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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.6 no.12 Lisboa dez. 2015

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

João Pedro Vale & Nuno Alexandre Ferreira: um manifesto queer?

João Pedro Vale & Nuno Alexandre Ferreira: a queer manifesto?

 

Luís Herberto*

*Portugal, artista plástico. Licenciatura em Artes Plásticas/ Pintura, Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL). Doutoramento em Belas-Artes/ Pintura, FBAUL.

AFILIAÇÃO: Universidade da Beira Interior (UBI), Faculdade de Artes e Letras, LabCom.IFP. Rua Marquês D'Ávila e Bolama. 6201-001 Covilhã, Portugal

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

O projecto artístico de João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira inicia-se no final da década de 1990, a partir de um firme compromisso social: tem tanto de paródia como tem de imitação burlesca do sério. Interpreta os dados exteriores sociais e políticos, na sua investigação formal e conceptual, tentando afastar-se das recusas, por antecipação a eventuais processos de rejeição e censura, particularmente na questão homofóbica, recorrente na sua produção.

Palavras-chave: queer, hardcore, provocação, identidade.

 

ABSTRACT:

The artistic project of João Pedro Vale and Nuno Alexandre Ferreira starts at late 1990's, upon a firm social commitment: shows both a parody and a burlesque imitation of the serious. Reads the external social and political data in the formal and conceptual research, trying to steer clear of refusals, in anticipation of possible cases of rejection and censorship, particularly in the homophobic question, continuous in their production.

Keywords: queer, hardcore, provocation, identity.

 

Contexto

A década de 1990 reflecte socialmente uma época emergente para o espaço queer. Entendido como uma categoria de identidade que recusava uma carga negativa, o vocábulo foi eficaz no modo como era utilizado numa onda de produção cultural, particularmente nas artes visuais e no cinema. Um dos grandes compromissos da agenda social e política queer neste período foi precisamente o reinventar de conceitos de representação subversivos, contaminando toda uma cultura dominante, que precisamente inventou o termo como calão homofóbico (Cunningham, 2009).

Os anos 90 são particularmente fecundos na separação dos géneros, sem perderem de vista os objectivos particulares, reforçando identidades individuais e colectivas. Na análise das conquistas sociais que as comunidades LGBT têm alcançado, desde Stonewall, em 1969, na sua luta por uma igualdade de direitos civis, podemos afirmar que a questão da homossexualidade ainda não é uma coisa pacífica (Davis & Heilbroner, 2011). Em consequência, a existência da homossexualidade também propõe a homofobia, nas opções, na liberdade de expressão e nas censuras (Bran, 2005).

Nas artes plásticas, são muitas as referências culturais que a partir dos finais da década de 1960 tomam forma no mundo anglo-saxónico e se estendem além Atlântico até aos EUA, e que daí se espalham e retornam para o actual espaço cultural (Quinlan & Arenas, 2002), apesar do actual contexto de globalidade ser insuficiente para romper com as barreiras morais enraizadas nos contextos históricos, políticos e religiosos das sociedades democráticas ocidentais.

Por sua vez, o espaço ibérico, com forte tradição religiosa, permite poucas manifestações do género, destacando-se apenas em 2005, a exposição Radicais Libres, Experiências Gays e Lésbicas na Arte Peninsular, apresentada em Santiago de Compostela (Bran, 2005), configurando-se como a primeira grande exposição realizada na Península Ibérica, à volta do universo LGBT dos dois países, destacando-se do conjunto significativo de artistas portugueses presentes, a obra de João Pedro Vale, com abordagens plásticas cujas interrogações se desenvolvem fortemente apoiadas numa ideia de identidade, nas possibilidades que os diversos contextos sociais permitem neste sentido.

 

Identidade / Hardcore

O seu trabalho apresenta imagens ou objectos que, mesmo desprovidos na sua aparência de características formais sexualmente explícitas, incorpora elementos conceptuais sugestivos de uma identidade queer. O explícito nem sempre é o que aparenta, servindo-se mais da ironia e da provocação. As questões relativas à identidade de género estendem-se irremediavelmente aos paradigmas da identidade nacional, pela evidente existência dos recursos culturais que produzem determinados dados formais e que se revêem nos mecanismos que os proporcionam (Lapa, 2008). A pesquisa e recolha para a concepção de determinada obra, assume uma metodologia semelhante à dos trabalhos de pesquisa etnográficos, com toda a acção de contacto do trabalho de campo e consequente teorização, como podemos observar em Can I Wash You? (Figura 1), de 1999, escultura produzida com o tradicional sabão azul e branco, bastante reconhecível no território português, ou Caravela #1, de 2006, que recorre aos elementos gráficos constitutivos dos cigarros 'Português Suave', que no passado foi uma popular marca portuguesa e assumiu um protagonismo repetido, ao ser frequentemente utilizada em conotações variadas e relativas tanto a um estilo arquitectónico lusitano de qualidade duvidosa, como ao eventual estado de espírito morno dos cidadãos nacionais. Na leitura de como os dados locais e produtos populares e comuns contribuem para a formação da sua obra artística, encontramos também características cuja relação depende do conhecimento dos contextos e não pode ser vista de um modo isolado. Neste sentido, Can I Wash You? é uma obra que absorve características queer, apenas pela associação que fazemos dela ao seu autor. Para este, é primeiramente sabão, acrescentando-lhe outros significados ao seu propósito da lavagem. Para Vale, interessam mais os aspectos identitários da cultura nacional e no modo como podem ser disseminados internacionalmente, sem propriamente os limitar e explicar detalhadamente aos seus espectadores, nacionais ou não, permitindo uma leitura generalizada e mediante as próprias coordenadas de cada um (Lapa, 2008):

Este contacto pode ser estabelecido pela proximidade cultural ou pelo facto de eu utilizar elementos que fazem parte de uma simbologia internacional. Acima de tudo, interessa-me pensar por que razão determinado elemento é entendido de uma forma em Portugal e entendido de outra forma noutro país e é pela diferença de interpretações que o símbolo, no seu contexto inicial, acaba por ser reformulado. O meu trabalho centra-se nessa reformulação. É importante que a leitura seja possível em diferentes registros culturais, geográficos e políticos'.

 

 

A entrevista de Pedro Lapa a Vale (Lapa & Sharp, 2008) permite estabelecer uma charneira no percurso do artista, ao se situar como imediatamente anterior à ruptura temporária de Vale com o circuito galerístico, situação provocada com a apresentação do filme Hero, Captain and Stranger no Cinema Paraíso, em 2009, um conhecido local em Lisboa pela apresentação de filmes pornográficos. Apesar de Vale recusar uma classificação do seu filme na delimitação comercial associada à pornografia, assume também que recorre a "dispositivos que partem do sexo para accionar um conjunto de leituras", tornando o seu filme uma obra efectivamente pornográfica, de acordo com as cenas explícitas de penetração, sendo este o seu único trabalho nesta categoria (Vale, 2013). Há um claro aspecto provocativo aliado à utilização de imagens sexualmente explícitas e declaradamente reconhecidas como pornográficas, o que no panorama artístico nacional, se configura como um acontecimento quase isolado no território nacional, apenas com outro caso nesta linha, resultado da programação subversiva e polémica que António Cerveira Pinto imprime na Galeria Quadrum, em Lisboa com a exposição "Verão, A Galeria como Atelier e Seminário", em 2001 (Pinto, 2013).

Vale reitera a importância de produzir apenas em contextos que lhe são próximos, apenas com obra relativa à sua própria experiência e à intensidade fértil dessa relação, decorrendo na tradução do seu cerne criativo para a apreensão exterior e noutros contextos. Isto não significa propriamente um limite geográfico nacional, mas todos os limites aplicados à circulação transfronteiriça do seu autor, o que certamente se traduz numa obra de leitura global, não apenas destinada a espectadores com orientações sexuais específicas, de modo a eliminar filtros redutores neste sentido.

O projecto Moby Dick, com o filme Hero, Captain and Stranger, surge precisamente no contexto de uma residência artística em Nova Iorque, em 2008 e 2009. Detém no seu espaço cultural e geográfico, toda uma carga simbólica em variadas rupturas sociais e políticas, nomeadamente como símbolo de libertação gay, através das manifestações que transformaram a sociedade norte-americana a partir de 1969 e por contágio, todo o mundo ocidental, conhecidas como Stonewall Riots, por si, uma linha de charneira na luta dos direitos dos homossexuais. Esta referência não passa ao lado dos artistas, que a partir desta residência se tornam oficialmente parceiros, passando a assinar em conjunto as suas realizações, apesar da longa parceria anterior.

Encontramos por toda a sua obra, referências ao universo queer, como em Dorothy, de 2001 (Figura 2), com a sua mensagem escrita "there's no place like home", em que a associação a Judy Garland e à comunidade gay, na coincidência da data da sua morte com os incidentes de Stonewall ou o arco-íris na música mais popular do filme e que deu origem à bandeira gay. É um discurso a propósito de metáforas copulativas, como em Don't Ask, Don't Tell, Don't Pursue, de 2000, onde os objectos fazem referência a aparelhos de ginásio e toda a sua implicação simbólica de preparação do corpo. Body Sculpture, também de 2000, tem uma dimensão sexual e explícita, mas não expõe o corpo. Comunica metaforicamente uma noção de desejo, que segundo Vale, é já pré-existente num determinado público. A obra consiste num aparelho de musculação revestido a pastilha elástica mastigada. A questão do desejo individual implica também o contexto em que é desenhado em torno das convenções. Estas peças não têm em comum a representação explícita do desejo ou do prazer carnal. São satélites de uma atitude que procura uma narrativa discursiva na argumentação de identidade sexual do seu autor. Beefcake, de 2000 (Figura 3), tem referências não apenas Pop, mas a publicações como Athletic Guild Physique Pictorial, que nos anos 50 era consumida como uma revista erótica pela comunidade homossexual.

 

 

 

A performance Festa Brava (Monsanto) , de 2005, registada em vídeo e fotografia, apresenta um grupo de oito homens, envergando o que são aparentemente trajes típicos de forcado, mas com saltos-altos femininos e collants a substituir as calças típicas (Figura 4). Esta substituição da masculinidade que estes forcados habitualmente denotam socialmente, é aqui associada ao papel do travesti e da prostituição, ironia construída com a palavra 'pega', simultaneamente definida como o acto que o grupo de forcados realiza na tourada à portuguesa ou na gíria popular, que significa prostituta. Esta obra tem afinidade com Toro, de 2004, uma cortina feita em veludo fúcsia, recortado com a palavra 'toro/ roto' sobre tecido amarelo, Não apenas a alusão ao universo das touradas, seja em Portugal ou em Espanha, com todo o seu glamour e que é também um símbolo de virilidade, mas é sobretudo o 'roto', que no calão popular significa 'paneleiro' (homossexual).

 

 

O final do século XX, com todas as renovações sociais e políticas também assegura um papel social do artista em que este tem de conquistar o seu lugar, consolidá-lo e globalizá-lo, antes de se 'atirar' ao público em questões controversas como as relativas ao sexo, habitualmente circunscrito numa esfera íntima e pessoal. Neste contexto, a fronteira entre a pornografia e arte não está bem delimitada e é aqui que podemos enquadrar Moby Dick, cujo título é também duplamente construtor do sentido na apresentação da obra. Formalmente, apresenta várias soluções, entre filme e instalação, com a apresentação dos seus adereços cenográficos. No filme, Vale e Ferreira imprimem parcialmente um modelo já testado em Warhol (Blow Job, 1964), suprimindo o som nas cenas sexualmente explícitas (em Warhol, contudo, não há cenas explícitas, apenas a sugestão) deslocando o contexto sexual para uma leitura estética, já que o som é um factor primordial na construção do desejo e da excitação que a pornografia cinematográfica possibilita. Apresenta um jogo entre a presença da metáfora, no discurso em voz-off, ou a sua ausência, nas cenas sexualmente explícitas, recorrendo contudo à construção perceptiva por parte do espectador, devidamente carregado dos filtros necessários para a sua leitura: pornografia e associação gay. Reúne, sexo, género e identidade como factores de génese nos seus processos criativos, sem contudo se deixar absorver demasiado nessa apologia, abrindo o seu discurso a leituras globais.

Vale e Ferreira encontram ocasionalmente alguns obstáculos, como o cancelamento da exposição P-Town, (Figura 5), em 2011, no Espaço Arte Tranquilidade, (de capitais privados), no que os autores afirmaram tratar-se de uma questão homofóbica. Contudo, a empresa (Companhia de Seguros Tranquilidade) reage com base no distanciamento dos seus valores, pela possibilidade de polémica que os conteúdos propostos poderiam suscitar, afastando-se da controvérsia através da relação que estabelece com as galerias responsáveis pela programação. P-Town foi apresentada publicamente ainda em 2011, com o apoio da Câmara Municipal de Lisboa, na Galeria Boavista. As obras apresentadas possuem características mais humoristas do que hardcore, como um fanzine com uma capa que apresenta uma paródia fálica, ou um conjunto de toalhas de praia com inscrições/ slogan em stencil, com frases como 'legalize butt sex' ou 'AIDS is killing artists, now homofobia is killing art', ou um colorido conjunto de objectos com características fálicas, atados com uma corda e pendurados no tecto, com o sugestivo título de P-Town – Butt Plugs (Figura 6). P-Town (2011) é uma manifestação contra a homofobia, apresentado como uma citação a um conjunto de factos históricos e memórias da cidade norte-americana Provincetown, onde Vale e Ferreira realizaram uma residência artística.

 

 

 

Conclusão

A obra de João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira tem tanto de paródia como tem de imitação burlesca do sério e partir de um firme compromisso social com as minorias sociais (diga-se, sexuais), que se apresentam como preocupações vitais no seu trabalho, oportunamente de uma forma mais ou menos explícita e combinando a inocência do ser com a violência sobre o ser. Interpreta os dados exteriores sociais e políticos, na sua investigação formal e conceptual, tentando afastar-se das recusas por antecipação a eventuais processos de rejeição e censura, particularmente na questão homofóbica, recorrente na sua produção.

 

Referências

Bran, X. M. (2005). Radicais Libres, Experiências Gays e Lésbicas na Arte Peninsular. Santiago de Compostela: Concellaria de Cultura do Concello de Santiago de Compostela.         [ Links ]

Cunningham, D. M. (2009). Queer today, gone tomorrow. Art & Australia, Vol. 46, No. 4, pp. 642-651.         [ Links ]

Davis, K., & Heilbroner, D. (Realizadores). (2011). Stonewall Uprising [Filme]. USA.         [ Links ]

Lapa, : 2008. "O Vício da História. Pedro Lapa em conversa com João Pedro Vale". Pp. 10-99 in Nascido a 5 de Outubro, Lisboa: ADIAC Portugal, Tugalandia.         [ Links ]

Lapa, :, & Sharp, C. (2008). Nascido a 5 de Outubro. (R. Rosengarten, Trad.) Lisboa: Associação para a Difusão Internacional da Arte Contemporânea.         [ Links ]

Pinto, A. C. (2013). Entrevista a A.C.P. (L. Herberto, Entrevistador)        [ Links ]

Pollack, B. (2002). Between Challenge, Risk and Provocation. Exit, 8, pp. 24-53.         [ Links ]

Quinlan, S. C., & Arenas, F. (2002). Lusosex: Gender and Sexuality in the Portuguese speaking World. Minneapolis: London.         [ Links ]

Vale, J. : (2013). Identidade e queer: provocação ou afirmação? Entrevista a J.P.V. (L. Herberto, Entrevistador)        [ Links ]

 

Artigo completo submetido a 6 de setembro de 2015 e aprovado a 23 de setembro de 2015.

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: luisherberto@gmail.com (Luís Herberto)

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