espaço real. A linha torna-se, deste modo, escultura, adquirindo sombra, textura, dimensão, densidade; e a forma, um resoluto investigar do entre a forma e a ausência de forma, entre a continuidade e a ruptura.

 

 

 

De modo análogo, em Sente-me, de 1979 (Figura 6), o rosto da artista se acha atravessado por uma linha que se liberta do suporte da representação. O rosto desfocado, em segundo plano e em permanente recuo, acentua o elemento transgressivo que é a linha, transformando-se por meio desta. Deste modo, da catástrofe-génese diagramática, porque lugar de forças, resultam deformações que se traduzem, a nível pictórico, em deformações da forma, na medida em que sobre ela uma força se exerce. As zonas atravessadas pela linha (bidimensional ou materializada em fio de crina) e pela mancha fazem adivinhar, na obra da artista, um empenho em desfazer o rosto, do qual " Sem Título", da série Pintura Habitada (Figura 7), de 1975, será caso paradigmático. Forças de pressão, dilatação e alongamento, se exercem sobre o rosto numa acção que aparenta cortante, fazendo notar, à semelhança de todas as obras acima referidas, o papel de génese assumido pelo diagrama. A linha ou a mancha a que se submete o corpo em Helena Almeida, actua: não conduz ao surgimento de uma forma abstracta, antes dota essa zona de indiscernibilidade de formas irredutíveis umas às outras; e as linhas de força que traça, porque nítidas e de deformante precisão, escapam à territorialização em forma.

 

 

 

Conclusão

Orienta, pois, toda a produção artística de Helena Almeida, a procura por interrogar os dispositivos narrativos e processos de representação, desestabilizando assunções históricas, culturais e psicológicas de autor – a consciência dos seus gostos, valores, memórias. Nela não existe um corpo concreto que se revele – a mão age neutra e o corpo, nos casos em que aparece, é invariavelmente envolvido de negro ou descentrado e reconduzido para segundo plano. Almeida aparece-nos neutra, vestida de um negro informe – um negro batailliano – e também o seu espaço se apresenta invariavelmente despido de excesso. A entrega obstinada ao olhar do espectador é uma entrega por metade: o corpo torna-se matéria escultórica, corpo-escultura, metamorfoseando-se, qual barro, num fervoroso desejo de libertação dos constrangimentos da forma, e o rosto escapa-se. Através dos diagramáticos traços manuais, traços da sensação que fazem emergir a catástrofe-génese na tela e transfiguram o rosto da artista, se elide a identidade da mesma e, como tal, o clássico postulado do auto-retrato. Veda-se espaço a descrição essencialista nas obras da artista e, aí, nada se saberá do seu carácter, personalidade, estado de espírito ou mundividências – o que poderia dizer-nos de si, oculta-o, desfigura-o, trespassa-o com a linha e a mancha. Cobrindo/desfigurando o rosto por meio do diagrama, recusa a entrega da sua identidade.

O que a artista nos oferece não são auto-retratos, pois "não encontr[a] neles a [sua] própria subjectividade mas antes a [sua] pluralidade" que faz aparecer "numa espécie de cenário de um palco" (Almeida apud AAVV, 2000: 205). Porém não são, igualmente, encenações de personagens ou figuras outras: "[...] os meus 'auto-retratos' não criam personagens, eu não me transvisto, são antes a minha relação com o desenho, com a pintura, com o espaço, com a emoção" (Almeida in Carlos e Phelan, 2006: 51). As expectativas do espectador relativas a uma narrativa logicamente estruturada e a uma identificação com – e do – objecto da pintura (a artista) são refutadas na recusa última do ilusionismo que à pintura é subjacente – garante de uma identidade autoral, linguística, e uma identificação por parte do espectador (lembrando a teorização de Laura Mulvey (Mulvey: 2009) na qual se reconhece o desejo de identificação, por parte do espectador, com o olhar do realizador e da personagem central da narrativa – no contexto do cinema –, e de todas estas posições com o masculino). A extinção do carácter de identificação, identidade e autoridade autoral, historicamente tomada por masculina, permite que a autora se dissipe e o espectador surja em sua vez, assumindo uma posição de enunciação feminina, num derradeiro e múltiplo devir-mulher. Na desconstrução da identidade da autora se erige, pois, a possibilidade de identidade – transgressiva – do espectador. Deste modo, o que a artista nos oferece não são, em última análise, auto-retratos: são cartografias do devir.

 

Referências

AAVV (2000) Helena Almeida. Catálogo. Santiago de Compostela: Centro Galego de Arte Contemporânea (CGAG).         [ Links ]

Carlos, Isabel e Phelan, Peggy (2006) Intus: Helena Almeida. Lisboa: Civilização Editora.         [ Links ]

Deleuze, Gilles (2011) Francis Bacon: Lógica da Sensação. Lisboa: Orfeu Negro.         [ Links ]

Lyotard, Jean-François (1972) Discours, Figure. Paris: Klincksieck.         [ Links ]

Mulvey, Laura (2009) Visual and Other Pleasures. Basingstoke: Palgrave Macmillan.         [ Links ]

 

Artigo completo submetido a 7 de setembro de 2015 e aprovado a 23 de setembro de 2015.

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: joana.tee@gmail.com (Joana Tomé)

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