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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.5 no.10 Lisboa dez. 2014

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

José Silveira D'Ávila entre céus e infernos

Jose Silveira D'Ávila between heaven and hell

 

Sandra Makowiecky*

*Brasil. Professora e pesquisadora, programa de pós-graduação e crítica de arte. Licenciatura em Educação Artística Habilitação Artes Plásticas pela universidade do Estado de Santa Catarina, especialização em Arte – Educação pela uDESC; Mestrado em Gestão do Desenvolvimento e Cooperação Internacional pela universidade Moderna de Lisboa e Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas pela universidade Federal de Santa Catarina.

AFILIAÇÃO: Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Centro de Artes ( CEART), Av. Madre Benvenuta, 1907, Itacorubi, Florianópolis / SC. CEP: 88035-901, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

O objetivo deste texto é apresentar em breves notas uma leitura de parcela da obra de José Silveira D'Ávila, enfatizando sua formação clássica, sua erudição e presença de religiosidade católica, dando vida a mundos fantásticos, povoados de santos e demônios, imagens de céus e infernos, como realidades palpáveis que interferem no cotidiano de cada um.

Palavras-chave: José Silveira D'Ávila / Céus e infernos / Deus.

 

ABSTRACT

The purpose of this paper is to present in brief notes a reading of a portion of José Silveira D'Ávila's work, emphasizing his classical formation, his erudition and presence of Catholic religiosity giving life to fantasy worlds, populated by saints and demons, images of heaven and hell, as tangible realities that affect the daily lives of each one.

Keywords: José Silveira D'Ávila / Heaven and Hell / God.

 

Introdução: os clássicos que não são lidos

Hoje, nem sempre os clássicos são lidos, nos diz Adauto Novaes (2008: s.p). Para o autor, política, obras de arte e obras de pensamento, antes admiradas, tornam-se coisas indiferentes e as duas maiores invenções da humanidade – o passado e o futuro, como escreve o poeta – desaparecem, dando lugar a um presente eterno e sem memória. Luiz Marques (2008), em "A Fábrica do antigo", desenvolve um raciocínio que por analogia, pode ser aplicado a este trabalho: podemos dizer que há muita coisa entre passado e presente e entre tradição clássica e a obra de José Silveira D'Ávila, se entendermos que esses artistas e processos históricos não seriam inteligíveis se desligados de suas referências à Antiguidade, a partir da qual se movem. Tal é o significado da noção de tradição clássica, esse tecido de referências comemoradas que possibilitou à história da arte e das letras se constituir como um tenso diálogo entre passado e presente. Como diz Giulio Carlo Argan, é enquanto problema dotado de uma perspectiva histórica que a obra se oferece ao juízo contemporâneo. Talvez possamos aqui desenvolver uma ideia tão cara à Aby Warburg e Georges Didi-Huberman, descrita por Agamben , em Ninfas:

A história da humanidade é sempre a história de fantasmas e imagens, porque é na imaginação que tem lugar a fratura entre o individual e o impessoal, o múltiplo e o único, o sensível e o inteligível, e, ao mesmo tempo, a tarefa de sua recomposição dialética. As imagens são o resto, os vestígios do que os homens que nos precederam esperaram e desejaram, temeram e removeram (Agamben, 2012: 63).

Queremos então unir dois assuntos: Deus e religião e a obra de José Silveira D'Ávila, artista nascido em Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, em 1924 e falecido no Rio de Janeiro em 1985. Foi pintor, desenhista e gravador. Frequentou por oito anos a Escola Nacional de Belas Artes com bolsa concedida pelo governo do Estado de Santa Catarina, onde ingressou ainda adolescente, com 19 anos, em 1945. Alcançou várias premiações importantes na Escola Nacional de Belas Artes como Medalha de Ouro em pintura e medalha de bronze em escultura. Em 1951 recebeu o prêmio de viagem ao estrangeiro. Com este prêmio, permaneceu por três anos na Europa fazendo cursos de aperfeiçoamento. No salão Nacional de arte Moderna, no qual participou em diversas versões, recebeu certificado de isenção do júri em 1958 com prêmio de viagem ao país e prêmio de viagem ao estrangeiro em 1965. Em 1979 volta a residir em Florianópolis onde apresenta no MASC, em 1980, uma retrospectiva de sua obra. Como divulgador das artes, ajudou a criar a Associação Brasileira de Arte Sacra, Escolinha de Arte do Brasil, Associação de Artistas Plásticos Contemporâneos – ARCO. Foi criador e primeiro presidente da Associação Brasileira de Artesãos – ABA, no Rio, criador das oficinas de Arte do Museu de Arte de Santa Catarina e diretor do Museu ,de abril de 1981 a 15 de agosto de 1983. É considerado um dos pioneiros da serigrafia no Brasil. Foi um estudioso do vidro de arte, trabalhando com várias fábricas cariocas e paulistas, tendo forte ligação com o artesanato e preocupação com a arte e indústria. Era sem dúvida, erudito e culto, conhecedor da história da arte e incansável pesquisador de técnicas. Foi um dos pioneiros do Silk-Screen no Brasil e estudou arte e artesanato de 21 países. Mas talvez seja essa faceta, entre arte e indústria, entre artista e artesão que o condenou a um leve esquecimento, se comparado com outros expoentes de sua época. Aliado a estes fatos, constatou-se que poucos textos mencionam José Silveira D`Ávila. Em livros, quase nada. Entretanto, sua produção foi grande e apresenta uma obra que merece ser registrada. Talvez ler sua obra como ler um clássico e perceber nele que a contemporaneidade tem a ver com a densidade histórica e como diz Agamben ( 2012), a contemporaneidade é uma "revenant", você projeta uma luz sobre o passado que faz que ele volte, hoje, diferentemente. A imagem não é a imitação das coisas, mas um intervalo traduzido de forma visível, a linha de fratura entre as coisas (Didi-Huberman, 2006). O que a leitura do intervalo de fato almeja é a apreensão dos significados pela via de sua tradução através da própria obra. Em O vestígio da arte, Jean-Luc Nancy (2012) lança a pergunta: o que é próprio da arte não corresponde ao que resta e persiste, sendo que ela manifesta melhor sua natureza quando se converte em vestígio de si mesma, tornando-se presença que permanece quando tudo está passado? O que persiste em D`Ávila?

 

1. José Silveira D'Ávila entre céus e infernos

Em D`Ávila, persiste a figura de Deus e da arte religiosa. Entendemos por Deus, um ente infinito e existente por si mesmo; a causa necessária e fim último de tudo que existe. Na teologia cristã, ente tríplice e uno, infinitamente perfeito, criador e regulador do universo. Cada uma das pessoas da trindade cristã: Deus Padre, Deus Filho e Deus Espírito Santo. Tantas vezes representado em obras de arte, a imagem de Deus pouco aparece na contemporaneidade. Na ilha de Santa Catarina, onde está edificada a cidade de Florianópolis, capital do Estado, há uma palpável influência açoriana, cuja herança cultural legada pelos açorianos é permeada por dois fatores determinantes: a relação com o mar, pela pesca, como instrumento de vida e morte e a religiosidade profunda, um cristianismo fundamentalista católico, algo próximo das crenças medievais, dando vida à uns mundos fantásticos, povoados de santos e demônios, onde a magia e bruxaria são realidades palpáveis e interferem no cotidiano de cada um, especialmente nas localidades afastadas do centro da cidade, as antigas freguesias. A influência do fantástico, esse fantástico palpável, quase real, tem sido presente sobre as artes plásticas catarinenses originadas na ilha, com resultados qualitativamente variáveis. O universo artístico e fantástico que permeava as relações sociais do povo açoriano da ilha de santa Catarina, tornando-se um agente passivo e ativo do mítico mundo dessas populações da beira-mar com seus mistérios anímicos, povoados de lobisomens, bruxas, demônios e boitatás ainda é presente. Entretanto, existe outro lado do catolicismo açoriano que é pouco visto e estudado e muito presente na obra de D`Ávila. Semelhanças com a linguagem barroca são muito perceptíveis em sua obra. Nelas, parece que o desejo de integração dos processos de arte e vida inclui a dimensão histórica e cultural que lhe confere uma certa atemporalidade, ou interpenetração de épocas, seja em temas, seja em formas. Parte da experiência do informalismo de manchas gestuais lançadas no suporte e depois evolui para figurações diminutas onde se contrasta a largueza do gesto inicial com um virtuosismo miniaturista. Sua obra foi ampla e bem ousada na pintura, onde a mistura de tempos é perceptível. Em seus trabalhos, a pincelada, a aguada e as manchas estão entre as principais características. De modo geral, transita entre o borrão e a forma definida, surgindo entre elas um mundo imaginário, de seres fantásticos, vegetais e animais singulares, e uma intercomunicação de percursos medievais ou barrocos, revelados por suas filiações históricas e culturais. Seus desenhos e pinturas fantásticas retratam profunda religiosidade no catolicismo açoriano da Ilha de Santa Catarina, de luzes e sombras, anjos e demônios, e também das vivências cultas, do pesquisador e conhecedor de materiais e história da arte.

Foi embebido desde cedo, no vivido catolicismo herdado de colonos açorianos, colorido forte e medieval. Este fantástico mundo de trevas e luz, céus e infernos, anjos e demônios, na eterna luta entre o bem e o mal, entrou-lhe na alma, e na obra, junto com o leite e as histórias maternas (Racz, 1989).

As obras de José Silveira D'ávila que iremos apresentar neste artigo podem ser relacionadas à estética barroca, bem como à religiosidade através da presença de elementos alegóricos, a essência do movimento, o excesso, teatralização, imagens de anjos e demônios, espaços infinitos, entidades inominadas e misteriosas (Figura 1, Figura 2, Figura 3 e Figura 4). A aproximação dos detalhes nos leva à infinidade do movimento barroco onde o acúmulo pictórico nos faz perder a referência central. São vários acontecimentos ocorrendo ao mesmo tempo, realiza uma pintura polifocal, formando palcos diversos (Figura 5, Figura 6). Em apenas dois detalhes da obra "Ascensão ao senhor" (Figura 1), podemos perceber tais palcos diversos. O mesmo se repete nas outras obras (Figura 7, Figura8), onde a visão possibilita múltiplos acontecimentos. Na Figura 7 vemos os três reis magos, em detalhe, entregando presentes para menino Jesus. Na Figura 8 vemos provavelmente a imagem de São Jorge e o dragão. Percebemos também a ênfase sobre a luz e a cor, o desprezo pelo equilíbrio simples, a preferência por composições complicadas, com o intuito de seduzir e convencer o espectador através do apelo às emoções. Outras características do barroco podem ser arroladas como uma presença abstrata de figuras e cenas alegóricas na composição, atribuindo ao mundo fantástico, ao movimento e ao esplendor teatral, uma forma de aproximação do espectador com o mundo celestial. Em "Renovação" (Figura 4), podemos perceber nos detalhes (Figura 9 e Figura 10), a divisão da tela em dois planos, o terrestre e o celeste. Existe a vontade de impressionar, apelar para afetividade e imaginação, intensidade dramática, a importância da superposição decorativa e o gosto pelo insólito e pelo singular (Tirapeli, 2005). Nisto, caracteriza-se "por uma cultura barroca que permite percepções múltiplas, uma multiplicação dos significados, uma explosão das alegorias" (Agnolin, 2005: 175). Os detalhes nas obras citadas de D`Ávila impressionam. O artista se utiliza da aparência na apresentação de cenas que propõem dizer algo, que sugerem teatralidade. Nisto, o aspecto teatral nos apresenta como cenário em que somos espectadores, protagonistas e figurantes, ou seja, parte de um todo que são relevantes na construção e encenação da imagem. Cria uma ilusão, um trompe l'oeil.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

No lar, como nas escolas onde estudei, a minha espiritualidade unida ao ambiente cultural tinham uma harmonia que não era desmentida pela beleza natural da ilha, nos idos de 1924 a 1940. No portal da capela do Santíssimo, na Catedral Metropolitana, onde fui coroinha, estava pintada uma frase que sempre me animou nas adversidades: Laudate Domine Laeticia – Amai ao senhor na alegria. [...] Alegria, para mim, tem sempre um gostinho de Florianópolis (D'Ávila, 1981).

Na pintura de José Silveira D'Ávila o que vai impressionar o espectador é o jogo de acúmulos e de luz, que concerne à narrativa de palimpsesto de sonhos e de desejo, um apelo aos sentidos. Retoma a apresentação de um cenário, passagem ou estado de acontecimento. E a arte religiosa cristã utilizou-se de alegorias antes mesmo da arte barroca, que foi empregada com maior intensidade. Com as obras de arte que abordam a temática de anjos e demônios, Deus, Cristo, santos, é possível estabelecer relações entre as imagens alegóricas encontradas ao longo da história da arte, reforçando a universalidade de sua simbologia.

 

Conclusão

Entre anjos e demônios, entre céus e infernos, supomos que a obra do artista nos remete ao limbo ou purgatório e ou à presença de ambos em um mesmo cenário. O pintor D'Ávila reafirma um olhar cristão por meio do título de suas obras e da presença de encenações, arabescos e ornamentos religiosos, bem como de seres metamorfoseados. Destaca-se em sua obra, a transcendência e o clima fantástico. As partes se repetem sem sua estrutura e função, varias cenas aparecem em uma só, em que cada parte narra uma história, contudo possuem diferenciação entre corpos. Na obra de D'Ávila, vimos este catolicismo revivido e misturado com as histórias dos açorianos, reforçando um lado religioso que relutamos em prestar atenção.

 

Referencias

Agamben, Giorgio (2012). Ninfas. São Paulo: Hedra.         [ Links ]

Agnolin, A. (2005) "Política barroca: a arte da dissimulação." In: Tirapeli, P. Arte sacra: barroco memória viva. 2. ed. São Paulo: Editora UNESP.         [ Links ]

D`Ávila (1981). "Inquieto e disposto à luta. Entrevista feita por Carlos Augusto Feldmann." Jornal A Gazeta. Florianópolis, 18 de setembro.         [ Links ]

Didi-Huberman, Georges (2006). Ante el tiempo. Argentina: Adriana Hidalgo editora S. A.         [ Links ]

Marques, Luiz ( org). (2008). "A Fábrica do Antigo." In: Apresentação. Campinas, Editora da Unicamp. Pp. 11-23.         [ Links ]

Nancy, Jean– Luc (2012). "O vestígio da arte." In: Huchet, Stéphane (org). Fragmentos de uma teoria da arte. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. Pp. 289-306.         [ Links ]

Novaes, Adauto (2008). "Herança sem testamento?" In: Novaes, Adauto (org.). Mutações. Ensaios sobre as novas configurações do mundo. SESC/ SP. Rio de janeiro: Agir, s.p.         [ Links ]

Racz, Georges. (1989) Homenagem a José Silveira D'Ávila. Catálogo da exposição. Museu de Arte de Santa Catarina. Março a abril de 1989.         [ Links ]

Tirapelli, Percival (2005) Arte Sacra Colonial: Barroco Memória Viva – 2ªed. São Paulo: Editora da UNESP.         [ Links ]

 

Artigo completo submetido a 6 de setembro e aprovado a 23 de setembro de 2014

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: sandra.makowiecky@gmail.com

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