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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.6 no.12 Lisboa dez. 2015

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Um Lugar No Mundo: considerações sobre a obra de João Tabarra

A place in the world: comments on João Tabarra's work

 

Guy Amado*

*Brasil / Portugal, investigador visual e crítico de arte. Licenciado em Artes Plásticas, Fundação Armando Álvares Penteado, São Paulo.

AFILIAÇÃO: Universidade de Coimbra; Colégio das Artes; estudante de doutoramento. Largo D. Dinis Colégio das Artes. 3001-401 Coimbra, Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

O artigo se debruça sobre a produção imagética do artista português João Tabarra. Com uma trajectória onde sobressai uma linha temática marcada pela componente social e política, é frequente em sua práctica vermos o próprio artista incorporado como personagem em seus filmes e/ou séries fotográficas, em um processo que aborda a questão identitária como aspecto fulcral. Interessa ainda ressaltar como se manifestam na obra de Tabarra os aspectos do épico e do patético, acentuando sua dimensão crítica e colaborando para a inscrição de sua produção numa hipotética poética do fracasso.

Palavras-chave: arte contemporânea portuguesa, arte e política, fotografia e vídeo, poéticas do fracasso

 

ABSTRACT:

The article is focused on the imagistic production of the Portuguese artist João Tabarra. In a trajectory on which is underlined a particular taste for social and political matters, the artist himself is often seen as a character in his own films or photographic series. This process raises the identity issue as a topic of prominence in his work and strongly related to the artist's personal values and concerns. It is also intended to approach the ways by which the epic and pathetic aspects emerge on Tabarra's body of work somehow inscribing it on a hypothetical poetics of failure.

Keywords: portuguese contemporary art, art and politics, photography and video, poetics of failure.

 

À maneira de uma introdução

Quando a proposta do artigo é analisar determinados aspectos da obra de um artista, pode ser adequado fornecer, já de saída, dados que permitam uma maior aproximação à produção em foco por parte do leitor, para que então se proceda a seguir ao comentário. Iniciamos, portanto, com algumas imagens.

 

1.

Em um cenário a céu aberto que se adivinha como sendo uma paisagem de periferia urbana, tomado por escassa vegetação rasteira e pontuado ao fundo por chaminés e torres de electricidade, surge em primeiro plano a figura de um homem a empunhar uma bandeira. O homem caminha decidido, e na bandeira que porta lê-se a frase "Plus jamais la fin du monde" ["Nunca mais o fim do mundo"], grafada em tinta spray à maneira de um graffiti. A postura resoluta da personagem em sua marcha solitária e a assertividade conclamativa da mensagem que carrega fazem lembrar a figura de Joseph Beuys em seu famoso trabalho cujo mote é também seu título, La Rivoluzione Siamo Noi (1972). As aproximações parecem contudo esgotar-se nestes aspectos: ao contário do que ocorre na peça do artista germânico e seu clamor universalizante pelo potencial que via nas aproximações entre arte, vida e a política, nosso caminhante assemelha-se mais a um activista resignado, em sua manifestação solitária. Ademais, é captado na imagem quase de costas em sua deslocação, enquanto o alemão dirige-se frontalmente ao espectador, como que a reiterar a natureza urgente de sua convocatória. (Figura 1).

 

 

2.

No écrã, agora sobre o oceano, paira um helicóptero, de onde se observará toda a ação subsequente. Um mergulhador, suspenso por um cabo atado à máquina, é descido ao nível do mar para resgatar um homem à deriva, cuja figura já se percebe na superfície líquida. Pouco tempo depois, estão ambos no aparelho, salvador e socorrido; este último tem vestidos calça, camisa e sapatos – ensopados – e exibe um sorriso ambíguo, menos de alívio que triunfal. Em seguida, a um comando do sapador a aeronave desloca-se para a direita do campo visual do espectador, rumo a um elegante e deserto complexo de piscinas. Ali, o cabo é novamente descido, e o profissional de salvamentos acionado; desta vez para deitar cuidadosamente o homem na acolhedora água azul que o aguarda abaixo. O nonsense da situação – que diverte e inquieta em medidas similares – será ainda intensificado pelo acto final, a se iniciar já em seguida, quando, após alguns instantes, uma nova ordem é dada, agora para tornar a recolher o peculiar banhista. Ele é então sacado da piscina, onde chapinhava, e transportado uma vez mais para o mar, onde é finalmente depositado...apenas para reiniciar a ação, em uma espécie de loop "sisifesco" (Figura 2).

 

 

3.

De volta ao mar. É um dia cinzento na praia, e um homem solitário está de pé, em frente à linha marítima. Ele parece plenamente absorvido pelo acto contemplativo, fitando a imensidão do oceano como se assim, talvez, fosse capaz de alcançar sua outra margem, ou quiçá aceder a toda uma carga histórica intemporal evocada por aquele referencial. De seus ombros pende um longo e pomposo manto colorido – que contrasta vivamente com os matizes pálidos da faixa litorânea que se funde ao céu – que se estende diagonalmente por muitos metros até o primeiro plano da imagem, vindo de encontro aos olhos do espectador. O objecto em princípio intensificaria a solenidade do momento; no entanto, acompanhando o serpentear que o improvável adereço descreve sobre a areia, percebemos que este é na verdade composto por um apanhado de singelas toalhas de praia, arranjadas para se obter tal efeito (Figura 3).

 

 

4.

O cenário vagamente rural sugere algum abandono. Na composição fotográfica precisa, vê-se na diagonal que "puxa" o olhar e se abre como eixo focal uma parelha improvável, composta por um homem de negro – sempre ele – e uma fada, de branco, a se deslocar com esforço por uma trilha formada por rochas e pedregulhos. O esforço deve-se ao facto de trazerem consigo um carrinho abarrotado com seus pertences, e o aclive que sugere ser aquilo uma colina torna a empreitada mais difícil. A estranha "fada" masculinizada vai à frente, a puxar, enquanto o homem completa a cena a empurrar o conjunto. Para onde vão não se sabe. Mas intui-se que seu caminho é o da adversidade; neste cenário perturbador, onde o mundano e o encantatório parecem encontrar-se sob o signo da falência, tal visão afigura-se algo melancólica e patética; seu carácter épico falhado convida a um riso nervoso (Figura 4).

 

 

5.

Em uma paisagem urbana de arrabalde, emoldurada por um conjunto habitacional social ao fundo, um grupo de pessoas está reunido aparentemente em torno de algo. À sua frente, em meio aos pedregulhos que abundam naquele terreno desolado, identifica-se a razão de ali estarem: distinguimos os contornos de uma faixa sinalizadora e plaquetas numeradas, ambas de uso pericial, do tipo utilizado para se demarcar áreas de ocorrência criminal. Temos portanto uma suposta equipa forense em acção. E no entanto não há vestígios materiais de qualquer corpo ou cadáver na área assinalada – o que de qualquer forma não parece alterar o comprometimento das personagens com a tarefa que lhes cabe (Figura 5).

 

 

Autor e personagem de si

E então oficializa-se que as imagens acima descritas referem-se a obras de João Tabarra; e que é também ele próprio a figura masculina que surge como protagonista em todas, facto recorrente em sua práxis – ainda que na última foto isto seja menos imediatamente perceptível. Artista de formação essencialmente autodidacta, egresso do fotojornalismo (experiência absolutamente determinante em seu posterior percurso artístico), Tabarra desponta no cenário português em inícios dos anos 1990, já com uma abordagem crítica consistente e mordaz da realidade quotidiana. A fotografia e o vídeo são desde sempre seus instrumentos primordiais, alternando-se e convivendo sem problemas em sua práxis. E ainda que referido maioritariamente como fotógrafo, Tabarra tem no cinema influência confessadamente decisiva em seu processo criativo. Sua produção artística é marcada por um tom político e forte sentido crítico da realidade que o cerca, pautado em uma plataforma estética que conjuga ainda uma dimensão ética e valores pessoais muito próprios. Seu imaginário incorpora também o absurdo, revelando as contradições e anseios do homem contemporâneo.

O protagonismo mencionado mais acima mostra-se contudo relativo, restrito à presença corpórea e silenciosa do artista em cena, já que emerge sempre em contextos francamente disruptivos, desconfortáveis. Não se trata, portanto, de haver uma qualquer pulsão narcísica – e menos ainda um afã hedonista – por trás deste flerte com a autorreferenciação: antes pelo contrário, é como se o artista antecipasse o constrangimento em convidar um actor ou outra pessoa que não ele para surgir nas elaboradas e desviantes narrativas visuais que constrói. E para mais, trata-se também de uma decisão de cunho conceptual, na medida que, ao assim proceder, encurta a distância comunicativa e estabelece um canal mais imediato de fruição com a audiência, ao eliminar um eventual "intermediário".

Tais impressões tornam-se cristalinas nas palavras do próprio artista:

 

[...]não uso de forma alguma o eu para atingir um clímax dramático, mas é verdade que ao não criar ou propor um outro personagem que actue nos meus trabalhos centro a atenção do receptor no autor e corro o risco de uma exposição narcísica– Mas o que de facto é importante salientar no porquê da minha entrada nos trabalhos, prende-se mais com uma fuga ao actor [...],quero aniquilar o intérprete e a distância com a qual eu teria que operar [...] (Urbano & Gusmão, 2007: 69-70)

 

Junto à componente autorrepresentativa, a um repertório de temas fortemente calcado nas contradições e anseios da vida quotidiana (aspectos aos quais o autor pode estrategicamente adicionar, e o faz, umas doses de ficção) e ao sentido crítico que caracteriza o discurso artístico e forja o modus operandi de Tabarra, está um conceito que muito ilumina seu processo de construção da imagem, conforme já argutamente apontado por Miguel Von Hafe Pérez em texto de há mais de 10 anos (2002: 17): o de cinematografia tal qual entendida e praticada por Jeff Wall. Uma passagem deste grande expoente da fotografia de arte resume muito das questões em jogo na obra de Tabarra:

The beauty of the photograph is rooted in the great collage which everyday life is (–). There is a "voice" there, but it cannot be attributed to an author or a speaker, not even to the photographer. (–)Someone is now responsible for the mise-en-scène, and that someone is pretending to be everyone, to be anonymous, in so far as the scene is "lifelike" and in so far as the picture resembles a photograph. Cinematography is something very like ventriloquism. (Wall, 2002: 22)

A pulsão por dar corpo – e sobretudo voz – a um modo engajado de ser e estar no mundo, de oferecer interpretações à natureza complexa, conflitual e fascinante que tipifica a condição humana e que se mostra tão cara ao projecto estético de João Tabarra encontra nesta passagem uma bela definição. Afinal, este alguém por trás da concepção de uma imagem que seja "igual à vida" e que "pretenda ser toda a gente" e ser anónimo, este "ventríloquo" que Wall sugere ser o operador desta cinematografia guarda muitas semelhanças com o artista português, seja enquanto indivíduo como em termos processuais.

 

O vector do fracasso

O acentuado tom crítico – em registos oscilantes – que perpassa toda a produção imagética de João Tabarra é marcado por alguns elementos recorrentes, já muito comentados por interlocutores especializados ao longo dos anos. Interessa aqui destacar que suas encenações visuais – sejam elas filmes ou fotografias – apresentam com frequência um componente épico ou heróico que é sistematicamente subvertido pela presença de um elemento disruptor que será trazido à baila para inviabilizar esta leitura (espera-se que a breve descrição de algumas obras do artista que abre este texto possa auxiliar na percepção deste factor). Em outras palavras, falamos de um quase permanente jogo de frustração de expectativas, que ora se dá em registo mais lírico ou poético, ora mais cru ou áspero.

Esta combinação conduz ao estabelecimento de uma dinâmica em que o humor e o sarcasmo caminham lado a lado com um sentido do trágico e do patético, e onde a ideia de fracasso parece ganhar corpo como uma tónica dominante, como um mote temático informal que até certo ponto perpassa toda a sua obra e impulsiona seu processo de criação. Um fracasso onde cabem diversas acepções: do clássico herói falhado – e o Quixote de Cervantes será aqui certamente uma referência de peso, como se sustenta na conclusão a seguir – a um colapso ideológico e, em última análise, civilizacional generalizado, é sensível na produção de Tabarra a proximidade que esta mantém de um pathos do falhanço. Aspecto que não deixa de ser corroborado pelo artista, quando indagado a respeito deste tópico:

 

Penso que a minha figura enquanto herói não tem uma ancoragem ou sustentação. O que eu vejo, ao ser eu a encenar-me como proposta de herói, é a de alguém absolutamente falhado. [...]Julgo que se trata de um herói completamente corrompido, falhado, que não chega sequer a ser herói, porque ele à partida é desmontado pela sua fragilidade e é reconhecido pelo receptor, pelo público, como um de nós. [...]Se vires, toda a construção dos meus trabalhos, aquilo que fica é, para já, um falhanço absoluto, um excesso ou uma excrecência total." (Urbano & Gusmão, 2007: 70)

 

Conclusão

E assim, à luz das potencialidades do falhanço, encerramos com a observação de pontos de contacto existentes na obra de Cervantes e na produção de Tabarra. E para tal emprestaremos de Juan José Saer a bela imagem de uma "moral do fracasso" (Saer, 2002), concebida justamente a partir do Dom Quixote. O autor argentino postula essa moral do fracasso a partir da enorme influência exercida pelo romance de Cervantes sobre o cânone da narrativa ocidental, contrapondo-a à "ingenuidade épica" enunciada por Adorno em 1943. Nesta última a "inconsciência com que o herói da epopéia se lança ao mar dos acontecimentos para realizar um determinado objetivo" dá lugar ao modelo mais desesperançado inaugurado pelo "Quixote", onde não apenas os objetivos do protagonista são irrealizáveis como também os acontecimentos possuem condição incerta. E asssim como as personagens de Tabarra, ainda que antecipe vagamente seu fracasso, ele decide prosseguir em suas desventuras. Essa é a moral do fracasso que "Dom Quixote de La Mancha" inaugura e que a produção de João Tabarra actualiza, nela injetando doses de generoso humanismo, apesar de tudo:

 

...O que espero que se note é uma destabilização final dessa ideia de herói. [...] Uma impotência de controlar o que se está a passar e o que sobra é uma fragilidade total do humano. E aí, em vez de sobrar o herói, sobra uma tentativa de herói que rapidamente se revela falhada. O que fica, no fim, é um de nós, um qualquer de nós.

 

Referências

Adorno, Theodor W (2003). Notas de literatura I. Trad. Jorge M. B. De Almeida. São Paulo: Duas Cidades. Ed. 34.         [ Links ]

Honorato, Suene (2012). "Sobre o conceito de 'ingenuidade épica' em Adorno". Revista Eletrônica Literatura e Autoritarismo – Dossiê nº 12, Nov. 2012.

Pérez, Miguel Von Hafe (2002). "Três andamentos numa aproximação ao trabalho de João Tabarra", in João Tabarra, cat. da Representação Portuguesa à XXV Bienal de Arte de São Paulo. Lisboa: Instituto de Arte Contemporânea / Ministério da Cultura.         [ Links ]

Saer, Juan José (2002). "A moral do fracasso de Dom Quixote". Folha de São Paulo. São Paulo: Folha da Manhã S/A, 23 jun. 2002. Mais, n.541, : 3-4.         [ Links ]

Tabarra, João (2014). Narrativa interior – João Tabarra. Catálogo de exposição. Lisboa: CAM – Fundação Calouste Gulbenkian.

Urbano, João; Gusmão, João Maria (2007). "Desaparecimento, falha e êxodo – Entrevista a João Tabarra". Revista NADA, n. 9, mar 2007: 61-79.         [ Links ]

Wall, Jeff (2002). "Arielle Pelenc in Correspondence with Jeff Wall", Jeff Wall. London: Phaidon Press, : 22.         [ Links ]

 

Artigo completo submetido a 7 de setembro de 2015 e aprovado a 23 de setembro de 2015.

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: apenasguy@yahoo.com.br (Guy Amado)

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