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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.6 no.12 Lisboa dez. 2015

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Márcia Beatriz e/ou Jaque Jolene: convivência em interlúdio dramático

Márcia Beatriz and/or Jaque Jolene: living in dramatic interlude

 

Claudia Fazzolari*

*Brasil. Licenciada em Artes Plásticas, Instituto de Artes (IA) Universidade Estadual Paulista (UNESP), Mestre em Artes Visuais, IA, UNESP, Doutora em Ciências da Comunicação, Escola de Comunicações e Artes (ECA), Universidade de São Paulo (USP).

AFILIAÇÃO: PROLAM – Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina, Universidade de São Paulo, Pesquisadora do Programa de Pós-Doutorado PNPD CAPES. Rua do Anfiteatro, 181, Colmeias, Favo 1, Cidade Universitária, Universidade de São Paulo, SP. Cep: 05508-060, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

O projeto de criação da artista Márcia Beatriz Granero apresenta ao público o itinerário de um percurso íntimo, algumas vezes quase um relato autobiográfico. Projeto criado para estabelecer um confronto entre personalidades de um possível heterônimo da artista, cada obra destaca existências de uma única mulher, Jaque Jolene. Márcia Beatriz é artista multimídia brasileira que se destaca pela inventiva de suas videoperformances, com trabalhos participantes no Images contre Nature, Festival Internacional de Vidéo Experimentale, Marseille, França e, na recente edição da Temporada do Paço das Artes, em São Paulo. Propõe-se aqui um acompanhamento crítico do itinerário de recentes criações de Márcia Beatriz Granero.

Palavras chave: performance, arte contemporânea, heterônimo.

 

ABSTRACT:

The project of creation of the artist Márcia Beatriz Granero presents to the public the itinerary of an intimate journey, sometimes almost an autobiographical account. Project created to establish a confrontation between personalities of a possible heteronym artist, each work highlights stocks of a single woman, Jaque Jolene. Marcia Beatriz is a Brazilian multimedia artist who stands out by the inventiveness of her video performances, with works in Images contre Nature, International Festival of Vidéo Experimentale, Marseille, France; and in the latest edition of Temporada of Paço das Artes in São Paulo. Here we propose a critical reading of the itinerary of recent creations of Márcia Beatriz Granero.

Keywords: performance, contemporary art, heteronym.

 

Introdução: pensamentos soltos e algumas considerações

Quando confrontados pelas "experiências" de Jaque Jolene não sabemos, de fato, quem está diante de nós, se uma mulher jovem, sensual, em traje improvisado para data e local, que em atitude suspeita circula entre aos visitantes de um cemitério, se uma decidida mulher que se aventura em uma serralheria ou se uma senhora de idade incerta, de aparência cansada, apesar do esforço por manter-se impecável, projeção incontornável do fantasma que vaga pelo subterrâneo de um edifício público na cidade de São Paulo.

Diante das estranhezas citadas acima, proponho aqui uma aproximação com uma parcela do universo das criações da artista Márcia Beatriz Granero (s.d) estabelecendo uma possibilidade de encontro com suas investidas desde passos heteronímicos.

Esses passos heteronímicos serão tratados como processos emancipatórios, como ações de personalidades artísticas prontas para embaralhar nossa compreensão usual.

A artista cria – conduz e emancipa sua obra – por meio de uma projeção chamada Jaque Jolene, como um possível heterônimo proposto para revelar as realidades que cercam e sufocam a vida contemporânea.

De fato não sabemos se Márcia Beatriz assume intimamente a fratura deste possível heterônimo, se a artista permite de forma consciente a aparição de um duplo, ou, sequer, se havia refletido sobre a possibilidade dessa densa convivência com seu outro encarnado, esse ser que diverge da realidade e insiste em manter-se presente, ainda que ocasionalmente.

Se partirmos de uma corrente definição de heterônimo, encontramos este substantivo cansado que indica o nome de alguém usado por outro, para sinalizar autoria do que, de fato, não faz ou fez, como chave e condição singular da poética de um criador único que marca o século XX com seus muitos "outros".

Sabemos que o escritor Fernando Pessoa escolheu seus muitos outros – Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Bernardo Soares – e deu a eles vida e temperamento conforme suas possibilidades de invenção de uma consciente forma de histeria.

Os passos heteronímicos da artista vagando com Jaque Jolene por onde quer que ela vá, encarnada por ela e nela nos permitem rever uma situação inquietante: Jaque Jolene seria um ser duplo alterado que se materializa e desta forma dá vida a um lugar de constituição da subjetividade que percebemos na cena contemporânea?

Que especial zona de subjetividade promove cada aparição de Jaque Jolene? A construção pensada por Márcia Beatriz possibilitou a existência de Jaque Jolene como uma entidade, como uma lembrança necessária e encarnação de um avesso desconhecido ou como revelação de um plano de insurgência da artista?

 

1. De quantas simulações necessitamos para sobreviver?

Assim como Fernando Pessoa assume ser criador de heterônimos aqui a artista assume a criação de uma persona minuciosamente construída e interpretada, para estabelecer outro contato com o entorno que nos cerca nesta farsa, ou seja, nesta forma de aparição no mundo que se aqui se chama Jaque Jolene.

A criação merece grande atenção. Já a intencionalidade do nome composto indica pistas desta possibilidade heteronímica que possui vida própria, vícios, manias e virtudes. Como uma personagem que logo se tornará autônoma – este custo dramático dos heterônimos – o duplo pode ser compreendido como uma aparição que não ocupa exatamente um lugar próprio. É ela própria a materialização de um dispositivo criado por Márcia Beatriz para uma construção ficcional que se expande em conflito.

A criadora, de fato, trata de relações de poder em sua construção ficcional, (Butler, 2007: 47). Como artista ela cria seu avesso e procura em cada situação reafirmá-lo para que suas ações sejam convertidas ao real. Jaque Jolene, esta "figura indefinida" mostra em suas incursões pela cidade, pelos espaços públicos, como Márcia Beatriz mantém controle sobre sua existência, sobre suas aparições e muitas vezes, transtornada luta pelo cancelamento da identidade de sua autora, de sua criadora.

Proponho agora repassarmos algumas aparições de Jaque Jolene para buscar os sinais desta luta entre criador e criação. Sabemos que ao chamar Jaque Jolene à cena, a artista pronunciou seu nome e investiu de força uma figura incerta, misto de passado e presente, pretensão de futuro incerto.

Como vemos, resgatar a heteronímia é também assumir riscos. Considerada fenômeno e marca do espírito de uma época, no caso de Jaque Jolene tudo se encaixa, inclusive esta versão datada, pois nossa "figura indefinida" é a própria encarnação dramática descontextualizada, é uma versão ficcional de um estado de suspensão no tempo.

A videoperformance Frisson, de 2012, é uma aparição de Jaque Jolene que traz nossa ficção como encarnação dramática descontextualizada, em meio aos visitantes do Cemitério do Araçá, no Dia dos Mortos, em São Paulo. Como se comporta Jaque Jolene? Desentendida de si, atordoada entre os visitantes, também ela levava flores aos finados, confusa e atordoada (Figura 1).

 

 

Sabemos que as decisões estão nas mãos de Márcia Beatriz. Ela decide se a ficção visitará um cemitério, um pátio abandonado, um edifício público, ou se permanecerá à espreita para que numa próxima situação seja autorizada sua reaparição.

Conforme o escritor Octavio Paz afirma, toda obra é um intervalo ficcional, "A obra faz o olho que a contempla – ou ao menos, é um ponto de partida: desde ela e por ela o espectador inventa outra obra. (...) Um obra é uma máquina de significar" (Paz, 2008: 60).

Da mesma forma sentimos as incursões de Jaque Jolene pela cidade: suas andanças, suas angústias encarnadas em performances são intervalos, são a obra de Márcia Beatriz. Esta possibilidade heteronímica que se anuncia é a própria diferença, é ela a obra, a máquina de significar criada pela artista.

A autoridade da criadora sobre Jaque Jolene é um dado concreto. Todo heterônimo sabe que sua existência depende de uma necessidade do outro. Traduzir a condição de um heterônimo como uma personalidade distinta, ou contraste entre vida interior e vida exterior, um desvio psicológico é tarefa quase inexplicável.

Como Pessoa certa ocasião expôs em carta ao crítico e escritor Adolfo Casais Monteiro:

 

graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me pareceu que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim, e parece que assim ainda se passa. (Pessoa, 1974: 98)

 

Afinal o que significa embaralhar a autoria na cena contemporânea? Chegará o momento que em uma consulta ao Google não haverá mais Márcia Beatriz Granero que apresente Jaque Jolene? Haverá somente Jaque Jolene em cena?

 

2. Os desvarios de um duplo encarnado

Seriam os desvarios de Jaque Jolene efeitos dramáticos de despersonalização ou invenção materializada pela artista para finalmente alçar o heterônimo à condição autônoma?

Dando sequência à aproximação proposta conhecemos a obra Súbita, uma videoinstalação de 2013, que incorpora dramática narrativa de encontro e desencontro entre artista e condição heteronímica (Figura 2). Nesta ocasião tomamos contato com o texto da própria criadora,

 

 

Quando convidei Jaque Jolene para essa proposta no Centro Cultural São Paulo, nem imaginávamos o que poderia acontecer, o que encontraríamos. [...] dessa vez me deparei com um cenário carregado de memória. Logo que Jaque entrou no espaço se identificou com as histórias presentes nas paredes de concreto. Aprofundando essa relação, descobriu no subterrâneo sua real ligação com o prédio. (Granero, 2013)

 

Jaque Jolene sempre se manteve ativa em performances (Aizpuru, 2009: 36) mas agora destacada no texto de apresentação da obra, conhece um documento que reafirma seu protagonismo, afinal ela foi "convidada" para a proposta realizada no Centro Cultural São Paulo.

Na performance Von Sutnner Salad, de 2013, a artista reforça o protagonismo de sua marca heteronímica quase emancipada e revela em tom solene "Jaque Jolene encontra uma fenda no tempo (...) transportando-se ao ano de 1905. Na Pinacoteca do Estado de São Paulo ela recebe o Prêmio Nobel da Paz."(Granero, 2013)

Referência direta à figura de Bertha Von Suttner, primeira mulher a receber o Nobel da Paz, novamente percebemos que a ficção agora carrega outro status sendo elevada inclusive à condição de protagonista histórica na trama reinventada.

Retomando nossa reflexão sobre as relações de poder estabelecidas entre criador e marca heteronímica percebemos que entre artista e criação existe uma fissura que se expande continuamente em zonas de tensão.

Jaque Jolene logo saberá que seu protagonismo (Cao, 2000: 29) desde sua criação, já existia, pois é ela que, com suas histórias, reafirma o avesso de um sujeito que incomoda a artista, que certamente atormenta Márcia Beatriz. A ficção encarna um dispositivo operacional pensado pela artista. Tal dispositivo operado pela semi-consciência da criadora, encontra seus precedentes em tempos e aparições distintas, em circunstâncias muito particulares.

Parece haver no heterônimo uma condição negociada entre criador e criação de gradativa aceitação de um autoengano. O criador, aquele que detém o poder de administrar a vida deste heterônimo conhece sua própria autoridade, admite sua superioridade inicial e procura constantemente rever os riscos que sua criação pode oferecer à continuidade deste projeto inacabado.

Já o heterônimo ou a criação, essa personagem que se debate, inicialmente pouco sabe de sua condição, mas sem dúvida logo percebe que sua vida se tornará, de alguma maneira, independente de seu criador. Percebe que embora não tenha o poder de ativar sua aparição, tampouco será logo abandonada visto que sua semi-consciência é compartilhada entre ela e o próprio criador.

Daqui decorre o autoengano que criador e criação conhecem tão bem. Tanto um quanto outro sabem que não terão a mesma existência se essa condição negociada se esgotar ou se for interrompida. Assim também se comporta a parceria entre Márcia Beatriz Granero e Jaque Jolene.

 

Considerações finais

Quando a artista decidiu dar forma à Jaque Jolene, muniu-se de estratégias que deveriam estruturar sua decisão: escolheu seu nome, elencou ainda que de forma não textual suas características: mulher, branca, ocidental, para dar início ao projeto desta criação processual.

Os trajes do duplo, seu caminhar, seu olhar e sua postura são elementos importantes para a construção desta ficção encarnada. Suas sandálias de salto, suas bolsas, seus cintos, seus brincos e, definitivamente seus óculos escuros são indícios de uma presença estranha, de um desencontro que ela própria parece reconhecer em suas performances. Estas são as particularidades deste heterônimo de Márcia Beatriz.

E de fato, o que a performance significa? Mais do que a presença deste corpo ou a primazia deste ou daquele comportamento a performance é lugar em que colocamos em questão um dispositivo operante (Rivera, 2013: 20). Jaque Jolene é ela própria um dispositivo operante que se debate com a autoridade de sua criadora.

Não podemos duvidar: a artista discute relações de poder na estrutura e na lógica dos lugares da criação contemporânea quando ativa as reaparições de Jaque Jolene.

Este dispositivo operante que conhecemos como Jaque Jolene faz uso de um corpo constituído como construção cultural, como reiteração exagerada da evidência do feminino, constituído como ambiente destinado à prática da subversão. É esta uma face da individualidade incompleta fabricada por Márcia Beatriz para cada performance.

 

Referências

Aizpuru, M. (2009). Performanceras: mujer, arte y acción, una aproximación. In: ZEHAR. Performance. Donostia / San Sebastián: Arteleku.         [ Links ]

Butler, J. (2007) El género en disputa. El feminismo y la subversión de la identidad. Barcelona: Paidós.         [ Links ]

F. Cao, M. L. (2000). Creación artística y mujeres, Recuperar la memoria. Madrid: Narcea.         [ Links ]

Márcia Beatriz Granero (s.d.) [Consult. 01-09-2015] Disponível em http://www.marciabeatrizgranero.com        [ Links ]

Paz, Octavio. (2008). Marcel Duchamp, ou, o castelo da pureza. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Pessoa, Fernando (1974). Obras em Prosa. Rio de Janeiro: Aguilar.         [ Links ]

Rivera, Tania (2013). O avesso do imaginário. Arte contemporânea e psicanálise. São Paulo: Cosac Naify.         [ Links ]

 

Artigo completo submetido a 6 de setembro de 2015 e aprovado a 23 de setembro de 2015.

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: cfazzolari@gmail.com (Claudia Fazzolari)

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