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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.6 no.11 Lisboa jun. 2015

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Nanocriogênio: as realidades atemporais de Anna Barros e Alberto Blumenschein

Nanocriogênio: the timeless realities of Anna Barros and Alberto Blumenschein

 

Nikoleta Tzvetanova Kerinska*

*Artista visual e professora na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Curso de Artes Visuais, área de conhecimento arte computacional. Graduada pela Escola Nacional de Belas Artes (NHA), Sofia, Bulgária; Mestrado em Arte e Tecnologia da Imagem na Universidade de Brasília (UnB); Doutora pela Universidade de Paris 1, Panthéon-Sorbonne (grupo de pesquisa Ficções & Interações).

AFILIAÇÃO: Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Instituto de Artes (IARTE), Curso de Artes Visuais. Av. João Naves de Ávila 2121 — Campus Santa Mônica. Uberlândia, MG. CEP 38408-100 Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Nanocriogênio é uma instalação interativa de Anna Barros e Alberto Blumenschein, que evoca a visão, o tato, a experiência auditiva e imersiva. A heterogeneidade de seus elementos completa-se por uma série de oposições, que paradoxalmente operam a unicidade da obra. Esta reflexão se constitui em torno dessa problematica tendo como foco o uso de ideias cientificas no campo da arte.

Palavras-chave: heterogeneidade / nanoarte / oposições.

 

ABSTRACT:

Nanocriogênio is an interactive installation signed by Anna Barros and Alberto Blumenschein, which evokes vision, touch, listening and immersive experience. The heterogeneity of its elements is completed by a series of oppositions, which paradoxically operate the uniqueness of the work. This reflection describes that kind of problematic, focusing on the use of scientific ideas in the field of art.

Keywords: heterogeneity / nanoart / opposition.

 

Introdução

Nanocriogênio é um projeto artístico de Anna Barros e Alberto Blumenschein, realizado em 2012, e mostrado em três eventos de artes entre 2012 e 2013 nas cidades de Brasília, Faro e São Paulo. Em cada uma dessas ocasiões, o projeto contou com uma forma original de montagem e exposição. O título Nanocriogênio integra dois conceitos científicos: o primeiro referente à nanotecnologia, e o segundo à criogenia. Enquanto a nanotecnologia estuda a organização da matéria em nível atômico, a criogenia investiga as possibilidades de manter a matéria viva em temperaturas extremamente baixas para postergar a morte física. Ideias e princípios dessas duas áreas de conhecimento são envolvidos num relato íntimo e poético sobre a vida e sua efemeridade.

Este artigo propõe uma reflexão sobre as possibilidades de retomar ideais científicas no campo da arte, sob a perspectiva do projeto Nanocriogênio. O nosso interesse por este projeto é motivado pela heterogeneidade de seus componentes, como também pelas narrativas que eles promovem. Compreendendo que “a expressão designa ao mesmo tempo uma ação e um resultado” (Dewey, 2005: 154), propomos uma reflexão em duas etapas: primeiramente será abordada a composição formal da instalação Nanocriogênio, e, em seguida serão investigadas as relações internas de seus componentes plásticos, tendo em vista a sincronicidade como princípio de construção de significados.

 

1. Composições

Nanocriogênio é uma instalação interativa, que ocupa de 12 a 15 m2. Ela é composta por elementos, que evocam a visão, o tato, a experiência auditiva e imersiva. Dois grupos de imagens compõem a instalação. O primeiro grupo inclui algumas sequencias de imagens abstratas em movimento, cuja estética lembra as imagens de síntese geradas em 3D. É numa tela de projeção, que estas estruturas de cores vivas se compõem e recompõem num ritmo entrecortado, lembrando areias movediças. Sua verticalidade surpreende o olhar pela irregularidade dos desenhos, assim como pela espacialidade que se anuncia em certos momentos da animação (Figura 1). Estas imagens são geradas a partir de varreduras em nano escala da unha e do cabelo da artista Anna Barros. Em outras palavras, elas visualizam estruturas moleculares diretamente derivadas do corpo da artista, apresentando assim uma forma de resgatar a essência física de sua identidade.

 

 

O segundo grupo de imagens apresenta uma série de placas de cobre, usadas em gravura. Essas placas, expostas horizontalmente, nos fazem pensar no vestígio material de algo misterioso, mágico — subtrato de um procedimento alquímico. Elas são usadas como sensores, que quando tocadas pelo público, desencadeiam uma fala. A voz é baixa, solicitando a nossa aproximação, o relato é intimista sugerindo imagens irreais, quase fantasmagóricas — é a artista narrando seus sonhos. A narrativa é feita a partir dos diários da artista, que registram momentos de sua analise junguiana.

Envolvidos nessa narrativa, observamos as placas de cobre, organizadas entorno de um bloco de gelo. Crespo e exalando frio, em formato cilíndrico, o bloco de gelo é produzido por um processo industrial de congelamento por gás resfriante em serpentina. No interior deste bloco encontra-se o material humano varrido no microscópio eletrônico, usado na criação das imagens projetadas. O bloco de gelo e a vibração sonora da voz da artista reforçam a percepção háptica.

A totalidade da composição é posta em funcionamento por um programa computacional, que ordena a interação entre as placas de cobre, os arquivos de áudio, a projeção dos vídeos e o público.

Analisando o centro da composição, compreendemos que o bloco de gelo e as placas de cobre formam uma mandala, cujo desenho apresenta a relação não como de costume entre o homem e o cosmo, mas entre o público e o universo da obra. Como em toda mandala, temos também a exposição plástica e visual do retorno à unidade pela delimitação do espaço sagrado, e, a atualização de um tempo mágico, meditativo. De acordo com os estudos de Jung a mandala é usada “como instrumento conceitual para analisar e assentar as bases sobre as estruturas arquetípicas da psique humana” (Dibo, 2006: 115). Para ele “o comportamento humano se molda de acordo com duas estruturas básicas da consciência: a individual e a coletiva” (Dibo, 2006: 115). Nanocriogênio faz uma referência direta à psicologia analítica e ao universo simbólico humano.

O bloco de gelo marca simultaneamente o centro geométrico e o centro simbólico da instalação. Neste centro, os olhos, os ouvidos, as mão estão envolvidos na percepção da obra e no seu acontecimento. Com cada passo, nosso corpo torna-se parte integrante da instalação e absorve o corpo da obra. Um sentimento de indecisão, ou melhor, de dispersão persiste, causado pela variedade visual e pela diversidade dos componentes da obra. Avaliamos a impossibilidade de captar a totalidade da proposta artística, como algo que motiva nossa inteligência de modo que a cada momento, novos trajetos de fruição se abrem.

 

2. Sincronicidade

A sincronicidade é um conceito desenvolvido por Jung para definir acontecimentos que se relacionam não por relação causal, mas por relação de significado. Este conceito é usado aqui de forma metafórica para determinar as relações de significados entre as partes da obra. O desafio maior da instalação Nanocriogênio é a considerável variedade de seus elementos, cujas inter-relações em muitos aspectos se dão por oposição. No entanto, o princípio da sincronicidade é posto não somente pela intenção dos artistas de relacionar todos os elementos na interação obra/publico, mas também pelo fato de que toda interação nos leva a presença constante da artista Anna Barros.

Quatro ideias-chave são adotadas na analise da(s) sincronicidade(s) entre os elementos plásticos, suas propostas conceituais e seus modos expressivos. Essas ideias permitem ao mesmo tempo descrever o trabalho, decompondo sua complexidade, e, analisar as relações entre os diversos elementos constituintes da instalação. Elas são: “metamorfose polissensorial”, “formas de energia”, “justaposição do tempo” e “dimensões opostas”.

A metamorfose em biologia implica o crescimento do organismo, suas mudanças cronológicas e evolutivas. No projeto Nanocriogênio a metamorfose encontra-se nas imagens derivadas de vestígios materiais do corpo da artista, nas gravações de sua voz relatando sonhos, nas placas gravadas pelos seus gestos. Todos esses elementos se transformam ao longo da interação, solicitando em permanência a totalidade dos sentidos do publico. A visão, a audição e o tato são influenciados pelas mudanças de sensações térmicas, que ocorrem num plano quase imperceptível. Tentamos acompanhar as narrativas gravadas que são intercortadas pelas imagens em movimento, assim como pelo nosso deslocamento no espaço da instalação. Como em “Metamorfoses” de Ovídio, estamos num tempo-espaço mágico, onde as transformações imprevisíveis, e, às vezes radicais, definem o fluxo dos acontecimentos. A impressão que temos é que nos metamorfoseamos junto com o desenrolar do trabalho artístico. A metamorfose polissensorial implica, portanto, as formas de interação e de fruição dessa instalação.

A obra de arte, diz-se de costume, carrega a energia espiritual de seu criador. Assim, o artista nela está presente imprescindivelmente de uma ou de outra forma. No caso específico dessa instalação, cada um dos elementos mantém uma relação física direta com a artista Anna Barros. Seus gestos, registrados nas placas de cobre (e na ausência de suas impressões), as nano imagens das estruturas moleculares de seu cabelo e de sua unha, a gravação de sua voz. Este é último trabalho artístico de Anna Barros. Nas escritas sobre ele, a artista cita como fonte de inspiração a ultima obra de Beuys, Palazzo Regale de 1978 (Barros, 2014: 74). Como Beuys, Anna Barros está se despedindo, marcando a ultima etapa de seu trajeto artístico, e nela concentra-se a energia de um longo percurso.

Esta energia se reconfigura como um substrato de memória, que nutri o sistema da obra. Trata-se de memória da matéria viva, que se manifesta de modos desiguais em cada elemento da instalação. Em outras palavras em cada elemento plástico a memória implica uma forma de energia própria, e sempre relacionada a uma ação ou a uma matéria. Essas formas de energia são fundamentais para a unicidade conceitual da obra.

Outro aspecto que merece atenção é a noção de temporalidade da instalação Nanocriogênio. Todos os adventos nesta instalação referem-se a tempos distintos, ou em outras palavras a dimensão temporal de cada elemento traz um marco de suma importância.

As placas de cobre são matrizes da primeira exposição de Anna Barros, e determinam o início de seu percurso artístico. Elas têm o valor simbólico de um objeto arqueológico, que direciona o olhar para uma época remota. Em contrapartida, o bloco de gelo e as nano imagens nos transportam para um futuro imaginário e distante, onde as ideias científicas que as inspiram encontrariam supostamente diversas aplicações. Mais significativa, porém, é a relação entre o relato dos sonhos e sua própria dimensão temporal.

Segundo o neurocientista Yves Dauvilliers a experiência do sonho é a única experiência do ser humano que ocorre fora de um fluxo temporal, ou seja, a consciência do sonhador não atribui uma temporalidade aos acontecimentos (Dauvilliers, 2014). Em Nanocriogênio, a temporalidade do sonho é reconstituída uma vez que ele é transformado em relato. Este relato, em seguida é transposto num tempo cíclico, definido pelo formato de gravação. O resultado é a justaposição de três noções temporais: a primeira, da experiência do sonho, evoca a ideia de uma atemporalidade, a segunda refere-se ao tempo da fala, ao seu ritmo e durabilidade, e a terceira, ao tempo da gravação dessa fala, que permite sua repetição constante e interminavelmente.

Varias relações de oposição podem ser determinadas na concepção da obra Nanocriogênio. Não se trata somente da heterogeneidade dos elementos que é mapeada ao primeiro olhar, mas de oposições que se revelam ao longo da análise, e, que não escondem suas forças repulsivas. Entre todas as oposições presentes, a mais significativa é a dos dois grupos de imagens, pois ela se dá em alguns níveis complementares. A materialidade das matrizes de gravura se contrapõe a virtualidade e a leveza das imagens projetadas; a efemeridade da projeção à presença concreta do cobre, os movimentos das nano imagens à estática das placas.

Oriundas de universos drasticamente diferentes, essas imagens questionam as relações entre sonho e realidade, entre consciente e inconsciente, entre vida e pós-vida. A oposição é reforçada também pela forma de exposição, visando uma distinção nítida entre a verticalidade da projeção e a horizontalidade das placas de cobre. Todas essas oposições, porém podem ser consideradas como princípio fundamental da obra, que de maneira enigmática conduz a sua essência e afirma sua unicidade.

Paradoxalmente, Nanocriogênio resgata a ideia primordial, que todo trabalho de arte é uma forma de criogenia simbólica.

 

Conclusão

Outras relações formais e conceituais podem ser levantadas no âmbito da instalação Nanocriogênio, por exemplo, a problemática do efeito de presença, as possibilidades de montagem, ou as ramificações de partes da obra, enquanto objetos artísticos independentes. Contudo, essas possibilidades excedem o formato da presente reflexão. Como conclusão propormos a ideia de que o uso de conceitos científicos em projetos de arte trabalha o desdobramento desses mesmos no da experiência sensível imediata. A principal importância desta pratica é posicionar o fazer artístico no campo da interdisciplinaridade, favorecendo assim o desenvolvimento de poéticas e concepções inéditas.

 

Referências

Barros, Anna (2013) Nanoarte, São Paulo: Ed. SESI-SP, ISBN: 978-85-8205-097-2.         [ Links ]

Dauvilliers, Yves (2014) “Le cerveau, le sommeil et les rêves”, Le sens des choses, Programa de televisão transmido pela radio France Culture, dia 02-08-2014, às 16:00 hrs. Disponível em URL: http://www.franceculture.fr/emission-le-sens-deschoses-le-cerveau-le-sommeil-et-les-reves-2014-08-02

Dewey, John (2005) L’art comme experience, Paris: Ed. Gallimard. ISBN:978-2-07043588-3.

Dibo, Monalisa (2006) “Mandala: um estudo na obra de C. G. Jung”, Último Andar, São Paulo, (15), 109-120, dez. [Consult. 2014-01-10] Disponível em URL: http://www4.pucsp.br/ultimoandar/download/UA_15_artigo_mandala.pdf

 

Artigo completo recebido a 13 Janeiro e aprovado a 24 de janeiro de 2015

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: nkerinska@hotmail.com

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