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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.6 no.12 Lisboa dez. 2015

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Fraturas expostas: uma análise das pinturas de "Desconstruções," de Alan Fontes

Open fractures: an analysis of "Desconstruções," paintings of Alan Fontes

 

Alexandre Rodrigues da Costa*

*Brasil, poeta. Licenciatura em Literatura Brasileira e Portuguesa pela Faculdade de Letras (FALE), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestrado em Poéticas da Modernidade, FALE, UFMG. Doutorado em Literatura Comparada, FALE, UFMG.

AFILIAÇÃO: Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), Escola Guignard, Departamento de Disciplinas Teóricas e Psicopedagógicas. Rua Ascânio Burlamarque, 540, Belo Horizonte, Estado Minas Gerais CEP: 30315-030, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Este artigo se propõe a analisar as pinturas da série Desconstruções, de 2014, do artista mineiro Alan Fontes, a partir dos conceitos de informe e heterogenia de Georges Bataille. Tais conceitos nos permitirão pensar em uma pintura que se detém de maneira crítica sobre a arquitetura, ao tratar a casa como lugar precário, aberto aos acidentes. A casa se constitui, nas pinturas de Alan Fontes, como um espaço de proliferação de sentidos, que se abre, através do dilaceramento, para a desordem, a desintegração do que é familiar, quando as formas se dissolvem no vazio que as sustenta.

Palavras chave: informe, labirinto, desastre.

 

ABSTRACT:

This article aims to analyze the paintings of Deconstructions series, 2014, by the artist Alan Fontes, from Minas Gerais, based on the Georges Bataille's concepts of formless and heterogeneity. These concepts allow us to think about a painting that works critically the architecture, to treat the house as precarious place, opening to accidents. The house is, in the Alan Fontes' paintings, a proliferation of directions that opens through tearing, for the disorder, the disintegration of which is familiar when empty forms dissolve themselves in what keeps them.

Keywords: formless, labyrinth, disaster.

 

O desastre arruína tudo, deixando tudo intacto.

– Maurice Blanchot

Introdução

A série Desconstruções, de 2014, do artista mineiro Alan Fontes, nascido na cidade de Ponte Nova, em 1980, pretende, a partir de imagens coletadas de jornais, revistas e internet, trabalhar o conceito de casa como ruína, fragmentos de memórias, restos que sobrevivem ao desastre. Tema recorrente em seus trabalhos, como podemos perceber nas obras A casa, 2005-2007, Bar da Ana, 2006, A casa dos espelhos, 2006, Kitnet, 2010, Casa Kubitschek, 2014, e em Sobre Incertas Casas, 2015, a casa surge, nas pinturas e instalações de Alan Fontes, sempre de forma inusitada, no momento em que o artista almeja quebrar com o senso comum que tende a defini-la como abrigo, conforto. Em Desconstruções, a casa nos é apresentada como lugar ao avesso, pois o que vemos são os seus interstícios, seu interior que, agora, se confunde com o espaço em volta (Figura 1). Antes, lugar de proteção, a casa, nessa série de pinturas, revela-se como o que escapa à utilidade, ao se tornar um corpo informe, diante do qual a ordem não tem mais vez. A casa converte-se, portanto, em um entre lugar, onde o ordenamento matemático, diante do que foge à razão, fracassa, desmorona. Nesse sentido, o desastre permite ver a casa como um ser monstruoso, o que encontra respaldo na crítica que o pensador francês Georges Bataille faz sobre a arquitetura.

 

 

Entre o desastre e o informe

Na série Desconstruções, Alan Fontes, ao se ocupar do que sobrou após os desastres, vai ao encontro daquilo que Georges Bataille propõe ao analisar a questão da arquitetura na cultura ocidental. Para Bataille, a arquitetura é mais outro nome para o sistema, a regularização do plano, ou seja, tudo aquilo que, sob a forma de monumento, se designa como expressão da ordem social. No segundo número da revista Documents, publicado em 1929, Bataille abre o dicionário crítico com o verbete "Arquitetura". Nesse texto, ao se deter na arquitetura como expressão da sociedade, Bataille observa como os monumentos projetam ordem, poder e medo, de tal forma que

 

sempre que a composição arquitetônica está em outros lugares além dos monumentos, seja no rosto, roupas, música ou pintura, podemos inferir a prevalência de um gosto pela autoridade humana ou divina (Bataille, 1970: 171).

 

Para o arquiteto, o domínio da ideia sobre a matéria, traduzido em termos de projeto, impede a diferença, pois a repetição imobiliza-se em harmonia, no momento em que a anulação do tempo se dá pela manutenção de padrões constantes. De acordo com Denis Hollier, em sua leitura sobre a metáfora arquitetural em Bataille:

A execução precisa apenas cumprir o seu programa, submetendo-o até que ele desapareça dentro dela. O projeto, por natureza, é destinado a reproduzir a sua forma, e, para assegurar a sua própria reprodução, ele elimina qualquer coisa que não tenha sido prevista e que o tempo pode levar a se opor a ele. O futuro (o edifício realizado) deve estar em conformidade com o presente (a concepção do plano). O tempo é eliminado (Hollier, 1989: 45).

 

Nas pinturas que constituem a série Desconstruções, Alan Fontes busca, nas imagens de casas em ruínas, o que desafia o projeto: o desastre. Nessas pinturas, a desordem prevalece, no instante em que a casa não mais retém, a partir de sua estrutura, a permanência da forma. O desastre, nesse sentido, rompe com ideia de projeto, ao impedir que a repetição se mantenha como consagração da harmonia: "a harmonia como o projeto rejeita o tempo; o seu princípio é a repetição pela qual qualquer possível se eterniza" (Bataille, 1992: 62). O desastre carrega, assim, uma concepção de tempo próprio (Figura 2, Figura 3). Nas palavras de Maurice Blanchot:

Quando o desastre chega, ele não chega. O desastre é sua própria iminência, mas desde que o futuro, tal como nós o concebemos na ordem do tempo vivido, pertence ao desastre, o desastre sempre o tem subtraído ou o dissuadido, não há futuro para o desastre, como não há tempo ou espaço para sua realização (Blanchot, 1980: 7-8).

 

 

 

A desagregação da casa dissolve tanto os limites entre o interno e o externo quanto as relações que se estabelecem entre passado, presente e futuro, uma vez que o espaço seguro é substituído por um espaço e tempo indeterminados. Os fragmentos, resultantes do desastre, sobrevivem duplamente como vestígios, pois rementem a uma origem parcialmente apagada e a uma representação obliterada, incompleta. O que vemos se forma a partir das ruínas de um presente deteriorado, cujos destroços se fazem visíveis pela escolha do pintor em destacá-los, ao privilegiar a desordem, a precariedade e fragilidade dos objetos como detentores das nossas memórias. O tempo desfigura a memória, ao permitir que o desastre disperse, desmorone não só a casa, mas aquilo que se guarda nela. A pintura configura-se de restos, sob os quais o esqueleto, a estrutura do que antes era casa, aparece incompleto, desarticulado em meio ao entulho, a este corpo em decomposição, constituído de tetos, paredes e objetos despedaçados. A concepção da casa como ser vivo torna-se mais evidente, quando olhamos com atenção para algumas dessas pinturas e notamos como o entulho, que o desastre forma, assemelha-se às vísceras. Dilaceradas, as casas de Alan Fontes se projetam tão precárias quanto nas obras de artistas como Robert Smithson ou Gordon Matta-Clark, pois lhes é negado o antes, uma história que possa atrelar as ruínas a qualquer ponto determinado no tempo. A perda de referência nos arremessa para uma estrutura que oscila entre forma e não forma, cujo excesso se dá a partir de um processo de divisão e reunião simultâneas, pois, como um organismo que se reproduz por cissiparidade, não há mais hierarquia sobre o que resta da casa: "Tudo se divide em dois. O significado se move através da clivagem" (Hollier, 1989: 77).

Nesse sentido, esse excesso, que visualmente lembra interstícios, nos remete, ao mesmo tempo, ao informe e ao labirinto na obra de Bataille. Cunhado como verbete, no dicionário crítico, o informe, segundo Bataille, "não é apenas um adjetivo que dá significados, mas um termo que serve para desclassificar, exigindo que cada coisa tenha a sua forma" (Bataille, 1970: 217). O informe, no entanto, não é um conceito, pois sua existência só é perceptível como operação, na verdade, contra-operação, já que ele desclassifica, "designa o que não tem seus direitos em nenhum sentido e se espalha por todos os lugares" (Bataille, 1970: 217). Do mesmo modo que o informe é concebido como uma espécie de sabotagem contra o sistema acadêmico, Bataille, de acordo com Denis Hollier, "inverte o sentido metafórico tradicional do labirinto que geralmente liga-o com o desejo de sair" (Hollier, 1989: 60). O labirinto é a existência operacional do informe, pois sua estrutura anti-hierárquica opõe-se a concepção geométrica idealizada, para a qual a saída representaria a realização do projeto, da utopia. Denis Hollier, ao analisar a questão do labirinto em Bataille, comenta:

 

Nunca se está dentro do labirinto, porque, incapaz de deixá-lo, incapaz compreendê-lo com um único olhar, nunca se sabe se é dentro. Devemos descrever o labirinto como ambiguidade intransponível, estrutura espacial, onde nunca se sabe se a pessoa está sendo expulsa ou sendo enclausurada, um espaço composto exclusivamente de aberturas, onde nunca se sabe se elas abrem para o interior ou o exterior, se elas são para sair ou entrar (Hollier, 1989: 61).

 

Esse excesso sem saída, estrutura que desorienta, pode ser percebido nas casas das pinturas de Desconstruções, nas quais as estruturas, ao se desmancharem, confundem o dentro e o fora (Figura 4). A casa passa a se constituir de espaços abertos, mas de maneira que, ao subsistirem ainda algumas paredes, o provisório se torna o tempo de uma ameaça desconhecida, lugar de extravio, de não-saber. Em vez de buscarmos a saída de tal labirinto, permaneceríamos perdidos nele, alimentados pelo encontro com o impossível como afirmação da instabilidade de terrenos nunca mapeados, sempre abertos à exigência de um andar sem meta. O labirinto, pensado como operação do informe, afirma a precariedade da arquitetura, seu fim inevitável, no qual a decomposição prevalece, ao exibir, por meio da ruína, a ruptura com um suposto projeto e lugar idealizados. Assim, ao revelar a estrutura, seu dentro e fora, Alan Fontes acaba por destacar a incompletude, no sentido de que a morte se faz presente através da podridão, da casa que se desintegra sob o impacto do desastre. A casa, em estado de ruína, aparece como um lugar de experiências desfeitas, onde o privado se dá a ver pela mutilação de seus cômodos, a abertura de espaços que se projetam para o exterior, exibindo o que antes estava escondido.

 

 

Conclusão

Alan Fontes recria o desastre, ao oferecer o estranhamento como uma forma de, apropriando-nos das palavras de Rosalind Krauss, "entrar num mundo sem centro, um mundo de substituições e transposições em parte alguma legitimado pelas revelações de um tema transcendental" (Krauss, 1986: 258). Podemos perceber isso, ao olhar para a tela Desconstruções nº 1 (Figura 5), na qual, em meio ao caos, destacam-se um banheiro, uma mesa com bolo de aniversário e uma cadeira com balões azuis amarrados. Os limites que separam o comer e o defecar são rompidos pela transparência de um espaço onde a importância das coisas é relativizada, no instante em que as distâncias desaparecem e eles se refletem. Os objetos se tornam, assim, partes da paisagem que os cerca. A estrutura, estilhaçada, quebrada, ao mesmo tempo que revela a matéria de que é feita, mescla-se ao espaço aberto, pois os detritos, ao se projetarem em diferentes posições e distâncias, dispersam não apenas a noção de centro, mas também a de limite entre o natural e o manufaturado. O que temos assim é uma construção cujo arranjo se dá pela desordem: "um arranjo de tipo novo, que não seria o de uma harmonia, de uma concórdia ou de uma conciliação, mas que aceitará a disjunção ou a divergência como centro infinito" (Blanchot, 2010: 43). A partir dessa proliferação de espaços, podemos pensar na heterogenia como movimento que se abre tanto para o entrelaçamento da arquitetura com a pintura quanto para a desarmonia que entre elas se constrói, quando o informe se constitui em um tempo de decomposição, no qual as ruínas das casas revelam sua precariedade e seu excesso. Esse excesso não deve ser pensado como descartável, mas violência que rompe com a ordem, ao afirmar a impossibilidade de se reconstituir o passado e se prender a um presente.

 

 

Embora não haja cadáveres, nas telas de Alan Fontes, a morte manifesta-se como elemento desarticulador, capaz de despedaçar a integralidade dos espaços, ao mostrar que a casa, como extensão dos corpos, é tão instável e frágil quanto estes. Nesse sentido, os cenários, que dela irrompem, subsistem como restos, fragmentos: "a ruptura da homogeneidade pessoal, a projeção para o exterior de uma parte de si próprio com o seu caráter ao mesmo tempo violento e doloroso" (Bataille, 2007: 104). A casa, levada ao colapso, ultrapassa a medida de si mesma, para se oferecer ao avesso: memória dilacerada, exposta para todos a verem.

 

Referências

 

Bataille, Georges (2007) O ânus solar (e outros textos do sol). Tradução de Aníbal Fernandes. Lisboa: Assírio & Alvim. ISBN: 978-972-37-1195-0        [ Links ]

Bataille, Georges (1970). Oeuvres Complètes: volume I. Paris: Éditions Gallimard. ISBN: 978-2070267934.         [ Links ]

Bataille, Georges (1992). A experiência interior. Tradução de Celso Libânio Coutinho, Magali Montagné e Antonio Ceschin. São Paulo: Editora Ática. ISBN: 85-08-04051-2.         [ Links ]

Blanchot, Maurice (2010). A conversa infinita 3: a ausência de livro, o neutro, o fragmentário. Tradução de João Moura Jr. São Paulo: Escuta. ISBN: 978-85-7137-299-3.         [ Links ]

Blanchot, Maurice (1980). L'écriture du désastre. Paris: Éditons Gallimard. ISBN: 2-07-022248-9.         [ Links ]

Hollier, Denis (1989). Against architecture: the writings of Georges Bataille. Translated by Besty Wing. Massachusetts: The MIT Press. ISBN: 0-262-08186-5.         [ Links ]

Krauss, Rosalind E. (1986). Caminhos da escultura moderna. Tradução de Julio Fischer. São Paulo: Martins Fontes. ISBN: 85-336-0958-2.         [ Links ]

 

Artigo completo submetido a 7 de setembro de 2015 e aprovado a 23 de setembro de 2015.

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: rodriguescosta@hotmail.com (Alexandre Rodrigues da Costa)

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