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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.6 no.12 Lisboa dez. 2015

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Desenho, Identidade e Alteridade: quando tudo é uma questão de suporte

Drawing, Identity and Otherness: when everything is concerned with the support

 

Cláudia Maria França da Silva*

*Brasil, artista visual e docente universitária. Graduação em Artes Plásticas pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais; Mestrado em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Doutorado em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

AFILIAÇÃO: Instituto de Artes da Universidade Federal de Uberlândia, Campus Santa Mônica, Av. João Naves de Ávila, 2160, Bloco 1I, Cep: 38400-902 – Uberlândia – MG, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Análise de desenhos das séries "Manual de boas práticas" e "Monstros", da artista brasileira Daniela Maura. Ela se representa contracenando com figuras e formas outras, permitindo-nos problematizar sua identidade. Trabalhamos com a ideia de alteridade formadora da identidade; valemo-nos dos conceitos de Unheimliche (Freud) e Extimidade (Lacan).

Palavras-chave: desenho contemporâneo, identidade, estranho, êxtimo.

 

ABSTRACT:

Analysis of drawings from Daniela Maura's series – "Guide for good practices" and "Monsters". She represents herself acting with other figures and forms; this allows us to quote about her identity. We work with otherness conception, that forms our identity; we use the concepts of Unheimliche (Freud) and "Extimacy" (Lacan).

Keywords: contemporary drawing, identity, uncanny, extimate.

 

Considerações iniciais

Apresentamos desenhos da artista brasileira Daniela Maura, pertencentes a duas séries: "Manual de boas práticas" (2013) e "Monstros" (2014). São autorrepresentações produzidas por técnicas mistas, em que a artista coloca-se em diversas situações, contracenando com objetos e outras figuras, humanas ou não. Neles encontram-se o questionamento de si e de sua identidade (atuando no campo do conceito) e uma atenção aos suportes para as inscrições gráficas (aspecto físico dos desenhos).

Percebemos a consciência da alteridade posta no desejo de quase "fusão" com o outro; por meio dessa consciência, inferimos que a autorrepresentação se dá não tanto pelo radical "auto", mas sim, pelo "hetero": o outro que está ao seu lado, atrás de si, dentro e entre as formas. A escolha dos suportes reforça tais situações de heterogeneidade e soma de realidades distintas. Acreditamos que o suporte é mais um agente a reforçar as ideias e formas apresentadas nas visualidades da artista.

A construção textual problematiza este aspecto autorrepresentacional de seu trabalho aspecto de seu trabalho; buscamos compreender como se fragmenta e se constrói o sentido de identidade em sua poética. Valemo-nos de depoimentos informais e de texto não publicado da artista e nos conceitos de "Unheimliche" (Freud) e "Extimidade" (Lacan), da Psicanálise.

 

Desenho, suporte e performatividade

Para Daniela Maura, o Desenho tem sido "um meio para se estabelecer um processo de autoconhecimento e auto-reconhecimento [sic] e também um método para construir uma relação de afeto com o outro" (Maura, "Claro escuro: estudos para possibilidades do amor" texto para proposta de exposição). Admitido como "meio de configura ção de estados internos e como modo de aproximação e de elaboração de vínculos" (Maura, idem), cabe a ele tramar uma noção compósita para si, para a artista e nós, que os vemos. Conhecer e reconhecer-se nestas construções gráficas pressupõe sua eficácia na correspondência formal imagem/referente; para além, trata-se mesmo de agenciar modos diversos de evocação de sua identidade pelo gesto gráfico e escolha de suportes.

Seu Desenho torna-se um processo híbrido que congrega croquis, fotografia e colagem, articulando a presentidade, o cotidiano, o eu/outro, a passagem do tempo. Diversos recursos são utilizados para performar sua inquietante presença ou inquietante ausência no espaço composicional. Tomemos um desenho da série "Manual de boas práticas", realizado sobre o papel carbono. Nele, percebemos de imediato a identidade da artista dando-se por meio do acréscimo de atributos do sexo oposto (Figura 1).

 

 

A figura levanta o vestido e olha em direção ao pênis ereto. Suspendê-lo com os braços e mãos é transformá-lo em uma "cortina" que nos revela uma cena; trata-se então de um reforço enunciativo do que deve ser visto por nós. O corpo torna-se "lugar" da ação performativa do desenho e da forma representada.

No entanto, há outra situação instigante, relacionada à construção gráfica. Observando outros desenhos da artista, percebemos a importância da linha em sua pureza e definição. O desenho é fornecido pelo traço, sem sombreamentos; quase não há hachuras. Aqui, percebemos lacunas de contorno: nos pés, o intervalo entre as pernas vem para o primeiro plano em função de um erro de deslocamento da linha que dá o contorno da perna, construindo assim, um volume tão estranho quanto a representação de um corpo "transgênero".

Talvez isso venha do uso do papel-carbono. Esse suporte apresenta uma das superfícies revestida de uma película de tinta transferível. Em seu uso costumeiro, coloca-se o suporte entre duas folhas comuns, brancas. Na folha superior fazemos o desenho, imediatamente transferido para a inferior, via folha de carbono. Pressões exercidas sobre esta permitem que sua camada de pigmento imprima manchas na superfície imediatamente abaixo de si. Ocorre uma relativa cegueira da condução gráfica por pressões manuais inadvertidas; isso pode gerar informações visuais mais fortes do que o desenho intencionado. Desenhos feitos por papel carbono são muito mais efeitos de contato e impressão; a percepção visual torna-se relativamente secundária no processo.

Acreditamos que Daniela Maura tenha usado uma única folha de papel carbono como matriz para vários desenhos ou que tenha retirado a folha-guia, desenhando diretamente sobre o papel carbono. O contato direto com este suporte coloca-o como superfície desafiadora da definição gráfica, acentuando o grau de errabilidade de suas inscrições.

Tendemos a considerar que o desenho começa nos gestos e traços visíveis sobre um suporte. Enfatiza-se a visualidade e a visibilidade do resultado suplantando a percepção do fazer do artista, mesmo que o trabalho final dê indícios de seu fazer. A afirmação da identidade do ser-Desenho seria proporcional a esse grau de visibilidade dos traços sobre um suporte. No entanto, o corpo do suporte também existe e é anterior aos gestos e traços. Percebendo sua potência expressiva, a desenhista se esmera criando situações em que o suporte possa "falar". Começa entendendo o Desenho como prática do elogio ao contato. Parece-me ser esse o caso dos desenhos da série "Manual de boas práticas". Além de representar uma alteridade jacente no falo masculino presente no corpo de uma mulher, o suporte singular se mostraria também como alteridade da construção gráfica.

O suporte também tem voz na série, "Monstros". O papel que simula o papel de parede problematiza a nitidez da cena representada. Essa dificuldade de discernimento das personagens vem, antes de tudo, pelo contraste da estampa delicada com a face monstruosa que nos encara (Figura 2).

 

 

O papel de parede traz o aconchego consigo ao referir-se a algo familiar: a casa, lugar para onde nos voltamos todos os dias, onde descansa o corpo. Mas o desenho pode nos dizer que no interior daquilo que é mais familiar, pode residir o Outro, o estranho.

Um grau de estranhamento depositado no seio da familiaridade, conforme Freud em suas formulações sobre o conceito de "estranho" (Freud, 1980). Considerando o termo em alemão – a partícula "heimliche" (familiar) somada ao prefixo negativo "un", ele percebe o significado contraditório no seio da palavra, expressando ao mesmo tempo a intimidade e o aconchego com algo perturbador que se esconde. Em "Das Unheimliche", Freud analisa o conto "O Homem de areia", de Hoffmann, em que uma boneca animada, Olímpia, torna-se objeto de paixão de um ser humano, Nataniel. Ele não percebe que Olímpia é um autômato. O silêncio e respostas mínimas: "Oh,oh!" e "Boa noite, amor", proferidas pela boneca em intervalos regulares, ao invés de o desiludirem, estimulam o comportamento cada vez mais "mecânico" de Nataniel, no desenrolar da narrativa. Questionamos, assim, quem ali é realmente o autômato. Sobre essa incerteza da identidade das personagens, Freud aponta que esse efeito psicológico provocado sobre o leitor tem sido uma estratégia recorrente na literatura fantástica.

Os desenhos da série "Monstros" evocam os contos de fadas e fábulas, em que um elemento não-humano contracena com o humano. A figura desfalecida – inconsciente – permite que se erija outra figura humana com face monstruosa. Esta, um duplo, rouba a cena e olha para nós: "O duplo, o objeto originariamente inventado 'contra o desaparecimento do eu', (...) acaba por significar esse desaparecimento mesmo – nossa morte – quando aparece e nos 'olha'" (Didi-Huberman, 1998: 229).

Freud também toca na questão do "duplo" como central, tanto na ficção quanto em nossas vidas, no jogo fundamental entre vida e morte que fazemos quando crianças, desejando que nossas bonecas e bonecos tenham vida – pois a representação dada no duplo evoca a superação da brevidade da vida e também a própria brevidade desse mesmo ato de superação de seu poder. Segundo o autor, podemos superar esse jogo infantil na vida adulta ou podemos atualizá-lo, por meio das repetições involuntárias; talvez a organização dos desenhos de Daniela Maura em "séries" seja um modo de não se esgotar a questão.

 

Considerações finais

Em ambas as séries de desenhos, a figura feminina não nos olha. Ela está lá, mas de olhos fechados, desacordada, olhando para outro objeto ou direção: há sempre um olhar de desvio despotencializando sua presença como deflagradora consciente das ações. Ela é objetualizada, tornando-se o lugar que oportuniza outra cena – seu corpo/palco para a encenação do pênis ereto, o desfalecimento para que outra ereção se dê: a da face monstruosa. Em ambos os casos, o desvio/ausência do olhar que nos encara é também o canal para a exposição de sua intimidade, na relação amorosa do entre-dois ou no ambiente doméstico, evocado pelo papel de parede.

Para Piera Aulagnier (apud Frayze-Pereira, 2005), no processo de constituição da identidade, manter segredos é vital para o exercício do pensamento; o secreto é a expressão da liberdade na diferenciação do sujeito. Segredar é segregar-se, colocar-se em um lugar secreto. Ali, o sujeito reavalia experiências e trocas sociais em fluxo, para obter sínteses que possam lhe dizer, de algum modo, quem é para si e para os outros.

Lacan construirá o neologismo "extimidade" para referir-se a um espaço existente na intimidade, mas que se revela fora de si, em seu exterior. O êxtimo é uma condição que nubla as fronteiras entre o público e o privado, fronteira que insistimos em construir para a constituição da identidade. Mladen Dolar percebe o êxtimo como desdobramento do Unheimliche: ambos referem-se a algo nosso que de tão secreto, se esvai e resvala em uma alteridade, que em um primeiro momento, nos inquieta. É um "Isso" (Lacan, 2008) que se revela, a princípio, em posição periférica, mas que é, na verdade, central na constituição identitária. Dolar escreve que a extimidade "não aponta nem para o interior nem para o exterior e se torna ameaçadora, provocando horror e angústia. A extimidade é simultaneamente o núcleo íntimo e o corpo estrangeiro; em uma palavra, é unheimliche". (Dolar, s.d, s.p.)

Os desenhos autorrepresentacionais de Daniela Maura apresentam-nos esse dilema na revelação do sujeito-artista. Colocando-se em posição periférica a partir da emergência do Outro (falo, monstro), a representação gráfica e composicional aponta o caminho da não identidade da artista consigo mesma para que ela possa se identificar.

Para isso, o suporte é um elemento importante no processo de criação.

Consideramos que o traço de Daniela Maura é o dado instaurador de uma identidade no desenho. Reside um aspecto "caligráfico", revelador da singularidade de sua proposta gráfica: linhas puras e unas na representação das figuras humanas. A prática constante de croquis deu-lhe um saber sobre a representação da forma em diversas posições. O desenho é um exercício constante no cotidiano da artista: ela desenha a casa, o espaço íntimo, modos de ocupação; tal como um cronista que pinça o inusitado no interior do banal – necessitando viver o cotidiano como fenômeno – os desenhos de Maura são crônicas que revelam o cotidiano como assunto e o desenho como hábito.

O suporte é lugar onde se assenta a prática costumeira de desenhar. Ele problematiza aquilo que se tornou a identidade da artista: a própria inscrição. Em "Manual de boas práticas", o desafio está no fazer o desenho; instaurar-se-ia uma condição de cegueira para que a cena se desenhe revelando pontos de esquecimento nos contornos da figura. Já em "Monstros", a estampa nubla o aspecto horroroso, obsceno da cena. Um suporte êxtimo, borrador do ato de identificação da inscrição gráfica. É como se materializasse uma "entropia" que, ao final, unificará todas as diferenças, se colocando como ponto zero para o desenho recomeçar o processo de constituição de sua própria identidade.

 

Referências

Didi-Huberman, Georges (1998) O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Dolar, Mladen (s.d.). "Estarei com você em sua noite de núpcias": Lacan e o Estranho. Tradução de Bruno Holmes Chads. Disponível em http://ideiaeideologia.com/wp-content/uploads/2013/05/Mladen-Dolar-The-Uncanny_traduc%CC%A7a%CC%83o_.pdf. Acessado em 22.07.2015.         [ Links ]

Frayze-Pereira, João (2005). Arte, dor. Inquietudes entre estética e psicanálise. São Paulo: Ateliê Editorial.         [ Links ]

Freud, Sigmund (1980) O estranho. Edição Standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 17. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Lacan, Jacques. (2008). O seminário, livro 16: de um ao outro. Rio de Janeiro: Zahar,         [ Links ]

 

Artigo completo submetido a 5 de setembro de 2015 e aprovado a 23 de setembro de 2015.

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: claudiamfsg@yahoo.com.br (Cláudia França)

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