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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.6 no.11 Lisboa jun. 2015

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Tiago Baptista: as falhas que nos prendem ao chão

Tiago Baptista: the failures that hold us to the ground

 

Susana de Noronha Vasconcelos Teixeira da Rocha*

*Artista Plástica. Licenciatura em Pintura, Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL). Mestrado em Pintura (FBAUL). Mestrado em Ensino das Artes Visuais, Instituto de Educação da Universidade de Lisboa (IEUL).

AFILIAÇÃO: Universidade de Lisboa; Faculdade de Belas-Artes: Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes. Largo da Academia, 1249-058, Lisboa, Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

O presente artigo pretende dar a conhecer o trabalho do pintor Tiago Baptista e a sua relação com o universo das falhas humanas, objecto das suas pinturas inquietantes. Partindo de textos reflexivos do autor sobre a sua própria praxis, importará compreender o universo temático que ocupa o imaginário de Baptista, interessando particularmente compreender de que modo o seu processo criativo se relaciona com o fracasso.

Palavras-chave: Tiago Baptista / Pintura / Fracasso / Chão.

 

ABSTRACT:

This article seeks to present the work of the painter Tiago Baptista and how it relates to the universe of the human flaws, object of his disturbing paintings. Starting from Baptista’s reflective texts of his own praxis, is will be important to understand the thematic universe that occupies the author’s imaginary, particularly how his creative process relates to the failure.

Keywords: Tiago Baptista / Painting / Failure / Ground.

 

Introdução

Recorro ao uso de um espaço “arruinado” à “omnipresença da ruína”, a lugares que não existem, que são quase lugares do nada, sítios sem função, que foram projectados para determinada acção mas que ficaram desprovidos da sua função a meio do processo civilizacional, a meio de um projecto de desenvolvimento. […] É a partir desta ideia de falha, de interrupção de um processo, de um projecto: um projecto social, político, cultural, religioso, de construção daquilo que é a nossa índole, a nossa personalidade, a nossa existência enquanto seres individuais e colectivos, que tento, no fundo, ter presente a ideia de que há uma falha na construção do projecto que somos nós (Baptista, 2011b)

Estas palavras de Tiago Baptista ecoam nas suas pinturas com a mesma concretude do óleo que usa. A ideia de uma civilização fracassada, povoada por anti-heróis que sobrevivem sem conseguirem desligar-se das propriedades lamacentas do chão, ressalta da superfície bidimensional da tela, colando-se na nossa retina e provocando uma sensação de familiaridade primitiva: são realidades que nos compõem o âmago, cenas dejá vu sem que delas tenhamos memória precisa. São, parece-me, as imagens escondidas das nossas inquietações.

No decorrer do presente texto procurarei compreender de que forma Baptista recria esta realidade arruinada, qual parece ser a falha que nos assola, porque não a conseguimos ultrapassar e de que forma esta percepção atinge as diversas produções pictóricas do pintor.

 

1. Lugares arruinados e os seus ocupantes

Nas pinturas de Tiago Baptista há Leiria, há Lisboa, há Berlim. Os lugares onde cresceu, viveu e os lugares que percorreu. Existe o próprio Tiago, a Catarina, a Joana, o André. Família, amigos, e relações humanas, que transparecem na pintura. Algumas personagens estão apenas de passagem — um futebolista, um narciso…. outras perduram. Alguns lugares afundam-se na lama, outros denotam, nas couves e nos fetos, a esperança de uma vida que ascende da terra em direcção ao céu.

O Narciso! O das Fossas, pode ser um qualquer produtor suinícola português. […] Represento um senhor que se apaixona por si ao ver o seu reflexo numa fossa. Esta ideia surgiu numa viagem que costumo fazer para os lados do Cadaval e vejo lá ao fundo umas fossas a céu aberto, bem bonitas, e que pouco reflectem sem ser a ganância e falta de responsabilidade de quem fez com que essas crateras escavadas na terra, que servem para guardar dejectos de animais, existissem. (Baptista, 2010a).
Esta pintura representa um sujeito, com pinta de futebolista gingão, símbolo da glória, da ascensão social e monetária […] Este sujeito é um modelo, um módulo, um exemplo a seguir. Aparece aqui como um guardião, o porta-estandarte de uma cultura, o símbolo de uma nação — a Nação Portuguesa, terra de grandes feitos. Por de trás deste sujeito um rebanho espezinha um conjunto de livros. Esta personagem é também um guardador de rebanhos, um “Pastor”. (Baptista, 2010a).

A pintura de Tiago Baptista, mais que autobiográfica, é a pintura de questões que lhe são íntimas: nasce das experienciais visuais, emocionais, sensoriais e sociais que o rodeiam e o tocam de forma premente.

Em 2009, cria a figura do herói nacional, numa crítica clara que exprime tanto de forma visual como de forma escrita no pequeno texto explicativo que publica. Um ano mais tarde surge um narciso numa nova demonstração de incredulidade social. No primeiro caso, foi a personagem (o futebolista) de inspiração real que obrigou ao lugar criado; no segundo, inversamente, foi o lugar (as fossas do cadaval) que reclamou a criação da personagem (Figura 1). Lugares e os seus ocupantes relacionam-se e confundem-se nas mensagens visuais de Tiago Baptista. Se os lugares são ruínas, também as pessoas parecem vestígios de gente — são, em qualquer dos casos, realidades terrenas, pesadas, presas ao chão, sem redenção ou ambição em serem diferentes. Formalmente há, contudo, o destaque da figura humana como nas antigas pinturas de cariz revolucionário, onde o indivíduo se sobrepõe pela sua escala aos demais elementos (Figura 2).

 

 

 

 

Para além da crítica bem presente, é possível identificar em paisagens e fisionomias uma atmosfera de ruralidade portuguesa. Todo o imaginário patente rejeita a cidade, a noção de progresso ou desenvolvimento — e quando sinais deste surgem são, nas palavras do próprio autor “fábricas que mal funcionam (ou não funcionam de todo), casas esquecidas, caminhos inacabados (ou aproveitados/adaptados da erosão natural), pedras que foram deixadas ao acaso” (Baptista, 2011b).

Mesmo em pinturas criadas no decorrer de uma residência artística em Berlim, durante 2013, é possível pressentir um colapso civilizacional. Um mundo a posteriori, um mundo pós perda, agora encharcado e frio, onde o lodo substitui a lama — como é visível em “Untitled” (Figura 3).

 

 

O que assola o universo criado por Tiago Baptista, parece ser uma falha transversal: um erro colectivo que nos condena não individualmente mas antes como um todo. Se o Narciso das Fossas é uma metáfora para o egocentrismo e a ganância, e o futebolista é um herói nacional que passeia ovelhas sobre livros, e é admirado pelas qualidades periféricas ao âmago social, existem também as personagens que perduram. É certo que não são heróis redentores como se poderia esperar num mundo em decadência que se quer imaginar reerguido — são gente; pessoas reais com características boas, más, honestas. São gente que ainda não se desfez em barro, analogia querida a Baptista, na qual me parece relevante deter-me, pois também ela é definidora do universo temático e simbólico da sua pintura.

 

2. Barro, terra e falhas

Segundo textos bíblicos Deus disse: “Até que voltes à terra de onde foste tirado porque tu és pó e ao pó voltarás”. A divindade condena o Homem à vida de esforço e privação alertando-o também para a sua fragilidade e efemeridade na terra. Apesar da Humanidade ser feita do pó da própria terra misturado com água e, apesar da terra ser a matéria de origem, ela é também símbolo do fim da nossa existência. […] Estas pinturas, estas imagens, com estas figuras de “formas amassadas”, estes “corpos de barro”, são “visões” de como seriam os seres humanos se uma entidade mística os transformasse em barro. Este material frágil, de consistência dúbia funciona como metáfora da instabilidade, da fraqueza dos Homens, reflexo dos seus comportamentos sociais e das suas decisões. (Baptista, 2011a)

Nos últimos anos Tiago Baptista tem criado imagens que procuram, através das suas analogias ao barro, evidenciar uma dualidade humana. Existe uma antiga tradição na identificação do barro ou da terra como matéria criadora do homem, transversal a diversas culturas geograficamente dispersas, que o artista conhece bem. Como o próprio aponta, o barro é um material que apresenta uma estranha ambiguidade, sobretudo na tradição artística. É simultaneamente um médium frágil e instável que se parte e desfaz, e é porém um dos materiais mais expressivos numa simbologia ligada à criação, estando inclusivamente visado na Lenda do Nascimento da Pintura (e também da Escultura), descrita por Plínio-o-Velho.

As referências a esta simbologia são várias: segundo o catolicismo, Deus terá moldado o homem a partir do pó; na Mesopotâmia acreditava-se que o Deus Ninmah havia criado as pessoas a partir da moldagem de barro, porém na mitologia grega foi Prometeus quem moldou o primeiro homem a partir da mesma matéria; para os Dogons do norte de África, o ser humano veio da terra; para os Inuit do Alasca o ser humano foi feito em barro pelas mãos do deus Tulungersk, enquanto na mitologia inca, Viracocha tirou do lago Titicaca, a terra com a qual fez o ser humano. Para Tiago Baptista, o barro é simultaneamente génese e fim.

Na pintura “Sem Título” (Figura 4), quatro personagens transformam-se em barro. A fraqueza, que o artista aponta no texto supra-citado, começa a instalar-se, a apoderar-se também dos que lhe eram alheios, como uma condenação contagiosa que se propaga e nos desfaz — um início do regresso ao chão… Esta pintura é talvez uma metáfora de um tipo de morte que nos atinge quando não concretizamos plenamente o nosso potencial. Parece-me que é desta falha que somos acusados, ou antes alertados, a cada imagem criada por Tiago.

 

 

Contudo, se tal como o barro a humanidade é dual, a falha, o erro e o fracasso, fazem tanto parte de si, como a força de espírito, a honestidade, a dignidade. Existem com igual relevância e é por isto que mesmo num universo desencantado como o que muitas vezes parece surgir nas pinturas de Tiago Baptista, a redenção através da perfeição se afigura sempre impossível. Em cada pintura há uma atmosfera de ocaso, de tempo que se esgota e se torna irrepetível — quase como se Baptista tentasse recordar-nos que a humanidade é mortal, e o tempo de tentar mudar (mesmo dentro da nossa imperfeição) é agora. Ou, pelo menos, é assim que a vejo.

 

3. Histórias dentro de histórias

A Tiago Baptista interessa “encenar uma acção que não seja facilmente descodificada, a possibilidade de inventar uma ou várias histórias em redor de cada personagem e das suas relações”, como refere […] As narrativas sucedem-se e o absurdo das pulsões não controladas e o exercício de uma vontade elementar, descrita em curtos e sintéticos rasgos visuais, remetem-nos para uma literatura que tem em Edgar Alan Poe, Max Aub ou, até, num dado mais deprimido e extenso mas, por vezes, presente, Dostoievsky, grandes representantes. (Faro, 2009: 54)

Pedro Faro, num artigo publicado na extinta revista L+Arte, chamou às narrativas e personagens de Baptista crimes exemplares. São somente crimes pelas histórias que contam e exemplares pela forma verdadeira como são contados. Sobre estes atributos Faro relembra as palavras de Max Aub:

Os homens são aquilo em que os tornaram, e querer considerá-los responsáveis por aquilo que os leva, de repente, a ficar fora de si é uma pretensão que não partilho. As razões evidentes que os levaram ao crime são fornecidas por eles próprios com uma fraqueza total, pois não têm outro desejo para além de se deixarem, por vezes, arrebatar pelo seu infortúnio. (Aub apud Faro, 2009: 54)

Olhando com atenção, podemos perceber que as histórias contadas por Tiago Baptista têm diferentes níveis de narração. Existe sempre uma história maior, já identificada, que relata diferentes falhas humanas. Uma falha que, pensando em Aub, é, para além de culpa individual do sujeito, culpa também do colectivo onde este se insere e até mesmo da natureza que assim o fez. Existe ainda uma narração que nos é dada pela paisagem (Figura 5). Pistas de lugares, de acontecimentos, às vezes pistas de pinturas por outros pintadas (referências para o autor — como na Figura 6 que nos recorda “Et in Arcadia Ego” de Nicolas Poussin). Existe a história de Tiago que transparece nos lugares e pessoas escolhidas e nos temas trabalhados. E por fim, a história que visivelmente se conta na pintura, que muitas vezes é apenas desvendada o suficiente para ser identificável, mas que pede ao observador que a descubra, e reflicta sobre ela. Há um mundo de possibilidades, simbólicas e contemplativas, em cada imagem.

 

 

 

 

 

Conclusão

O presente texto procurou dar a conhecer a obra pictórica de Tiago Baptista. Ao longo dele tive oportunidade de referir algumas das características estruturais da pintura deste autor, a um nível temático e formal, das quais destaco a pertinente crítica social que alia a um universo pessoal de representação. Ainda que as suas narrativas surjam de experienciais individuais, estas são facilmente reconhecidas como memórias imprecisas de momentos já vistos ou vividos — pressentidos — pelo observador. São imagens inquietantes que nos transmitem um sentimento de familiaridade. São imagens de falhas irremediavelmente inerentes à condição humana.

 

Referências

Baptista, Tiago (2010a) Narciso das Fossas. [Consult. 2015-01-09] Texto e reprodução de Pintura. Disponível em URL: http://bloguedotiagobaptista.blogspot.pt/2010_04_01_archive.html         [ Links ]

Baptista, Tiago (2010b) O Herói Nacional. [Consult. 2015-01-09] Texto e reprodução de pintura. Disponível em URL: http://bloguedotiagobaptista.blogspot.pt/2010_04_01_archive.html         [ Links ]

Baptista, Tiago (2011a) Cabeça de Burro. [Consult. 2015-01-09] Texto. Disponível em URL: http://bloguedotiagobaptista.blogspot.pt/2011-05-01_archive.html         [ Links ]

Baptista, Tiago (2011b) Sem Título. [Consult. 2015-01-09] Texto. Disponível em URL: http://bloguedotiagobaptista.blogspot.pt/2011-05-01_archive.html         [ Links ]

Baptista, Tiago (2012) O que é isto? [Consult. 2015-01-09] Texto. Disponível em URL: http://www.fanzinesemartelos.blogspot.pt/p/o-que-e-isto.html         [ Links ]

Faro, Pedro (2009) “Crimes Exemplares.” Revista L+Arte Nº61. Lisboa: Saúde Press.

 

Artigo completo recebido a 13 de Janeiro e aprovado a 24 de janeiro de 2015

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: susanavrocha@gmail.com

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