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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.6 no.11 Lisboa jun. 2015

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Ensaio: Fotografia e Pintura nos trabalhos de Marilice Corona

Essay: Photography and Painting in the work of Marilice Corona

 

Andréa Brächer*

*Artista visual na área de fotografia e professora universitária. Graduação em Publicidade e Propaganda (Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação — (FABICO) Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestrado em História, Teoria e Crítica Artes Visuais (UFRGS). Doutorado em Poéticas Visuais (UFRGS).

AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação (FABICO), Rua Ramiro Barcelos, 2705 — Campus Saúde — Bairro Santana, 90035-007, Porto Alegre, RS, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Este artigo analisa a obra “Ensaio” da artista brasileira Marilice Corona. A pintora utiliza-se da fotografia de diversas formas em seu trabalho artístico, mas em particular nestas telas veremos como as questões técnicas pertinentes à fotografia são transpostas para seu trabalho em pintura. Estas questões fotográficas influenciam a cor e dimensão de suas pinturas.

Palavras-chave: Pintura / Fotografia / Marilice Corona.

 

ABSTRACT:

This article analyzes the work “Essay” by Brazilian artist Marilice Corona. The painter uses photography in various forms in her artistical work. We see in those canvases how the technical matters pertinent to photography are transferred to her work in painting. These photographic issues influence the color and size of her paintings.

Keywords: Painting / Photography / Marilice Corona.

 

Introdução

O objetivo deste artigo é apresentar o trabalho da artista brasileira Marilice Corona (Porto Alegre, 1964), que desde 1990 desenvolve sua obra artística com pintura. Reconhecida no Rio Grande do Sul (Brasil) como uma das pintoras da geração dos anos 90, expõe nacional e internacionalmente desde então. Professora de pintura e desde 2012 é docente do Departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Há em sua trajetória artística um diálogo entre pintura e fotografia desde os anos 1990. Efetivamente, essa relação torna-se visível e se estabelece, no período em que desenvolve sua tese de doutorado “Autorreferencialidade em território partilhado” (2009). Nesse momento, os registros fotográficos dos espaços expositivos onde a obra será exibida, assumem grande importância e também passam a ser o “assunto” ou “motivo de representação” da obra, os mesmos,

[...] Além de serem obtidos e organizados como projeção do que virá a ser realizado, influenciam na cor, nas dimensões, no formato; de registro do processo da pintura passam a motivo da representação e apresentam-se, também, como obra (Corona, 2009: 81).

Propomos neste texto analisar parte de seu trabalho em pintura, exemplificado através da série denominada “Ensaio” (Figura 1), constituída de 20 telas 24 x 18cm (acrílico sobre tela, 2006). Nestas, as fotografias utilizadas no processo de feitura da obra são:

[...] evidências de uma natureza artificial concernente ao meio reprodutivo. As fotografias são utilizadas como imagens supletivas de um real codificado pela ótica do aparelho e pelas impressões das imagens mecânicas (Ribeiro, 2013: 284).

 

 

Em “Ensaio” (Figura 1) a pintora trabalha com conceitos relativos as convenções da pintura e com as convenções da fotografia, e é isso que veremos a seguir.

 

1. A fotografia na obra de Marilice Corona

A fotografia acompanha o trabalho da pintora Marilice Corona desde sua pesquisa de mestrado. As imagens fotográficas ou documentos de trabalho — como define Corona, podem ser utilizadas como referências para os trabalhos de pintura ao invés do modelo vivo ou “ao vivo”. Também podem registrar a exposição, com caráter mais documental.

Há também trabalhos em que a pintora expõe somente fotografias, como na obra “Documents de travail”, de 2008 (montagem de 162 fotografias digitais em 18 chapas de foamboardFigura 2) ou que expõe pintura e fotografia — como em “Pintura Latente”, de 2007 (Figura 3).

 

 

 

 

Quanto a origem das imagens e sua materialidade podem ser em xerox, reproduções de recortes fotográficos de jornais e de revistas — de decoração como AD e Casa e Jardim —, e de sua própria infância. Também há o uso de livros de fotografia (The Human Figure in Motion, de Eadweard Muybridge) — o que caracterizaria a apropriação de imagens fotográficas de outros fotógrafos. Há fotografias que são encomendadas aos amigos — como aquelas de locais expositivos, por exemplo, o Espaço Arlinda Corrêa Lima no Palácio das Artes em Belo Horizonte (Brasil). A partir de imagens desse espaço expositivo foram feitas as pinturas de “Ensaio”.

E por último, há aquelas que captura através de seu próprio equipamento fotográfico. Nestas, ao executar as fotografias

[...] já existe a intencionalidade da pintura na escolha das imagens: tipo de corte, composição, sequência de imagens, zoom e distância, detalhes e padrões, cor, etc. Quanto à representação do espaço perspectivado na pintura, cabe ressaltar o aspecto fotográfico que este adquire devido às distorções causadas pela natureza das diferentes lentes da câmera fotográfica (Corona, 2009: 82).

Em todos esses casos, a imagem fotográfica substitui o uso do modelo vivo ou do “ao vivo”. Sabemos também que a pintora possui “caixas-arquivo”, o local onde guarda suas fotografias impressas, que ficam disponíveis à mão em seu atelier. Uma prática, quase em desuso na contemporaneidade, substituída pelo computador, tablets ou telefones móveis com câmeras fotográficas, tanto como aparatos de captura, como também de armazenamento, distribuição, compartilhamento e vizualização de imagens. Ela retorna a materialidade do material fotossensível. Penso que ainda a materialidade é importante na fotografia, como na pintura. Marilice comenta:

A fotografia assume em meu processo, a princípio, o papel do esboço, do desenho, de caderno de notas. Diferentemente do desenho, a fotografia é formada por planos, massas de cor e luz, e, de meu ponto de vista, tais características a tornam mais próxima da pintura. Não é apenas o aspecto realista da fotografia que a motiva, mas a própria materialidade da cópia. Aliás, as fotografias, que me instigam são aquelas que apresentam um certo aspecto pictórico, certa indefinição, aquelas que me deixam em dúvida de se tratarem de pintura ou fotografia. (Corona, 2009: 82).

 

2. Relações entre Fotografia e Pintura: obra Ensaio

A obra “Ensaio” integrou um projeto que a autora fez especialmente para uma exposição em Belo Horizonte (Brasil) no Espaço Arlinda Corrêa Lima no Palácio das Artes. A mostra Espaços de Exposição de 2006 continha somente pinturas.

Segundo a pintora, ela pediu a dois amigos que moravam em Belo Horizonte que fotografassem o espaço expositivo e que individualmente enviassem as cópias por correio. Ao recebê-las, percebeu que a coloração das fotografias eram diferentes: um lote de imagens tinha uma tonalidade esverdeada — e outro lote, rosada. Isso deu a ela a ideia de pintar o mesmo espaço — a mesma imagem repetidas vezes — em tonalidades diferentes até chegar ao branco. A artista pinta a partir de cinco gamas de cor (preto, azul, verde, rosa, sépia e amarelo), tornando-a cada vez mais esbranquiçada, até quase desaparecer. Como numa tabela de cores, a pintora muda a tonalidade de cada quadro sempre procurando, por fim, uma tela, pelo menos, quase branca. Para Marilice seria, o processo inverso da pintura: a imagem é construída com cor vibrante e contraste e ela vai sobrepondo camadas e camadas de tonalidades cada vez mais claras,

[...] até que a imagem quase desapareça — ou seja, pintar e pintar para fazer desaparecer em um processo quase de reversão, de volta ao ponto de origem, à tela em branco (2009: 100).

Questões fotográficas importantes são incorporadas ao trabalho de pintora nesta obra a partir dessa percepção sobre a cor: a temperatura de cor das lâmpadas do ambiente fotografado, a cor resultante da impressão no laboratório fotográfico que cada amigo utilizou e o tipo de superfície de papel fotográfico empregado.

Como relata Marilice Corona em sua tese (2009: 94):

As cópias que recebi apresentavam quatro importantes diferenças: a primeira, relativa à cor, [...]; a segunda, relativa à característica do papel (as esverdeadas eram brilhantes, e as rosadas eram foscas); a terceira, relativa à luz, uma vez que as fotografias foram tomadas em dias e iluminação distintos; e, por último, a diferença das dimensões. Somado a isso, no intervalo de tempo entre as duas sessões, o espaço de exposição havia sido reformado e apresentava novos elementos arquitetônicos e de iluminação do local. A iluminação das primeiras imagens era de luz fria, fluorescente, e nas últimas a luz era natural e incandescente. Assim, mesmo capturadas de um mesmo ponto de vista, as imagens apresentavam fortes diferenças de cor e tonalidades relacionadas a uma série de variáveis. Estas diferenças percebidas serviram de mote para introduzir em minha pintura novas questões relativas à cor.

Marilice convoca teoricamente o texto de Arlindo Machado A Fotografia como expressão do Conceito, para explicar como se dá o comportamento fotográfico em relação à cor; em particular, cita a passagem em que o autor, também se depara com as limitações impostas pelos meios técnicos na reprodução da cor verde, vista durante uma viagem sua à Patagônia. O autor descreve a limitação do filme (película fotográfica) de registrar a cor de uma paisagem. Também descreve a padronização de uma cor, como o verde, independente de onde está sendo tomada a imagem, pois os “verdes Kodacolor se repetem de forma regular e previsível em todas as fotos obtidas nas mesmas condições-padrão” (Machado, 2000: 5). Mas Marilice está ciente das questões técnicas do meio fotográfico, que nem sempre o artista não “fotógrafo” percebe: como a temperatura de cor das lâmpadas dos ambientes fotografados e a diferença entre marcas de papéis coloridos fotográficos e suas superfícies — que vão “despadronizar” a reprodução de uma mesma imagem.

Como afirma Corona:

A redução de cor em minhas pinturas está vinculada, em primeiro lugar, à inversão operada em meu próprio processo, ou seja, à contraposição do colorido de minha série anterior; em segundo, ao estatuto dado à cor na linguagem da pintura; e, em terceiro, que é o que nos interessa para o momento, à relação entre a cor da cópia fotográfica, suas variações e implicações quando transposta para a pintura. Com relação a este aspecto, minha intenção é estabelecer a autorreferencialidade tornando visível a conexão entre a pintura e seu documento de trabalho. Desse modo, ela se refere à própria imagem que lhe dá origem, às suas qualidades e convenções (2009: 90).

E ainda evocando mais uma das convenções da fotografia, a artista estabelece como tamanho para suas pinturas o tamanho convencional de ampliações fotográficas. Na obra “Ensaio” ela repete a mesma imagem da galeria em 20 telas em acrílico de 24 x 18cm. O tamanho é tradicional e muito usado para ampliações em preto-e-branco, por exemplo. E é também a dimensão das fotografias que a artista mantém em seu portifólio. O processo de fatura da obra é mais rápido e enseja também modos de apreensão distintos daqueles de uma obra de grande dimensão. Resgata um olhar, uma recepção ao trabalho mais aproximado — como daqueles quadros holandeses do século XVII, que ensejam a intimidade em oposição ao cenográfico, ao espetáculo e ao afastamento do receptor (Corona, 2009).

 

Conclusão

Em “Ensaio” a pintora trabalha com conceitos relativos as convenções da pintura e com as convenções da fotografia: podemos verificar que o tamanho final de suas pinturas se equivalem aos formatos padrões da indústria da cópia fotográfica (neste caso o tradicional 18 x 24 cm dos papéis preto-e-branco); a temperatura de cor das lâmpadas dos ambientes fotografados ensejam diferentes paletas de cores na pintura (conforme a luz do ambiente as cópias fotográficas apresentam colorações diferentes e a artista pinta a partir destas fotografias e incorpora as novas tonalidades ali encontradas); e as diferentes colorizações obtidas nas cópias fotográficas influenciam também as cores da pintura (pois conforme o laboratório que opera a ampliação fotográfica, os resultados de cor da imagem também se alteram). Estes resultados formais são intencionais, como bem relata Marilice Corona no capítulo 3 de sua tese, estabelecendo uma relação entre estes dois meios distintos: a fotografia e a pintura. Segundo Niura Legramante Ribeiro (2013: 296) é um “casamento” entre a lente e o pincel, onde há a migração de determinados estilemas fotográficos para as pinturas e que caracteriza um dos desdobramentos da mestiçagem contemporânea nas artes visuais.

 

Referências

Corona, Marilice (2009) Autorreferencialidade em território partilhado. 282 f. Tese (Doutorado) — Curso de Artes Visuais, Artes Visuais, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

Machado, Arlingo (2000) A Fotografia como expressão do conceito. Studium, Campinas, n. 2: 1-11. Disponível em: http://www.studium.iar.unicamp.br/dois/1.htm Acesso em: 22 dez. 2014. ISSN 1519-4388         [ Links ]

Ribeiro, Niura Legramante (2013) Entre a Lente e o Pincel: Interfaces de Linguagens. 2 v. Tese (Doutorado) — Curso de Artes Visuais, Artes Visuais, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

 

Artigo completo recebido a 13 de Janeiro e aprovado a 24 de janeiro de 2015

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: andrea.bracher@terra.com.br

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