SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.6 número11Revolução das Flores: uma introdução ao Grupo do Ano 24 na vanguarda do shōjo mangaOs Nelsinhos de Flávio Abuhab: arte contemporânea multidimensional índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.6 no.11 Lisboa jun. 2015

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Alma e identidade na obra de David Nebreda

Identity at the work of David Nebreda

 

Antonio Carlos Vargas Sant´Anna*

*Artista visual. Doutor em Artes pela Universidad Complutense de Madrid.

AFILIAÇÃO: Universidade do Estado de Santa Catarina-UDESC, Centro de Artes(CEART), Departamento de Artes Visuais (DAV), Programa de pós-graduação em Artes Visuais(PPGAV). Avenida Madre Benvenuta, 2007 — Itacorubi, Florianópolis — SC, CEP 88035-901— Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

O artigo estabelece uma relação entre os conceitos de alma e identidade com a obra do fotógrafo espanhol David Nebreda para evidenciar a singularidade e importância desta produção artística dentro da estética fotográfica contemporânea como um dos mais pungentes, realistas e impressionantes registros da condição existencial contemporânea pela busca do sentido da vida apoiada apenas no corpo.

Palavras-chave: Nebreda / corpo / fotografia / alma / identidade.

ABSTRACT:

The paper establishes a relationship between the concepts of soul and identity with the work of Spanish photographer David Nebreda to highlight the uniqueness and importance of this artistic production in to contemporary photographic aesthetic as one of the most poignant, realistic and impressive records of contemporary existential condition for the search the meaning of life supported only in the body.

Keywords: Nebreda / body / photography / soul / identity.

 

Introdução

Pensar a obra de David Nebreda a partir de uma relação com os conceitos de alma (Platão) e identidade (Locke, 1996; Hume, 2006) evidencia a singularidade desta produção artística fotográfica.

Os conceitos de identidade ou de alma, tal como predominantes na filosofia ocidental, nos auxiliam a entender a obra deste artista como um dos mais pungentes, realistas e impressionantes registros da condição existencial contemporânea pela busca do sentido da vida apoiada apenas no corpo.

 

1. Alma, identidade e razão

O conceito de alma, que tem sua origem no termo latino anima, esta tradicionalmente associado ao princípio da vida dos seres vivos e que sobrevive a finitude da corporeidade destes. Tal ideia que encontramos ao longo do passado da humanidade perdura em diferentes doutrinas religiosas. Não é equivocado, no entanto, atribuir a Platão a primeira formulação clara da visão dualista entre alma e corpo como realidades distintas. Na proposição platônica, mais importante que a distinção filosófica entre a natureza substantiva da alma e do corpo é a relação que o filósofo estabelece entre alma e conhecimento que, por primeira vez na história, é relacionado ao conceito de Ideia (Santos, 1999: 64). Outro elemento de grande importância na elaboração do conceito de alma como conhecimento racional por parte de Platão é a memória, pois é através da reminiscência que a alma recorda a Ideia original. Esta relação entre alma e memória é fundamental para a formulação dos conceitos platônicos de ética e justiça, pois somente a alma que recorda pode responder por seus atos. E afinal, qual o sentido da sobrevivência da alma no post mortem se as lembranças de quem somos não nos acompanham? Não são estas memórias o que nos permitirá no mais além seguir sendo quem fomos aqui, para além de nossa corporeidade? Assim, Platão, através da relação entre razão, memória faz da alma, o conceito fundamental para a definição do ser humano. Esta concepção, incorporada pela doutrina cristã, predominou por séculos na história da filosofia ocidental passando por Santo Agostinho até o Descartes, definindo a alma como dotada de razão e relacionando-a com a consciência.

Já o termo identidade pessoal é bem mais recente e busca diferenciar o Eu do indivíduo. Grosso modo, não é equivocado pensar que o conceito de identidade pessoal, sob vários aspectos substitui na filosofia ocidental a concepção de alma. John Locke (1632-1704) relacionou o termo identidade pessoal ao self ou si próprio expressando a singularidade, isto é, o que diferencia cada um de outros homens ou seres humanos mas não apenas fisicamente como também e, principalmente, subjetivamente. Esta subjetividade, por sua vez, está diretamente relacionada não apenas as experiências sensoriais, físicas ou subjetivo-emocionais, mas a uma capacidade de recordação destas experiências. Aquilo que vivemos, que experienciamos, nos constitui no que somos se podemos recordar. Locke também relaciona a identidade pessoal com a consciência, isto é, com a reflexão (racional) que um faz sobre si mesmo. Desta forma, o que definiria a identidade pessoal é a capacidade de um indivíduo pensar racionalmente sobre si próprio hoje, reconhecendo-se como o mesmo que pensava no passado e que vai pensar no futuro, embora o pensamento (como o corpo) do passado e do futuro não sejam os mesmos do presente. Locke assim, ao formular seu conceito de identidade pessoal, ainda que não negue o vínculo histórico entre memória e razão na constituição da alma, resta importância a existência da mesma.

David Hume (1711-1776), por sua vez, discorda de um conceito de identidade pessoal como o formulado por Locke, que expressa uma unidade do Eu. Para ele, a mente não é mais que um palco teatral no qual uma sucessão de percepções faz sua aparição. A identidade emerge assim como um conjunto de impressões constantemente alteradas cuja unidade, isto sim, é dada pela memória pois é ela que mostra as relações existentes entre as impressões do passado e do presente, formando assim uma ilusória ideia de unidade. Por este motivo é que Hume — ainda que coincida com Locke em associar memória e razão— por considerar o Eu uma ilusão, tampouco sustenta a existência da alma uma vez que esta se manifestaria como unidade. Hume assim, antecede em mais de dois séculos, a compreensão fragmentária da identidade pessoal formulada na contemporaneidade por teóricos como Hall (2005) ou Giddens (2002).

Tal introdução consideramos pertinente se buscamos em uma via de aproximação para com a obra de fotógrafo espanhol David Nebreda. Se tomarmos a relação entre memória e razão, seja para definir o conceito de identidade pessoal ou o de alma, e se temos ainda em consideração a relação histórica de oposição entre alma e corpo, veremos que a obra de Nebreda se mostra como uma das mais cruas manifestações contemporâneas da solidão existencial e da busca por um sentido no único local possível: o corpo. Um corpo que procura desesperadamente sua alma e sua identidade para encontrar assim sua razão (Figura 1).

 

 

David Nebreda, licenciado em Bellas Artes, nasceu em Madrid em 1952 sendo aos 19 anos diagnosticado como esquizofrênico. Se retirou prematuramente do convívio social vivendo enclausurado num pequeno apartamento da capital espanhola, negando-se a tomar medicamentos e submetendo seu corpo a severos processos físicos cujos registros fotográficos foram primeiramente conhecidos pelo galerista parisino Renos Xippas e posteriormente através do editor Léo Scheer, dado a conhecer aos que se dedicam a compreender como na arte contemporânea o corpo é abordado.

Os autorretratos fotográficos de David Nebreda mostram um corpo que é submetido a um verdadeiro martírio. Revelam um conjunto variado de ações cujas consequências sobre o físico captado faz com o que o observador imediatamente relacione estas imagens com os terríveis registros fílmicos e fotográficos dos campos de concentração da segunda grande guerra. Fosse o autor negro, as imagens remeteriam aos famintos e refugiados de guerras africanas. A substancial diferença é que, na maior parte das vezes, é o próprio Nebreda que submete seu corpo a este martírio.

Se a razão é, através da formulação dos conceitos de alma e identidade, um componente essencial na constituição do sujeito, a falta de razão condena o corpo deste unicamente a sua condição de indivíduo pois nega-lhe a possibilidade de ser que é dada pela alma ou pela identidade. A ausência da razão empurra o indivíduo-corpo a manter apenas uma relação com o componente restante da constituição do sujeito: a memória. E esta é, em nossa opinião, uma das chaves para se compreender a obra deste fotógrafo.

O observador para reconhecer a força e importância de uma imagem artística não necessita estar em posse dos dados autorais da mesma. Mas uma vez em posse destes não pode eliminá-los de seu juízo de valor. No caso da obra de Nebreda não é preciso saber que o corpo registrado na imagem é o do próprio autor para estabelecer uma associação deste corpo com o de enfermos mentais (Figura 2, Figura 3). Mas o fato de sabermos que o autor não apenas é diagnosticado como esquizofrênico como se nega medicar-se pra o transtorno nos leva, obrigatoriamente a considerar o papel que enfermidade estabelece em sua prática artística.

 

 

 

 

Nebreda não usa a fotográfica em sua concepção tradicional de registro, pois todo o registro serve para aquele que o fez lembrar. A relação de Nebreda com a memória se faz através do corpo sendo a fotografia uma meta-memória, isto é, um registro que remete ao outro registro. A relação de Nebreda com seu corpo é visceral, eminentemente carnal, por redundante que a expressão possa ser pois é única e exclusivamente através da relação entre memória e corpo que esta alma/identitária pode ser buscada. Não são imagens de um corpo que sofre, mas de um corpo que é marcado.

É preciso ter presente que o conceito filosófico de razão que está atrelado ao de alma ou de identidade é, sempre, o de uma razão imputável, isto é, que é possível responsabilizar o autor do pensamento, seja este enunciado ou não. É uma razão reflexiva, consciente de si.

Quando alguém diz: este ou aquele corpo sofre, quer dizer que o Eu do corpo está consciente do sofrimento e não apenas que a carne que constitui o corpo esta ferida, o que implica que está usando um conceito de identidade ou de alma. Mas na moderna concepção filosófica ocidental, a identidade apenas existe quando podemos reconhecer razão e consciência. Algumas religiões, naturalmente, discordam. Mas a obra de Nebreda nos faz lembrar que existe um ponto de inflexão entre as visões da filosofia e da religião: a da arte.

O fotógrafo espanhol, voluntariamente, marca seu corpo como um registro do corpo presente, como um registro da identidade presente. Identidade esta, fugaz, escorregadia. Frequentemente sacrifica o corpo ao limite da privação alimentaria; corta, espeta, costura, leva a dor para além do limite racional para registrar — no corpo — que não habitando a razão (nos moldes idealizados da filosofia ocidental) é a marca o caminho para a memória encontrar o rastro no qual a alma ou a identidade pode(m) ser reconhecida(s).

O autorretrato mais singelo, o mais suave realizado por David Nebreda é sempre um retrato que parece não ter identidade pois poderia ser a imagem anônima de incontáveis homens e mulheres que habitam sanatórios pelo mundo afora. De seres humanos cujas identidades foram negadas pela família, pelos amigos, pela sociedade. De seres humanos sem alma, porque abandonados por famílias, amigos e sociedade somente lhes restaria o abrigo, o aconchego que a religião poderia oferecer mas, num mundo moderno/contemporâneo onde o Estado assumiu o papel que a religião ocupava no que se refere aos cuidados com a saúde psicológica, é o nada lhes que é oferecido: nenhuma identidade, nenhuma alma. E é aí que a obra artística de David Nebreda se rebela e se apresenta como um lugar de resistência ontológica. É neste local que sua imagem fotográfica, seu autorretrato comparece como pergunta e como afirmação: Quem sou? Sou Eu! Porque ao registrar este corpo marcado, o que Nedreda nos apresenta é uma imagem para com a qual não podemos estar indiferentes sob pena de nos condenarmos — como ele foi pela sociedade condenado — à condição de não humanidade. Em cada retrato, Nebreda se afirma como ser humano, independentemente que o establishment social ou a história da filosofia nos obrigue a reconhece-lo apenas como um corpo. Na verdade, os autorretratos de Nebreda não afirmam, eles gritam: Sou humano! Ainda que sem esta razão com a qual a sociedade nos ensina a nos reconhecermos como seres humanos. Para usar as próprias palavras de Nebreda “ Existe uma relação entre o esforço para evitar o espanto de todas as conjugações verbais e ato mágico de vontade pelo qual dizemos: Que isso seja” (Curnier & Surya, 2001: 157).

 

Conclusão

Referências a esquizofrenia e a religiosidade são presentes em textos do próprio Nebreda, bem como de críticos sobre sua obra. Neste artigo, ao trazermos à tona as relações históricas existentes entre os conceitos de identidade, alma e razão, procuramos evidenciar que a obra deste artista funda-se num território de afirmação do sujeito que é doloroso e solitário e, por isso mesmo, pode ser considerada como um paradigma da condição do ser humano no mundo contemporâneo.

 

Referências

Curnier, Jean-Paul & Surya, Michel (2001) Sur David Nebreda. Paris: Editions Leo Scheer.         [ Links ]

Giddens, Anthony. (2002) Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar,         [ Links ].

Hall, Stuart (2005) A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de janeiro: Editora DP&A.         [ Links ]

Hume, David. (2006). Da Imortalidade da Alma e Outros Textos Póstumos. Tradução: Daniel S. Murialdo, Davi de Souza e Jaimir Conte. Ijuí: UNIJUÍ         [ Links ].

Locke, John. (1996) Ensaio Sobre o Entendimento Humano. São Paulo: Editora Nova Cultural.         [ Links ]

Santos, Bento Silva (1999) A imortalidade da alma no Fédon de Platão. Porto Alegre: Ed. EDIPUCRS.         [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 9 de Janeiro e aprovado a 24 de janeiro de 2015

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: acvargass@gmail.com

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons