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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.5 no.10 Lisboa dez. 2014

 

ENTREVISTA

INTERVIEW

Esferas Suspensas, entrevista a Rui Chafes

Suspended Spheres, Rui Chafes interviewed

 

Rui Serra*

*Portugal, artista plástico / pintor e professor de pintura. Licenciatura em Pintura, pela Faculdade de Belas-Artes da universidade de Lisboa (FBAUL). Mestrado em Pintura (FBAUL). Doutoramento em Belas-Artes, especialidade de Pintura (FBAUL).

AFILIAÇÃO: Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes. Largo da Academia Nacional de Belas-Artes. 1249-058 Lisboa, Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Esta entrevista possui dois grandes objectivos: reflectir sobre uma série escultórica de Rui Chafes, e justificar a sua dimensão artística à luz de uma sensibilidade que aflora a transcendência na Arte actual.

Palavras-chave: Escultura / Suspensão / Alquimia / Fé / Deus.

 

ABSTRACT

This interview consists of two main objectives: to reflect on a series of sculptures of Rui Chafes, and justify his artistic dimension in a domain that concerns the issue of transcendence in the current Art.

Keywords: Sculpture / Suspension / Alchemy / Faith / God.

 

– Entre 1998 e 2005 executaste um conjunto de esculturas com os seguintes títulos: Amanhecer, Que Farás, Deus, Se Eu Morrer?, Sol, Suave Medo Escuro, Um Sopro, Entre o Dia e o Sonho, Perder a Sombra, A Tua Sombra, Respiração, Durante o Sono, A Alma, Prisão do Corpo, Aproxima-te, Ouve-me, O Último Olhar, Passagem, A Sombra da Tua Sombra, Apaga-me os Olhos, Breve Mas Infinita Distância, Ouço-te Tão Lentamente e Não Pesar Sobre a Terra. São esculturas em ferro cuja configuração consiste numa grande esfera, como um balão, suspensa sobre linhas delgadas e ondulantes, parecendo manter-se num estado intermédio de levitação (Figura 1, Figura 2, Figura 3, Figura 4, Figura 5, ). Posso considerar estas esculturas uma série?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Rui Chafes: Estas obras constituem uma série no tempo. Sempre trabalhei por séries, que se podem estender por vários anos, com interrupções. Funcionam para mim como variações de um tema (tal como na música) em que vou procurando todas as formas possíveis ou passíveis de serem úteis, até chegar a um ponto em que já compreendi a escultura, em que não preciso de investigar mais. Sempre trabalhei assim e não é nada complicado nem na minha cabeça nem historicamente: os escultores góticos sempre fizeram variações sobre temas (Anunciação, Virgem com o Menino, Crucifixão, etc.). Por outro lado, eu venho historicamente da herança da escultura Minimalista e Pós-Minimalista americana dos anos 60 e 70, e esse foi um contexto em que os artistas trabalharam e desenvolveram precisamente a noção de série. Não podemos esquecer que foram esses autores que deram o impulso mais significativo à história da escultura contemporânea enquanto prática e crítica de um processo material de inversão do espaço.

– É só uma escultura com vários momentos?

R.C.: Toda a minha escultura é uma só escultura com vários momentos. Um filme com vários fotogramas. Por isso está inacabada.

– Os títulos que atribuístes às 'esferas' são citações, paráfrases ou são simplesmente inventados por ti?

R.C.: Todos os meus títulos são reinterpretações e reinvenções de todas as representações do Mundo através da Palavra. Tudo o que lemos, reinventamos.

– Vês nas metáforas religiosas, ocultistas, alquímicas, uma forma do teu trabalho aceder a um patamar espiritual, em que a matéria/forma 'é como se' fosse espírito/sentido?

R.C.: Creio que o sentido poético (tal como o entendia Pasolini) é o que nos permite agir sobre o mundo a partir de uma deslocação (por vezes mínima, por vezes enorme) de sentido do ponto de vista. O sentido poético é o que desloca o espectador (não existe Arte se não for recebida, vista, ouvida, etc.) para um ponto onde uma nova construção da realidade pode acontecer. "Não existe Arte sem transformação", como escreveu Robert Bresson.

– Sentes que haverá conexões genéricas e/ou específicas de sentido entre ti e, por exemplo, Mark Rothko e Andrei Tarkovsky?

R.C.: Tens razão. Mas não te esqueças, igualmente muito importante: Ad Reinhardt!

– Pelo facto de teres estudado na Alemanha, e estes autores serem oriundos da Europa do Norte, pode presumir-se uma certa cumplicidade geográfico-cultural entre vocês?

R.C.: É difícil responder. Aparentemente existe o 'anel nórdico/russo/japonês', que conteria em si o silêncio e a estagnação do tempo. A cultura germânica, da qual sempre estive muito próximo, é uma cultura de rigor e exactidão, mesmo na demência. Mas, por exemplo, a construção do tempo em Bresson ou em Pasolini também me guia os passos e eles são meridionais. É difícil responder com geografia. Mas sim, na verdade a chuva, o frio e a escuridão moldam o carácter de uma cultura de uma forma diferente que o sol, o calor e a luz. Trata-se de negociar o mundo interior com o mundo exterior. A Arte será sempre a fricção entre o mundo interior e o mundo exterior.

– Há uns anos disseste-me que havia uma estreita intimidade entre estas esculturas e o filme Andrei Rublev de Tarkovsky. Podes especificar como?

R.C.: Há muitas intimidades com esse filme (feito no ano em que nasci, 1966) e com toda a obra de Tarkovsky. Andrei Rublev foi a minha primeira aula de Estética a sério, quando era estudante na F.B.A.U.L.. Aí percebi, pela primeira vez, que a escultura pode ser apenas um enorme balão que se eleva lentamente no ar, levando consigo a emoção e o entusiasmo sem fim de um homem que perde o peso da gravidade.

– A propósito desse filme, que relata a vida de Andrei Rublev, um pintor de ícones russo do final da Idade Média, recordo que é muito conhecido o teu entusiasmo pela obra do escultor Tilman Riemenschneider do gótico tardio alemão. Vês alguma relação possível entre estes dois autores?

R.C.: São dois autores que desenharam as marcas da sua Fé com o maior rigor, nos seus respectivos materiais. Ambos criaram um espaço de definição para essa zona ambígua a que chamamos 'Fé na Arte'. E ambos achavam que seguir uma regra e uma disciplina será sempre um caminho mais seguro para chegar à grande Arte do que seguir apenas os instintos de expressão pessoal. Falamos de Arte, falamos de fechar as janelas para não ouvir o ruído da multidão, lá fora. No entanto, ambas as obras deveriam ser vistas no seu mundo, no mundo onde nasceram e a onde pertencem: a Igreja, não o Museu.

– Pode assumir-se metaforicamente que és um demiurgo que 'domina' a arte alquímica?

R.C.: Todos os artistas que pretendam algo mais do que a representação o terão de ser, de certa maneira. A alquimia consiste em transformar a matéria em energia. Só isso.

– A mónada é o número um na contagem alquímica. A mónada é negra e não pode ser claramente compreendida. Ela é inumana, ou melhor, é pré-humana. Pensaste na ideia de mónada quando concebeste a série das 'esferas'?

R.C.: Não. Pensei no Tarkovsky. E pensei num sol negro a elevar-se, suavemente, numa paisagem sem fim, sobre o caminho de alguém que vai morrer. E pensei também que este balão negro é a Morte: uma sombra que entra, pairando silenciosamente, numa casa. E ninguém se apercebe dela.

– Na alquimia existe também um outro conceito – o Sol Negro – que é sinónimo da extinção de toda a luz e de toda a vida num mundo frio e hostil. O negro consiste no encontro com a matéria primordial, ou seja, com o inconsciente. As esculturas possuem esta cor por esse motivo?

R.C.: As minhas esculturas são negras mas sem brilho. Não quero que a sua presença reflicta a luz, quero que a absorva. Tal como as pinturas de Ad Reinhardt, a presença vem do negativo, da absorção da luz, não da sua reflexão. São sombras, são negativos. São negativos de esculturas, sombras de esculturas, um contra-mundo. Anti-esculturas.

– Este negro nas tuas esculturas recorda também o numinoso, o mysterium tremendum et fascinans, nomeado por Rudolf Otto. Se considerar que estamos perante o incompreensível, faz sentido tentar explicar as tuas obras?

R.C.: Nunca faz sentido tentar explicar obras que não são comunicação. Podemos fazer aproximações ao seu enigma original mas será impossível explicar. O meu trabalho (felizmente!) espanta-me continuamente. Por vezes, passados muitos anos, ainda não o compreendo nem compreendo as razões que me levaram a fazer uma coisa ou outra, surpreende-me. O enigma permanece. Mas eu não fecho portas, eu deixo portas abertas. Mas são muito estreitas.

– Existe alguma conexão entre estas tuas obras e um dos momentos inaugurais da história do abstraccionismo, a execução por Kasimir Malevich, em 1913, dos cenários para a ópera Vitória Sobre o Sol (ópera na qual o Sol é ocultado por um eclipse total e definitivo, terminando com a destruição da dimensão tempo, e fazendo surgir uma nova realidade suprematista)?

R.C.: O referente é a Vittoria del Sole do Gerhard Merz, meu professor.

– Consideras haver nestas tuas esculturas destruição do tempo, estagnação do tempo, ou estar-se-á num momento anterior ao nascimento dos ciclos temporais?

R.C.: Acredito que haja a tentativa de parar o tempo.

– Elas são 'mudas' ou 'sonoras'?

R.C.: Mudas não são, senão seriam estéreis. O silêncio não existe, nunca neste mundo.

– Maria Filomena Molder no livro Matérias Sensíveis afirma que, na esteira de Novalis, as tuas obras são como que dejectos, expulsões do corpo e que os grandes segredos das tuas esculturas estão encerrados no corpo. Também acredito que em toda a tua obra está latente uma sensação de sexualidade aplicada às formas. Pode pensar-se esta tua série como um prenúncio de um órgão reprodutor feminino prestes a ser fecundado?

R.C.: Gosto da ideia de semente, de inseminação. De as ideias serem sementes levadas pelo vento e, conforme o terreno onde caem, podem ou não germinar. Já me têm falado, por diversas vezes, da proximidade do meu trabalho com formas ou energias sexuais. Eu entendo a sexualidade no meu trabalho como Novalis a entendia. Não penso que seja o tema central da minha obra mas admito que haja pessoas que vejam formas sexuais nas minhas esculturas. Provavelmente, as formas sexuais existem em todo o lado, tudo depende da cabeça das pessoas. A sexualidade nasce e morre na nossa cabeça. Neste sentido, é evidente que se pode considerar que a obra artística é um órgão reprodutor feminino, prestes a ser fecundado, embora se possa também considerar ser um órgão reprodutor masculino, prestes a fecundar.

– A propósito de Novalis, no Fragmento de 1798 intitulado Pollen o autor faz uma analogia entre o poeta e o sacerdote. Numa época secular como a nossa acreditas que o ser-se criador é uma espécie de sacerdócio?

R.C.: Ser-se criador é um destino, cabe ao artista cumpri-lo, pois não lhe pode fugir. Acho eu.

– Poderá haver, no momento actual, um processo de transferência da condição religiosa do padre, rabi, imã, xamã, etc., para a condição estética do autor?

R.C.: Um artista pode ser um padre ou um guerreiro, depende. Mas a entrega e a disciplina são equivalentes.

– A Arte é a tua religião?

R.C.: A Arte é o meu único Deus.

– Na tradição cristã, a essência divina de Deus define-se a partir da Sua identificação com Cristo, cuja missão universal é o sacrifício. Desse modo Deus é, antes de mais, aquele que 'é para os outros'. Quando intitulaste uma das tuas últimas exposições Eu Sou os Outros havia na expressão um sentido explícito à figura de Cristo?

R.C.: Havia, sobretudo, uma intenção de anulação do ego. Essa série tem títulos como: Eu Sou os Outros, Sou Como Tu, Venho de T ou Eu Não Sou Meu. Claro que essa 'diluição do eu nos outros', que é uma forma de solidariedade e de anonimato, se relaciona com a figura de Cristo, aquele que 'é para os outros'. Como deves calcular, eu adoro Jesus Cristo: foi ele que trouxe a dúvida ao edifício arcaico e imutável da religião mais empedernida. Ele é o que pergunta. Mas, como nos lembra Pasolini, ele não traz só a paz, também traz a espada. E traz uma nova maneira de, pela paz, fazer guerra à injustiça.

– Sei que já foste contactado para apresentares trabalhos teus no interior de igrejas alemãs e austríacas. Como foi a experiência?

R.C.: Foi uma experiência altamente interessante. Aliás, os trabalhos que fiz estão instalados permanentemente nessas igrejas na Alemanha e na Áustria. Todo o processo negocial com os eclesiásticos, com os representantes da Igreja Católica e com os representantes da Igreja Evangélica foi muito interessante e educativo, pelas diferenças radicais entre a mentalidade operativa das duas Igrejas. Além disso, foi uma ocasião de testar, mais uma vez, a difícil relação entre o Modernismo e a Igreja que, como sabemos, foi uma história de destruição. A Arte Moderna e a Igreja têm uma absoluta mútua desconfiança, o que se compreende pela história da aventura modernista e todos os seus impulsos iconoclastas. Penso que agora, finalmente, se possa retomar a relação secular entre Arte e religião (ou Igreja). Acredito que tenha de haver novas portas a abrir, a revolução necessária.

– Existem relações aprofundadas entre ti e o mundo religioso, ou foram apenas encontros pontuais entre duas realidades distintas?

R.C.: Somos todos religiosos, mas só alguns de nós vão à Igreja. Penso existirem grandes diferenças entre Fé, Religião e Instituição. A Arte é sempre religiosa, mesmo a que pareça mais profana. Apesar da minha educação laica, sou contra a dessacralização das coisas e das pessoas. Pelo contrário, acredito que se deve sacralizar o milagre da vida o mais possível. O milagre é a explicação inocente do mistério real que habita o Homem, do poder que nele se dissimula. Não podemos morrer incultos, profanos. Se não sabemos porque vimos a este mundo, qual o sentido superior da nossa estadia na Terra, o que nos resta é esta sociedade desencantada, ignorante e materialista. Mesmo o comunista mais intenso que era o Pasolini sabia que a dimensão do sagrado é essencial para a sobrevivência do ser humano. Sem o sentido do sagrado, o homem morre e a sua cultura desaparece. Temos necessidade do sentido do sagrado e essa é também a única esperança contra a destruição e a erosão que esta sociedade de consumo nos inflige. A consciência de participar numa dimensão superior, que nos transcende, permite-nos dignificar aquilo a que chamamos vida. Não pode ser só e apenas biologia. Os Antigos viam Deus por detrás de cada erva, cada pedra, cada nuvem, cada criança que nascia. Tudo era apenas visão e voz, outra voz: a Natureza falava. O vento que passava nas folhas das árvores, a espuma do mar, o silêncio, o aroma, a voz, tudo era rasto da Sua presença. E existiam rituais que introduziam o mito na realidade e o tornavam parte da vivência diária. E a Arte era o espelho dessa íntima relação, era o produto do seu encantamento, era a testemunha e o motor dessa magia. "Um homem é um deus mortal, um deus é um homem imortal", disse Heraclito. O que costumo explicar é que os deuses fizeram os homens e os homens fizeram os deuses.

– Por último, tens sentido nos últimos tempos uma maior aproximação da Igreja ao teu trabalho?

R.C.: Talvez, não estou certo. Sei que o meu trabalho não é iconoclasta nem destrutivo. Acredito que, de alguma forma, existe esperança.

 

Artigo submetido a 5 de Setembro e aprovado a 23 de setembro de 2014

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: ruirgserra@sapo.pt

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